Por João Lobo Antunes
TODOS OS ANOS, mal chega o Verão, o país fica suspenso dos resultados dos exames do ensino secundário. O governo (qualquer que ele seja) reza pela confirmação do sucesso das suas políticas e a oposição suspira secretamente pelo desastre. Os examinandos, que incluem alunos e professores, embora por razões diferentes, imploram o milagre. Depois, neste país do «Se Deus quiser», lá vem o inevitável balde de água fria, porque nestas coisas o Criador entende que só merece milagres quem trabalha.
Este ano o que sucedeu de realmente novo foram os surpreendentes comentários dos responsáveis do Ministério da Educação aos maus resultados obtidos nos exames de Matemática e Português do 12.º ano, aspergindo culpas pelos jornais, pela Sociedade Portuguesa de Matemática e por «partidos e pessoas com responsabilidades politicas». O argumento foi que teria sido transmitida aos alunos a impressão de que os exames iriam ser fáceis, o que teve como consequência eles relaxarem em diástole, para usar uma imagem cardiológica. Como consequência, Matemática e Português entraram, solidariamente, em recessão.
De facto, como tem sido tantas vezes repetido por Nuno Crato, apontado também como "mau" nesta lamentável "fita" isto é muito grave pela simples razão de ser a matemática um instrumento indispensável à sobrevivência no mundo tecnológico e global em que vivemos. E não falo apenas nas áreas em que a sua aplicação é mais evidente, das engenharias à economia, mas de outras, como a biologia e a medicina, hoje ciências estocásticas e probabilísticas, o que fez a associação americana responsável pela educação médica recomendar recentemente que crescesse a exigência na preparação matemática dos candidatos ao curso médico. Demonstrámos há anos que, curiosamente, a nota de matemática do 12.º ano era, dos vários parâmetros analisados, aquele que tinha melhor valor preditivo quanto ao sucesso escolar subsequente dos alunos de medicina. E, já agora, não resisto citar o que o José Cardoso Pires me escreveu numa carta de Novembro de 1996, a propósito do meu primeiro livro de ensaios: "Por causa de três cadeiras não conclui a licenciatura em Matemáticas: hoje estou arrependido porque com certeza escreveria melhor ...". A Matemática e o Português têm, como se vê, uma insondável ligação.
Mais uma vez, nesta enorme trapalhada, a politica veio estragar tudo, porque as notas dos exames se assumiram como o barómetro do sucesso ou insucesso das políticas de educação, um pouco à semelhança das taxas de mortalidade infantil e da esperança de vida na saúde. Simplesmente, em contraste com o que sucede com a saúde, as médias obtidas ou as taxas de reprovação não podem, como mais uma vez se percebeu, serem tomadas como critérios fidedignos, porque oscilam, quer o grau de dificuldade dos exames, quer o rigor na avaliação, embora ainda ninguém tivesse explicado com clareza como se pesam dificuldade e rigor, medidas objectivamente fugidias. Ou será que tudo isto não passa, como se dizia há anos das estatísticas oficiais em Portugal, de uma vaga ideia?
Quanto ao fácil e ao difícil, confesso que sou, por formação e método, um partidário feroz da dificuldade, tema que tratei numa "oração de sapiência" chamada "O elogio da dificuldade". Como alguém já apontou, o que hoje se requer do ensino é muito semelhante ao que a sociedade em geral exige na aquisição de qualquer bem de consumo (automóvel, vídeo ou computador): que seja barato, de boa qualidade e de uso fácil (aquilo que se designa, admitindo que as máquinas têm sentimentos, como "amigo do utilizador"). Assim a vida na escola deveria ser simultaneamente fácil e feliz. Contudo, a missão da escola não é fazer os alunos felizes, mas sim, como descobri há anos, dar-lhe instrumentos para a construção da sua própria felicidade, além de, como citava T.S. Eliott, fornecer-lhes os meios para ganharem honestamente a vida e equipá-los para desempenhar o seu papel como cidadãos plenos numa democracia. Para isso a escola deve desenvolver o necessário equipamento cognitivo e muscular as qualidades indispensáveis para estas tarefas, preparando-os assim para a "luta do mundo" A minha tese é pois, muito simples: a escola fácil não cumpre a missão de preparar os alunos para a vida difícil. Saul Bellow dizia, creio que no seu derradeiro romance, «You have to be learned to capture modernity in its full complexity and to assess its human cost».
