quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Os mortos de Andorra

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Por Baptista-Bastos

A MORTE COMPORTA, em si mesma, muito de insolente e algo de escandaloso. Aqueles portugueses que morreram no túnel de Andorra deixaram de ter nomes e passaram a ser números. Quantos? Em rigor não se sabe. Foram para um sonho e não sabiam do perigo. Um deles esteve doze horas, doze horas!, com as pernas entaladas sob toneladas de betão e de ferro, sem se libertar das contracções dos músculos, até que. As dores eram inimagináveis. Animaram-no com frases nas quais a piedade e a compaixão foram o conforto desmembrado de quem sabe que as coisas estão irremediavelmente acabadas. O homem gelara; colocaram-lhe nos ombros e no tronco que sobrava cobertores sobre cobertores. Até que.

Os mortos de Andorra assumem um carácter exemplar pelo que reflectem de abandono, de exclusão, de rejeição - e de uma epidemia social, consubstanciada na modificação do estatuto das pessoas, que nada consegue extirpar. Duas frases talvez ilustrem a tragédia portuguesa. "O senhor tem medo?", perguntava, ingénua e tola, uma jovem jornalista a um operário antigo e versado. Que lhe respondeu, numa condensação de saberes: "Um gajo tem de ir procurar trabalho onde há trabalho!"

E, em Portugal, não o há. A mão portuguesa anda por aí além, numa viagem antiga que espera, em vão, fugir ao arbítrio. Percorre nações mais prósperas, inaugurando experiências nas fábricas, nas oficinas, na construção, sobretudo na construção, ocupando as frentes de trabalho mais duras, nas linhas de produção mais mortalmente ameaçadoras. Os outros recusam-nas; os portugueses aceitam-nas: a fome e a miséria no seu país são a mais forte aliança de todos os absurdos e de todas as violências. Naquele túnel de Andorra, desde as fundações e o alçar dos andaimes, quantos portugueses morreram? As estatísticas são omissas.

Mas eles voltam sempre; enganam o medo, foram habituados a esse roteiro que os obriga a deslocações forçadas. Procedem de aldeias das Terras Frias, fogem à angústia nacional, fazendo-se portadores de um ímpeto inextinguível e respondendo a um chamamento que vem de muito longe.

Nada nem ninguém protege estes milhares de portugueses sem trabalho que já deixaram de acreditar no céu; que blasfemam porque largados, desamparados, danificados; que não prevêem aquilo que dista; que se abandonam aos piores calvários e aos mais rudes sacrifícios; que acumulam fadigas e resignações e que morrem na inóspita desolação da ausência e do anonimato.

Que pensaria aquele português com as pernas sob toneladas de entulho?, na noite gelada, gelada e sem razão, na noite desprovida de misericórdia, naquela noite sem Deus, sem nada, sem milagres, sem explicação; uma noite arruinada e um homem meio soterrado a olhar atónito para aqueles que tentavam consolá-lo.

Que pensaria?

«DN» de 11 Nov 09