segunda-feira, 18 de maio de 2009

Duas culturas

Por Nuno Crato
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DECORRERAM 5O ANOS desde o dia em que uma figura pesada subiu os degraus da vetusta Casa do Senado, na Universidade de Cambridge, e se dirigiu ao pódio para proferir uma conferência. Não era uma ocasião qualquer. Tratava-se da prestigiada palestra Rede, proferida anualmente nessa universidade inglesa perante uma vasta plateia de professores, alunos e convidados. Não se tratava também de um orador qualquer. Na altura com 54 anos, Charles Percy Snow, tinha já sido um cientista brilhante, tinha já sido um administrador do esforço de guerra e tinha-se já destacado como político. Além de tudo isso, desenvolvera uma carreira paralela como romancista. Alcançara o estatuto de figura pública, igualmente respeitada como homem de ciência e como literato. Seria certamente alguém indicado para falar sobre a unidade entre as ciências e as humanidades.
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Decorrida uma hora, no fim da sua palestra, C.P. Snow tinha lançado uma expressão - "duas culturas" - e iniciado uma controvérsia que duraria décadas. Hoje, 50 anos depois, a polémica continua e a expressão entrou no nosso vocabulário. Fala-se de duas culturas como descrevendo duas visões inconciliáveis de ver o mundo: a das humanidades e a das ciências. C.P. Snow, apesar de particularmente qualificado para estabelecer harmonia entre essas duas culturas, é considerado por alguns críticos actuais como o homem que não teria compreendido como a ciência seria também culturalmente construída, portanto parte integrante das humanidades, cabalmente explicada pela filosofia e pela sociologia literária. Para estes críticos, a unidade dos mundos deve produzir-se a partir de uma presumida superioridade de certa cultura filosófica.
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C.P. Snow tinha opiniões contrárias. Relendo-o, pode imaginar-se que intuía a vinda da descrença pós-moderna. Na sua alocução, começou por relatar um cisma entre a "intelectualidade literária", como ele a classificava, e o mundo da ciência. Referiu-se a "um abismo de incompreensão mútua" que gerava por vezes "hostilidade e aversão". Não poupou críticas às figuras da ciência que se desinteressavam da literatura e das artes e que presumiam que a filosofia era apenas uma divagação ociosa. Mas assestou as maiores investidas contra as incompreensões da cultura científica. Os "intelectuais literários designando-se apenas a si próprios como 'intelectuais', estão a presumir que não há outros", afirmou. Citando o matemático G.H. Hardy, um autor sensível de que vale a pena ler a "Apologia de Um Matemático" (SPM/Gradiva, 2008), reproduzia o seu espanto: "Já reparou como a palavra 'intelectual' é usada hoje em dia? Parece-me que há uma nova definição que, decerto, não me inclui, nem a Rutherford, Eddington, Dirac ou Adrian. Tudo isto é bastante estranho, não acha?".
Passados 50 anos, vale a pena reler a obra de Snow. E vale a pena nela reler as suas menos conhecidas preocupações com a educação. Revoltando-se contra a prematura escolha entre as áreas científicas e de humanidades que a educação britânica na altura impunha os jovens, C.P. Snow considera que esse erro educativo tinha repercussões gravíssimas, produzindo gerações desprovidas de uma das culturas. Essas gerações estariam privadas de grande parte do mundo futuro.
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Algumas das suas frases finais são arrepiantes: "Não será tempo de começarmos? O perigo está em que fomos educados a pensar como se dispuséssemos de todo o tempo do mundo." Tê-lo-emos?

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«Passeio Aleatório» - Expresso» de 16 de Maio de 2009

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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [
aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.