QUE SENTIDO É ESTE, para onde a História nos encaminha? Por todo o lado a corrupção alastra e substituiu-se aos ideais antigos e exaltantes de resolução das desigualdades, da exploração do homem pelo homem, da oposição entre o Norte e o Sul. Homens que respeitávamos pela lisura das suas vidas e pelo carácter exemplar das suas escolhas são, agora, acusados de suborno, fraude, perversão, e apontados à execração popular, por moralmente culpados de cupidez. A cupidez conduz a tudo, inclusive ao desprezo pelas regras sociais e pelas leis que as estruturam.
A "rede tentacular" descoberta, nestes dias, pela polícia, segue-se a outros escândalos tornados públicos e que o espectáculo mediático propende a simplificar, sem tentar analisar a raiz do mal. A nossa mórbida curiosidade exulta. Quando a Inquisição levava em fila os supliciados da intolerância, o povoléu, excitadíssimo, amontoava-se na Ribeira para assistir à queima. Como no século XVII, não conseguimos conciliar o respeito que nos devemos com a ideia de justiça que favorece a marca de uma identidade.
Somos, novamente, espectadores. Estamos, outra vez, regozijados com a miséria humana. Queremos sangue. Julgamos sem avaliar, acusamos sem saber, condenamos por inveja, por ódio, por oco ressentimento. Não nos envolvemos, o modo mais deplorável de recusa da cidadania. Mas apontamos, insinuamos, sugerimos, nomeamos. Situamo-nos no espaço público, mas sobrenadamos na sombra da infâmia e no aconchego da irresponsabilidade.
Haverá esperança numa sociedade em que tudo parece redundar em indiferença e conivências larvares? O Estado ausentou-se das suas funções fiscalizadoras. O Governo, mesmo perante a repetição destes enunciados, cumpliciou-se (pelos vistos) com os grandes interesses ligados à corrupção, ao suborno e à venalidade. O caso de João Cravinho é significativo. Propõe um projecto contra os corruptos e, numa compensação inquieta, é mandado para Londres, com um ordenado de luxo. Agora, nesta "Face Oculta", a porta não foi segura pela pessoa que ia à frente: só assim se justifica o facto de a imprensa ter sabido das investigações no tempo em que as devia saber.
As coisas irão ficar pela superfície? Na esfera pública, a dimensão a que as questões chegaram e o envolvimento, no esquema, de "gestores", políticos, advogados são de tal maneira graves que se torna difícil encobri-los ou dissimulá-los. A separação de poderes é um dos embustes sob os quais vivemos: tudo ocorre através de canais de informação, e os compromissos assumidos obedecem a pagamentos de favores. A "rede tentacular" não dispõe, somente, de um sucateiro do Norte. Foi apanhado. Mas há outros. Talvez os portugueses tenham um sobressalto de protesto e de indignação. Talvez.
«DN» de 4 Nov 09