segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

De Derrida a Darwin

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Por Nuno Crato

ONÉSIMO TEOTÓNIO de Almeida escreveu um dos livros mais interessantes que li nos últimos tempos. Intitula-se De Marx a Darwin e saiu há pouco. Explica como o ponto de vista marxista, dominante numa corrente de intelectuais europeus e norte-americanos de meados do século XX, começou a ser substituído por referências continuadas ao darwinismo. Para muitos intelectuais, e não apenas para biólogos evolucionistas, Darwin tornou-se uma referência maior do pensamento moderno.

Karl Marx (1818–1883) e Charles Darwin (1809–1882) foram contemporâneos. O primeiro foi uma referência marcante da filosofia, economia e política dos séculos XIX e XX; foi um revolucionário consciente e teve pretensões de criar uma doutrina que fornecesse uma visão completa do mundo. O segundo criou uma revolução na biologia; foi contudo um homem pacato, modesto e sem ambições de mudar sequer a sua aldeia. A doutrina de Marx teve os seus dias. E a de Darwin está a ter os seus. Não exactamente por contraposição a Marx, mas sim a uma corrente pós-moderna, influenciada nas intenções e na crítica social pelo marxismo, mas oposta a vários pontos chave da doutrina de Marx.

O pós-modernismo critica as ditas “grandes utopias” — que deverão incluir as marxistas —, rejeita as ditas “grandes narrativas” — que deverão incluir as revolucionárias — e descrê da capacidade de a ciência fornecer algum conhecimento objectivo sobre a realidade — também aqui contraria Marx e Lenine, que acreditavam no “socialismo científico”. Os críticos pós-modernos, como Jacques Derrida, sublinham o aspecto cultural da literatura e da vida, rejeitando a ideia de uma natureza humana ou de algo que possa não ser socialmente construído. Tudo é texto e tudo é impossível de ser finalmente entendido, porque tudo é contraditório. E se isto não se perceber, é porque também é um texto. Percebe-se?!

Psicólogos, paleontólogos e muitos cientistas contemporâneos têm vindo, mesmo que inconscientemente, a pôr em causa estas ideias. Pouco a pouco, tem-se visto que há traços comuns às sociedades e aos homens que não podem ser explicados pela cultura. Matemáticos e biólogos têm aplicado a teoria dos jogos à explicação de muitos traços do comportamento humano. Psicólogos têm descoberto que há conceitos geométricos inerentes ao nosso cérebro. A luta pela sobrevivência e a evolução de milhões de anos moldaram-nos para agirmos de determinada maneira. Em muitos aspectos da vida, a natureza impõe-se à cultura. É a desafronta de Darwin.

Joseph Carroll, Jonathan Gottschall e outros críticos modernos dizem-se partidários de “estudos literários darwinianos”, tentando ver na literatura a descrição do comportamento humano, incluindo o biológico. Há que procurar explicações fora dos textos, sublinham. A teoria literária e os estudos culturais pós-modernos atrofiaram a crítica literária — dizem —, tornaram-na incompreensível e virada para a desconstrução da narrativa, destruindo a apreciação da grande literatura.

David Sloan Wilson, o biólogo que escreveu o recente best-seller “A Evolução para Todos”, onde mostra como o evolucionismo ajuda a explicar muito do nosso comportamento, dos mexericos aos símbolos de poder, dizia que a literatura é uma fonte imensa de informação sobre o comportamento humano, “é a história natural da nossa espécie”. O ano de Darwin está a acabar. A influência cultural de Darwin não.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 12 Dez 09