sábado, 18 de julho de 2009

Nem passam cartão! (*)

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COM O DECORRER dos anos, o casal Escaparate, de quem sou amigo desde miúdo, lá tem vindo a aderir às chamadas novas tecnologias – apesar de continuarem a referir-se a elas como “modernices dispensáveis”.

De facto, ainda hoje as encaram com alguma suspeição, mas tempos houve em que foi muito pior, pois nutriam um verdadeiro pavor por tudo o que pudesse parecer-se com computadores ou que, mesmo remotamente, lhes pudesse fazer lembrar informática. A tal ponto que, da primeira vez que decidiram utilizar o Multibanco, foram juntos (para se encorajarem um ao outro!) e avisaram a família toda – pois, a seu ver, tratava-se de “um grande acontecimento tecnológico”.

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A aventura passou-se assim:

Suspeitando de antemão que iriam ter problemas complicados no seu relacionamento com uma máquina dessas (“objectos terrivelmente impessoais”, como eles diziam), começaram por procurar um terminal que não tivesse ninguém por perto; depois, aproximaram-se dele, pé-ante-pé, com um misto de nervosismo e intrepidez.

Em seguida, e após algumas tentativas (“é que há quatro hipóteses possíveis!”), lá introduziram o cartão na ranhura e esperaram, ansiosos, pelo que iria acontecer.

De imediato, “com um rangido assustador” (para continuar a usar as suas palavras), uma tampa subiu , desvendando duas coisas nada amigáveis: um teclado e um monitor!

Ainda mal refeitos do susto, foram então confrontados com um texto (“em que nem sequer constava a expressão se faz favor!”) que os intimava a digitar o código secreto!

«Teclas tu? Teclo eu?» – O certo é que começaram ambos a tremer... e o cartão acabou por ser ingloriamente chupado pela maquineta.

Tendo tido, assim, a confirmação de que “a tecnologia está muito pouco humanizada”, não quiseram voltar a ouvir falar de cartões nem de meios-cartões e retomaram a rotina de ir ao banco sempre que precisavam de dinheiro para as despesas do dia-a-dia.

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Algum tempo depois, encontrei-os na Baixa, de-braço-dado, felizes e contentes: faziam 25 anos de casados, preparavam-se para uma volta pela Europa para comemorar o acontecimento, e andavam por aqueles lados, de banco em banco, a comprar as divisas necessárias para a grande passeata.
No entanto, como nessa altura ainda não havia a moeda-única, começavam a estar preocupados porque se aproximava a data da partida e, embora já tivessem conseguido comprar francos e pesetas, ainda lhes faltavam liras, florins e marcos alemães nas quantidades que pretendiam.

Ora, como isso aconteceu depois da aventura que atrás relatei, não resisti a perguntar-lhes se já tinham feito as pazes com os cartões bancários na medida em que estes, para além da evidente vantagem que proporcionavam em caso de roubo, lhes resolveriam (pelo menos em parte) o problema das divisas que os estava a preocupar.

Mas o certo é que em relação a esse assunto não haviam mudado de ideias, e quando lhes falei do problema da segurança confidenciaram-me, em voz baixa, como é que haviam resolvido o problema:
Tinham feito duas bolsinhas de veludo, divididas em vários compartimentos, e era nelas que as notas e as moedas viajariam pelo mundo, depois de convenientemente fixadas por dentro das cuecas com alfinetes-de-ama!

Para conter o riso, ainda procurei desviar a conversa para outros assuntos, mas tal acabou por não ser necessário pois eles estavam com pressa para irem em busca de mais um banco.
Despedimo-nos, e só voltei a ter notícias suas quando, já de regresso, nos voltámos a encontrar.
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Vim então a saber que, a meio da passeata e a milhares de quilómetros de casa, o dinheiro se lhes acabara e, pela descrição que fizeram, não foi difícil imaginá-los, esfomeados e chorosos, a comer bolachinhas de água-e-sal e a dormir fiado, até que um envelope cheio de notas enviado pela família os livrou de irem dormir para debaixo das pontes!

De regresso, e quando me contaram essas e muitas outras desgraças, perguntei-lhes, sem me rir e com palavras cuidadosamente escolhidas, se não lhes tinha servido de emenda.

- Claro! – foi a resposta – Nunca mais voltamos a ser apanhados com falta de dinheiro! Já fizemos duas bolsinhas novas e maiores, que levam, pelo menos, o dobro das antigas!
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Capítulo 13 do livro Jeremias dá uma mãozinha (Ed. Plátano), disponível integralmente, em PDF, [aqui].

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