quarta-feira, 20 de maio de 2009

Rumsfeld vai ao teatro

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Por Baptista Bastos
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DONALD RUMSFELD, vestido a preceito, desce a escada, acompanhado da mulher. Estão sorridentes e, aparentemente, muito felizes. Vão assistir a um espectáculo. Rumsfeld, alto, elegante, delgado, é um homem rodeado de serenidade, feito de vagares, de andar plácido, e de leve sombra no olhar. A cena parece elementar e trivial. Eis senão quando entra em campo nova figura: uma mulher ainda nova, indignada, aos gritos, apopléctica, cuja voz se multiplica mil vezes: "Criminoso de guerra! Criminoso de guerra!" Abre as mãos molhadas em vermelho, e quase as enfia no rosto do cavalheiro: "Tem-las cheias de sangue!"
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O casal de elegantes está nos limites da perplexidade. São uns módicos segundos, mas pesam como os tormentos de um pesadelo. A mulher nova só pára de gritar quando a câmara faz um corte de plano. Sabemos, mais tarde, ser militante dos direitos cívicos, empenhada em acusar Bush, Rumsfeld, Dick Cheney e Condoleezza Rice de indignidade nacional e de crimes contra a humanidade.O episódio adquire outra espessura se o associarmos ao facto de, dias antes, havermos sido informados da existência de centenas de fotografias de torturas hediondas, a juntar às conhecidas, cometidas em Abu Ghraib. O cavalheiro calculado e tranquilo foi um dos acima nomeados que deram o nihil obstat às inomináveis atrocidades praticadas no Iraque.
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Nada vai acontecer a esta gente, nem sequer o sussurro de um remorso. Em causa não está apenas a repulsa moral. Mas sim a reiteração de um fenómeno totalitário que, periodicamente, se reacende nos Estados Unidos. Progride ou retrocede, segundo a conjuntura, aparece ou desaparece, é variável, e está latente na grande nação. A máscara ocultou o horror; este emerge quando a História procede a processos de desestruturação. Bush e os seus não são raridades. Resultam das armadilhas da política de última fronteira, tão comum a republicanos como a democratas. Houve a Coreia, o mcchartismo, Cuba, o Vietname, a Guerra das Estrelas, a cumplicidade com ditadores sanguinários. E há, sobretudo, o abissal desconhecimento que os americanos possuem de si próprios. O atrevimento do pobre Bush, em abrir a caixa de Pandora, reafirma uma identidade nacional muito bem expressa pelo cinema e pela televisão.Volto a Rumsfeld, tão cristão, tão tranquilo, tão imaculado, a caminho de uma festa. É a impunidade em marcha, momentaneamente sobressaltada pela gritaria da mulher em revolta. Rumsfeld sorri. Sombriamente, mas sorri. Arrasta atrás de si um cortejo de horrores, mas está protegido por um montão de privilégios abusivos. Os gritos são acusações densas, como o sangue que simbolizam.
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Sem maior segredo, enigma ou pesar, Rumsfeld sorri.

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«DN» de 20 de Maio de 2009
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.