segunda-feira, 13 de julho de 2009

Passeio Quântico


Por Nuno Crato

SE O LEITOR TIVER BOA MEMÓRIA talvez se lembre da origem deste título invulgar: «Passeio Aleatório». No início desta série de crónicas dissemos que iríamos percorrer, um pouco ao acaso, temas da ciência e da técnica. Dissemos ainda que a expressão «passeio aleatório» designa um conceito científico importante, cujo seu estudo tem ocupado matemáticos, físicos e outros cientistas.

O exemplo mais engraçado de introdução a este conceito é o de um passeio de um homem embriagado. Imagine o leitor um cavalheiro, já muito tocado pelo álcool, que sai do bar onde passou a noite a acabar com o stock de aguardente. À porta, avança pela rua e tem de escolher entre dar um passo em frente ou um atrás. Como os vapores não o deixam fazer qualquer escolha racional, escolhe uma das duas direcções perfeitamente ao acaso. Começa. Dá um passo. Pára. Completamente toldado pelos eflúvios, dá novo passo, ou para a frente ou para trás, completamente ao acaso. Pára e dá novo passo, de novo ao acaso. A história repete-se ao longo da noite. Onde irá parar o cavalheiro?

Esta paródia pode servir de exemplo a um passeio aleatório em uma dimensão. Em cada momento, a variável X, que representa a posição do cavalheiro, é incrementada ou subtraída de uma unidade, conforme dê um passo em frente ou um passo para trás. Qualquer das escolhas tem probabilidade 1/2.

Podemos fazer alguns cálculos. Ao fim de 100 passos onde está o nosso herói? É pouco provável que esteja 100 passos à frente. Para isso teria de escolher a direcção fronteira 100 vezes seguidas. A probabilidade de isso acontecer é 1/2 elevado a 100. É uma probabilidade muito pequena. Tão pequena como a de se ter deslocado 100 passos para trás. Já a probabilidade de regressar ao local de onde partiu será a de se deslocar um total de 50 passos para a frente e 50 para trás. É cerca de 0,08, mesmo assim uma probabilidade pequena. Mas trata-se do valor mais provável.

É fácil perceber que o nosso herói estará algures entre 100 passos para a frente e 100 passos para trás, sendo plausível que dê quase tantos passos num sentido como no outro, pelo que o mais certo é não se encontrar muito longe do local de partida. Também é fácil perceber que estar 20 passos atrás é tão provável como estar 20 passos à frente. A distribuição de probabilidades resultante, que tem o nome técnico de binomial, aproxima-se de uma normal, a célebre distribuição de Gauss com um gráfico que relembra um sino de abas alongadas.

Tudo isto pode parecer estrambólico, mas imagine o leitor que somos transportados ao mundo quântico. Aí, é tudo tão difuso e estranho que o nosso embriagado ficará surpreendido, parecendo lúcido por comparação. As partículas que vivem nesse mundo minúsculo não têm uma posição definida e podem estar numa sobreposição de vários estados. Tudo se passa como se o nosso embriagado ficasse super-embriagado e pudesse simultaneamente dar um passo em frente e um passo para trás, ficando nos dois lugares ao mesmo tempo. Só quando forçado o sistema define uma posição, adoptando um estado preciso. Imagine-se que se acorda o cavalheiro duplamente alcoolizado. Aí ele fica numa posição determinada.

Um movimento deste tipo chama-se «passeio quântico». Nos últimos anos tem sido objecto de estudo matemático intenso, tendo-se criado grandes expectativas sobre a sua utilidade prática. Espera-se que o passeio quântico possa servir de base a novo tipo de computadores, capazes de fazer cálculos muito rápidos. Estando simultaneamente em vários estados, as partículas podem procurar simultaneamente as diversas sobreposições possíveis e, assim, resolver mais rapidamente alguns problemas matemáticos muito difíceis. O matemático norte-americano Peter Schor demonstrou, em 1994, que a computação quântica tornaria possível um algoritmo muito rápido de factorização de números nos primos que os compõem (6, por exemplo, decompõe-se no produto de 2 por 3). No momento em que isto for posto em prática o nosso mundo mudará, pois todos os processos de segurança de transacções na Internet se baseiam na impossibilidade prática de factorizar rapidamente números muito grandes. Serão então criados algoritmos quânticos de criptografia, que serão muito mais seguros.

Há, contudo, um pequeno obstáculo. Até agora ninguém conseguiu construir um computador quântico. Todos os pequenos passos nessa direcção se têm revelado muito difíceis. Por isso, gerou muito entusiasmo a notícia esta semana, na «Science», da construção de um aparelho capaz de manipular um passeio quântico. Um grupo de físicos da Universidade de Bona, na Alemanha, conseguiu arrefecer átomos de Césio e bloqueá-los numa rede de luz. Os átomos perfizeram um passeio quântico e foram comprovadas várias das deduções teóricas sobre este fenómeno. Assim, a distribuição final de resultados não foi simétrica, como no caso do passeio aleatório, e mostrou-se sensível ao estado inicial (DOI: 10.1126/science.1174436). A propagação do átomo foi também mais volátil do que a do passeio aleatório (proporcional ao número de passos e não à sua raiz, como no passeio clássico).

À partida, não parece que o passeio aleatório do nosso cavalheiro embriagado possa ter alguma utilidade para procurar a sua casa, por exemplo. Seria mais eficiente percorrer a rua de forma sistemática. O mesmo não se passa com o passeio quântico. Se o passeante super-embriagado estiver ao mesmo tempo por toda a rua, pode encontrar imediatamente a porta em causa. A computação quântica pode ser a nova grande revolução do século XXI. Só que não se faz com álcool.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 11 de Julho de 2009