Claro que não interessa a dificuldade gratuita e estúpida, a mudança leviana ao sabor de teorias pedagógicas insensatas, a alteração matreira das regras de avaliação, os currículos obesos, a distância soberba que nega a essência do acto de ensinar («a troca de um "eros" de confiança recíproca»). A escola difícil, para mim, foi aquela que me ensinou a vencer a indolência, a ignorância e o medo, enquanto me ia preparando para o meu ofício, embora a dificuldade ainda hoje se ri de mim, multiplicando-se como uma hidra de incontáveis cabeças, e tropeço constantemente na minha ignorância. O nivelamento por baixo ou a "diluição" do que é complicado são verdadeiros atentados, cujos destroços se entrevêem nesta pavorosa confusão dos exames, e cujos autores escapam à condenação pública, porque, provavelmente, somos todos, de uma forma ou de outra, cúmplices envergonhados.
Mas, em todo o caso, a pergunta aqui fica: será que não há já ninguém que saiba revelar a estas inteligências virgens a extraordinária beleza da Matemática, criação dos homens e dos deuses, ensinar-lhes não a ler mas sim a saber ler e compreender, a escrever de forma clara e persuasiva, e a respeitar o rigor como forma de procurar a verdade?
Quanto ao resto, recordo-vos o pensamento que Einstein tinha afixado na parede do seu gabinete em Princeton: «nem tudo o que conta pode ser contado, e nem tudo o que pode ser contado conta».
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Publicado por João Lobo Antunes no «Semanário Económico» de 18 Jul 09, e aqui reproduzido com autorização do autor.
TODOS OS ANOS, mal chega o Verão, o país fica suspenso dos resultados dos exames do ensino secundário. O governo (qualquer que ele seja) reza pela confirmação do sucesso das suas políticas e a oposição suspira secretamente pelo desastre. Os examinandos, que incluem alunos e professores, embora por razões diferentes, imploram o milagre. Depois, neste país do «Se Deus quiser», lá vem o inevitável balde de água fria, porque nestas coisas o Criador entende que só merece milagres quem trabalha.
Este ano o que sucedeu de realmente novo foram os surpreendentes comentários dos responsáveis do Ministério da Educação aos maus resultados obtidos nos exames de Matemática e Português do 12.º ano, aspergindo culpas pelos jornais, pela Sociedade Portuguesa de Matemática e por «partidos e pessoas com responsabilidades politicas». O argumento foi que teria sido transmitida aos alunos a impressão de que os exames iriam ser fáceis, o que teve como consequência eles relaxarem em diástole, para usar uma imagem cardiológica. Como consequência, Matemática e Português entraram, solidariamente, em recessão.
De facto, como tem sido tantas vezes repetido por Nuno Crato, apontado também como "mau" nesta lamentável "fita" isto é muito grave pela simples razão de ser a matemática um instrumento indispensável à sobrevivência no mundo tecnológico e global em que vivemos. E não falo apenas nas áreas em que a sua aplicação é mais evidente, das engenharias à economia, mas de outras, como a biologia e a medicina, hoje ciências estocásticas e probabilísticas, o que fez a associação americana responsável pela educação médica recomendar recentemente que crescesse a exigência na preparação matemática dos candidatos ao curso médico. Demonstrámos há anos que, curiosamente, a nota de matemática do 12.º ano era, dos vários parâmetros analisados, aquele que tinha melhor valor preditivo quanto ao sucesso escolar subsequente dos alunos de medicina. E, já agora, não resisto citar o que o José Cardoso Pires me escreveu numa carta de Novembro de 1996, a propósito do meu primeiro livro de ensaios: "Por causa de três cadeiras não conclui a licenciatura em Matemáticas: hoje estou arrependido porque com certeza escreveria melhor ...". A Matemática e o Português têm, como se vê, uma insondável ligação.
