Por Alice Vieira
NÃO SEI SE SE LEMBRAM de uma imagem televisiva que ficou famosa, no tempo em que o nosso (quase) completamente consensual Presidente da República era ainda o nosso (quase) completamente anti-consensual Primeiro-Ministro.
Não, não é a da fatia de bolo-rei.
Nem a do coqueiro.
É aquela em que, durante uma cerimónia pública, ao falar à comunicação social, ele se deixou ir abaixo.
Ali, diante dos nossos olhos, tínhamos, ao vivo e a cores, um desmaio de quem mandava em nós.
Desmaio não muito longo, convenhamos, mas, mesmo assim, desmaio.
E se nunca mais esqueci essa imagem não foi porque ela tivesse tido grandes consequências: o senhor, felizmente, recuperou bem e está de boa saúde; e acho que a política portuguesa não se ressentiu por aí além dessa breve indisposição.
Foi por uma coisa completamente diferente.
É que no dia seguinte a esse episódio encontrei a minha amiga Lena lavada em lágrimas.
A minha amiga Lena, que era uma anti-cavaquista primária, lavada em lágrimas por causa de um desmaio do nosso Primeiro.
Aquilo, palavra, tocou-me fundo.
Estava já a começar um brilhante discurso de elogio às suas qualidades humanas que, diante de um problema de saúde, a faziam esquecer antipatias políticas para ficar apenas, humanamente, preocupada — quando ela olha para mim e exclama “estás parva ou quê?”
Depois explicou: ela estava era zangada, muito, muito zangada com um Primeiro-Ministro que se deixava adoecer.
“Porque”, dizia a Lena, “eu não posso embirrar com uma pessoa que está doente! Eu não posso atacar, provocar uma pessoa que não está bem de saúde! Não me dá gozo nenhum! Aquilo de que eu gosto, mas gosto mesmo a sério, é vê-lo ali de pé, forte, muito saudável, e eu aqui a embirrar, a embirrar com ele, e a chamar-lhe nomes, e a odiá-lo por tudo o que ele faz! Ele ali a destilar saúde, todo direito, a apanhar tudo, e eu a berrar contra ele e a fazer tudo para o tirar do poleiro!”
Fez uma pausa e concluiu: “agora se o homem está doente, acabou-se, não consigo atacá-lo, lá se vai o meu gozo todo…”
Lembro-me muitas vezes desta história e da minha amiga Lena, sobretudo quando vejo aqui o maralhal desatar aos pinotes e aos berros quando o alvo dessa gritaria e excitação não se encontra, digamos, nos seus melhores momentos. Quando está, para usar uma expressão bem popular, na mó de baixo.
É facílimo insultar quem está na mó de baixo.
É facílimo contar anedotas, reencaminhar mails, mandar cartas ao director, blogar a torto e a direito.
Não serve de nada mas sempre são os tais 15 segundos de fama a que todo o mortal tem direito desde Andy Warhol.
Camões escreveu, há muitos anos, que “é fraqueza entre ovelhas ser leão”.
O pior é que já ninguém lê Camões.
«JN» de 18 de Julho de 2009