Por Baptista-Bastos
O PRÉMIO PESSOA homenageia um homem e o seu trajecto social, artístico e moral. O prémio de 2009 é atribuído a D. Manuel Clemente e não se alarga à instituição a que ele pertence. Mas a possibilidade de se associar a Igreja ao homem será, porventura, abusiva; porém, a hipótese fica em aberto. E, caso D. Manuel Clemente não fosse bispo, o Prémio Pessoa ser-lhe-ia concedido?
De certo modo, o galardoado, pela sua activa e heterodoxa curiosidade intelectual, contraria a cultura de repressão, o arbítrio da verdade única, a cumplicidade com os poderosos de que a Igreja é funesto exemplo. Sem deixar de ser um "deles". A questão reside, quanto a mim, nessa contradição fundamental. De que modo D. Manuel Clemente objecta contra as regras e contraria os postulados da hierarquia, pesada e retrógrada, de que, afinal, faz parte?
Creio que nos limites das alternativas: pisando o risco da liberdade até que as autoridades eclesiásticas e afins digam: basta. Do padre Abel Varzim a D. Manuel Martins, passando por D. António Ferreira Gomes, sem esquecer D. Januário Torgal Ferreira, nem o padre Mário de Oliveira, da Lixa, e frei Bento Domingues (cujos artigos, no Público, incitam-nos a reflectir e a agir) - de uma maneira ou de outra, servindo-se dos processos que a cada um são caros, estes homens, sem negarem os votos, procuraram a assunção de um outro compromisso. É o que neles me interessa.
Conheço Manuel Clemente de um encontro televisivo que teve com José Saramago, na SIC, já lá vão largos anos. Raramente o diálogo entre um marxista e um católico atingiu níveis tão elevados. O então reitor do Seminário dos Olivais rejeitou a tundra intelectual e glosou, com nitidez argumentativa, a natureza religiosa do ateísmo. A mentalidade da época não era propícia a diálogos que comportassem essa espécie de entendimento entre o confessional e o elementar. A verdade humana do cristianismo e do marxismo enjeitava as eternas discriminações, e a conversação dos dois homens abriu um parágrafo (infelizmente logo fechado) no debate sobre o irracionalismo, a injustiça e a ignorância.
Mais tarde, estabeleci correspondência com D. Manuel Clemente que não se considerava refém de coisa alguma, inclusive da fé, mas sim partícipe na procura de uma verdade fugidia. Sabe-se: um homem de Igreja é sempre objecto de juízos opostos. E as injunções anticlericais de uma cultura amiúde unilateral explicam as reservas feitas a quem anda de cabeção. Não alimento preconceitos de nenhuma espécie, muito menos em matéria religiosa. O preconceituoso esconde um racista e um racista oculta um verdugo e dissimula um canalha. O Prémio Pessoa deste ano homenageou um homem cuja virtude maior é a de tentar corrigir-se a si próprio para melhor compreender o que em seu redor ocorre.
O PRÉMIO PESSOA homenageia um homem e o seu trajecto social, artístico e moral. O prémio de 2009 é atribuído a D. Manuel Clemente e não se alarga à instituição a que ele pertence. Mas a possibilidade de se associar a Igreja ao homem será, porventura, abusiva; porém, a hipótese fica em aberto. E, caso D. Manuel Clemente não fosse bispo, o Prémio Pessoa ser-lhe-ia concedido?
De certo modo, o galardoado, pela sua activa e heterodoxa curiosidade intelectual, contraria a cultura de repressão, o arbítrio da verdade única, a cumplicidade com os poderosos de que a Igreja é funesto exemplo. Sem deixar de ser um "deles". A questão reside, quanto a mim, nessa contradição fundamental. De que modo D. Manuel Clemente objecta contra as regras e contraria os postulados da hierarquia, pesada e retrógrada, de que, afinal, faz parte?
Creio que nos limites das alternativas: pisando o risco da liberdade até que as autoridades eclesiásticas e afins digam: basta. Do padre Abel Varzim a D. Manuel Martins, passando por D. António Ferreira Gomes, sem esquecer D. Januário Torgal Ferreira, nem o padre Mário de Oliveira, da Lixa, e frei Bento Domingues (cujos artigos, no Público, incitam-nos a reflectir e a agir) - de uma maneira ou de outra, servindo-se dos processos que a cada um são caros, estes homens, sem negarem os votos, procuraram a assunção de um outro compromisso. É o que neles me interessa.
Conheço Manuel Clemente de um encontro televisivo que teve com José Saramago, na SIC, já lá vão largos anos. Raramente o diálogo entre um marxista e um católico atingiu níveis tão elevados. O então reitor do Seminário dos Olivais rejeitou a tundra intelectual e glosou, com nitidez argumentativa, a natureza religiosa do ateísmo. A mentalidade da época não era propícia a diálogos que comportassem essa espécie de entendimento entre o confessional e o elementar. A verdade humana do cristianismo e do marxismo enjeitava as eternas discriminações, e a conversação dos dois homens abriu um parágrafo (infelizmente logo fechado) no debate sobre o irracionalismo, a injustiça e a ignorância.
Mais tarde, estabeleci correspondência com D. Manuel Clemente que não se considerava refém de coisa alguma, inclusive da fé, mas sim partícipe na procura de uma verdade fugidia. Sabe-se: um homem de Igreja é sempre objecto de juízos opostos. E as injunções anticlericais de uma cultura amiúde unilateral explicam as reservas feitas a quem anda de cabeção. Não alimento preconceitos de nenhuma espécie, muito menos em matéria religiosa. O preconceituoso esconde um racista e um racista oculta um verdugo e dissimula um canalha. O Prémio Pessoa deste ano homenageou um homem cuja virtude maior é a de tentar corrigir-se a si próprio para melhor compreender o que em seu redor ocorre.
«DN» de 16 Dez 09