Mais uma vez, nesta enorme trapalhada, a politica veio estragar tudo, porque as notas dos exames se assumiram como o barómetro do sucesso ou insucesso das políticas de educação, um pouco à semelhança das taxas de mortalidade infantil e da esperança de vida na saúde. Simplesmente, em contraste com o que sucede com a saúde, as médias obtidas ou as taxas de reprovação não podem, como mais uma vez se percebeu, serem tomadas como critérios fidedignos, porque oscilam, quer o grau de dificuldade dos exames, quer o rigor na avaliação, embora ainda ninguém tivesse explicado com clareza como se pesam dificuldade e rigor, medidas objectivamente fugidias. Ou será que tudo isto não passa, como se dizia há anos das estatísticas oficiais em Portugal, de uma vaga ideia?
Quanto ao fácil e ao difícil, confesso que sou, por formação e método, um partidário feroz da dificuldade, tema que tratei numa "oração de sapiência" chamada "O elogio da dificuldade". Como alguém já apontou, o que hoje se requer do ensino é muito semelhante ao que a sociedade em geral exige na aquisição de qualquer bem de consumo (automóvel, vídeo ou computador): que seja barato, de boa qualidade e de uso fácil (aquilo que se designa, admitindo que as máquinas têm sentimentos, como "amigo do utilizador"). Assim a vida na escola deveria ser simultaneamente fácil e feliz. Contudo, a missão da escola não é fazer os alunos felizes, mas sim, como descobri há anos, dar-lhe instrumentos para a construção da sua própria felicidade, além de, como citava T.S. Eliott, fornecer-lhes os meios para ganharem honestamente a vida e equipá-los para desempenhar o seu papel como cidadãos plenos numa democracia. Para isso a escola deve desenvolver o necessário equipamento cognitivo e muscular as qualidades indispensáveis para estas tarefas, preparando-os assim para a "luta do mundo" A minha tese é pois, muito simples: a escola fácil não cumpre a missão de preparar os alunos para a vida difícil. Saul Bellow dizia, creio que no seu derradeiro romance, «You have to be learned to capture modernity in its full complexity and to assess its human cost».
Claro que não interessa a dificuldade gratuita e estúpida, a mudança leviana ao sabor de teorias pedagógicas insensatas, a alteração matreira das regras de avaliação, os currículos obesos, a distância soberba que nega a essência do acto de ensinar («a troca de um "eros" de confiança recíproca»). A escola difícil, para mim, foi aquela que me ensinou a vencer a indolência, a ignorância e o medo, enquanto me ia preparando para o meu ofício, embora a dificuldade ainda hoje se ri de mim, multiplicando-se como uma hidra de incontáveis cabeças, e tropeço constantemente na minha ignorância. O nivelamento por baixo ou a "diluição" do que é complicado são verdadeiros atentados, cujos destroços se entrevêem nesta pavorosa confusão dos exames, e cujos autores escapam à condenação pública, porque, provavelmente, somos todos, de uma forma ou de outra, cúmplices envergonhados.
Mas, em todo o caso, a pergunta aqui fica: será que não há já ninguém que saiba revelar a estas inteligências virgens a extraordinária beleza da Matemática, criação dos homens e dos deuses, ensinar-lhes não a ler mas sim a saber ler e compreender, a escrever de forma clara e persuasiva, e a respeitar o rigor como forma de procurar a verdade?
Quanto ao resto, recordo-vos o pensamento que Einstein tinha afixado na parede do seu gabinete em Princeton: «nem tudo o que conta pode ser contado, e nem tudo o que pode ser contado conta».
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Publicado por João Lobo Antunes no «Semanário Económico» de 18 Jul 09, e aqui reproduzido com autorização do autor.