Por Miguel Viqueira
POIS, NATAL OUTRA VEZ... Para uns o pior é coleccionar os pares de peúgas que os mais velhos oferecem, impenitentes; para outros, arrumá-los. Para aquele seu conhecido, o pior do Natal é suportar os cunhados. O Natal, que perdeu o sentido religioso de antanho e se converteu na festa da família, ou na chatice da família, que diria o tal outro, para ele foi sempre época de melancolia, desde miúdo. E de saudade. Apetecia-lhe sempre estar com quem não podia e tinha saudades do impossível. Hoje lembra-se sempre de tipos e de coisas perdidos na noite dos seus dias, como aqueloutro desconhecido, de umas duas vezes a idade dele da altura, que se perfilava no meio da rua deserta cada anoitecer. Era uma álea de plátanos, lisa e direita, mal iluminada, algumas folhas outonais ainda no chão húmido de chuva recente teimando em não sucumbir ao inverno, ninguém por perto, o silêncio apenas quebrado pelo rumor da cidade que então parecia longínquo. O que recorda é só as sombras da noite, o frio, as luzes pálidas, uma brisa fresca e seca, como de montanha, e o tipo ali parado, direito no seu fato de treino azul, toalha à volta do pescoço, a concentrar-se, movendo as mãos e os ombros em pequenos círculos, rítmicos, lentos, como num ritual estranho e de fim imprevisível. Depois respirava fundo e arrancava. Corria devagar, como a trote, doseando o esforço, disciplinando o alento, uma nuvem de vapor a desenhar-lhe a aura, e sumia ao fundo da rua, já no escuro. Pouco depois emergia da esquina e volta a começar: assim por horas, todas as noites... Já no colégio ouvia-o passar no beco das traseiras, os passos cadenciados batendo perfeitos no chão da noite; e na camarata, às escuras, ouvia-o ainda nas últimas voltas, até que o silêncio completo se abatia sobre ambos. Uma noite atreveu-se a perguntar-lhe o que fazia. Treinava. Queria correr os dez mil metros nas olimpíadas e corria todas as noites dez mil metros. Todas. Calculara as voltas a dar ao longo e sombrio quarteirão dos colégios e tornara-se sem o suspeitar sequer na companhia nocturna daquele miúdo. Com a persistência do artesão e a pontualidade do carteiro, nunca falhou uma noite, nunca deu um passo em falso, jamais alterou o ritmo cadenciado, nunca desistiu. Ele nunca chegou a saber como se chamava. E também não soube nunca se alguma vez conseguiu participar nas olimpíadas. De vez em quando pensa nele, e ouve-lhe os passos, e vê-o ainda desaparecer na noite do colegio como despareceu na noite dos seus dias. Pois, Natal...