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Por Baptista-Bastos
A SOCIEDADE DOS HOMENS, tal como a conhecemos e no-la ensinaram, desmorona-se, ou, pelo menos, os seus modos de construção estão a ser seriamente abalados. Nada resiste às novas imposições de outras identidades e o sistema saído da globalização vigia e determina a totalidade da nossa existência. Há quem aprecie e defenda esta forma de redução do ser humano. Como pertenço a outra herança, combato a desapropriação social, moral e ideológica. Confesso, porém, que estou a ser derrotado. Não vencido: derrotado.
Quando Saint Just, na Convenção, proclamou que "a felicidade era possível entre os homens" e que "a liberdade era uma ideia nova na Europa", desfraldou uma bandeira sob a qual a esperança aqueceu o coração da humanidade. O poder das palavras incitou a novas relações de civilidade. A partir daí, o mundo modificou-se. Transformá-lo, como ambicionava Marx. Mudá-lo, no desejo de Rimbaud. As coisas são o que são e à euforia sucedeu-se a nostalgia da história.
Diariamente somos confrontados com notícias que ilustram as teses da não pertença, tão caras aos defensores da ideologia dominante. Agora, os dirigentes da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) resolveram abandonar o compromisso de erradicação da fome no mundo, até 2025. Para acalmar os espíritos, serviram-se de uma locução evasiva: "Acabaremos com a fome o mais cedo possível", e foram jantar, cheios de boa consciência, enquanto, cheia de fome, uma criança morre, a cada seis minutos, no planeta. A cartografia das boas intenções, exposta na cínica retórica dos discursos, esconde o que temos vindo constantemente a adiar: o coração - para lembrar o poema de António Ramos Rosa.
É isso: deixámos a generosidade desempregada, atirámos a solidariedade para o esquecimento, depredámos o oiro de um legado que nomeava o reconhecimento do homem como significado essencial. Esta brutal decisão da FAO coloca em risco de morte milhões de seres humanos. E, novamente, a cupidez impôs a sua força: apesar de as colheitas de cereais serem "muito boas", os preços não baixaram: pelo contrário. A reunião da FAO primou, também, pela ausência dos líderes mundiais. Os Estados Unidos, o Canadá, a Alemanha, a França, a Inglaterra, Japão e Rússia, entre outras nações, desconheceram o conclave, como se não fossem responsáveis pela tragédia que se ignora.
Enquanto uns tantos passam na televisão, convertendo em banalidades as causas do que nos fere, milhões e milhões vivem na sombra e na tragédia do silêncio. Ao privá-los do reconhecimento de si mesmos despojamo-nos do reconhecimento de nós próprios. Não sabemos muito bem o que queremos porque abandonámos a afirmação dos laços sociais. No fundo, odiamo-nos uns aos outros.
Por Baptista-Bastos
A SOCIEDADE DOS HOMENS, tal como a conhecemos e no-la ensinaram, desmorona-se, ou, pelo menos, os seus modos de construção estão a ser seriamente abalados. Nada resiste às novas imposições de outras identidades e o sistema saído da globalização vigia e determina a totalidade da nossa existência. Há quem aprecie e defenda esta forma de redução do ser humano. Como pertenço a outra herança, combato a desapropriação social, moral e ideológica. Confesso, porém, que estou a ser derrotado. Não vencido: derrotado.
Quando Saint Just, na Convenção, proclamou que "a felicidade era possível entre os homens" e que "a liberdade era uma ideia nova na Europa", desfraldou uma bandeira sob a qual a esperança aqueceu o coração da humanidade. O poder das palavras incitou a novas relações de civilidade. A partir daí, o mundo modificou-se. Transformá-lo, como ambicionava Marx. Mudá-lo, no desejo de Rimbaud. As coisas são o que são e à euforia sucedeu-se a nostalgia da história.
Diariamente somos confrontados com notícias que ilustram as teses da não pertença, tão caras aos defensores da ideologia dominante. Agora, os dirigentes da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) resolveram abandonar o compromisso de erradicação da fome no mundo, até 2025. Para acalmar os espíritos, serviram-se de uma locução evasiva: "Acabaremos com a fome o mais cedo possível", e foram jantar, cheios de boa consciência, enquanto, cheia de fome, uma criança morre, a cada seis minutos, no planeta. A cartografia das boas intenções, exposta na cínica retórica dos discursos, esconde o que temos vindo constantemente a adiar: o coração - para lembrar o poema de António Ramos Rosa.
É isso: deixámos a generosidade desempregada, atirámos a solidariedade para o esquecimento, depredámos o oiro de um legado que nomeava o reconhecimento do homem como significado essencial. Esta brutal decisão da FAO coloca em risco de morte milhões de seres humanos. E, novamente, a cupidez impôs a sua força: apesar de as colheitas de cereais serem "muito boas", os preços não baixaram: pelo contrário. A reunião da FAO primou, também, pela ausência dos líderes mundiais. Os Estados Unidos, o Canadá, a Alemanha, a França, a Inglaterra, Japão e Rússia, entre outras nações, desconheceram o conclave, como se não fossem responsáveis pela tragédia que se ignora.
Enquanto uns tantos passam na televisão, convertendo em banalidades as causas do que nos fere, milhões e milhões vivem na sombra e na tragédia do silêncio. Ao privá-los do reconhecimento de si mesmos despojamo-nos do reconhecimento de nós próprios. Não sabemos muito bem o que queremos porque abandonámos a afirmação dos laços sociais. No fundo, odiamo-nos uns aos outros.
«DN» de 18 Nov 09