Por Alice Vieira
COM TANTA GRITARIA que vai por aí - ouviu ou não ouviu, foi ou não foi escutado, roubou ou não roubou, foram milhares de euros ou uns trocaditos para o parquímetro, a vacina mata ou a vacina salva — hoje decidi fechar para férias.
Isto é: decidi impermeabilizar ouvidos e olhos a todo o arraial que vai lá por fora, e ficar a olhar para as minhas orquídeas.
Qual Nero Wolf de S. Sebastião da Pedreira.
Claro que hoje já ninguém hoje sabe quem era o Nero Wolf.
Os ingénuos romances policiais, de detectives a escorrer brilhantina com secretárias a escorrer Chanel n.º 5, foram à vida.
Mesmo os que se consideravam “negros” são hoje cor-de-rosa claro, comparados com todas as séries do género que a televisão mostra. E, sem o cigarro na ponta dos dedos, os “private-eyes” e as mulheres-fatais ficaram, definitivamente, desempregados, porque toda a gente sabia que era daquelas baforadas de fumo que havia de sair a resolução do problema (no primeiro caso) e a ida para a cama (no segundo)
Mas Nero Wolf (criado por Rex Stout) nem sequer se encaixa muito nessa categoria, nem é sequer das minhas personagens preferidas, com os seus mastodônticos 130 quilos, bebedor compulsivo de cerveja, de uma inteligência fora do normal e vaidoso dela (“não sou Deus, sou apenas um génio”), sempre metido em casa, e resolvendo os casos depois de o seu assistente lhe ter feito o trabalhinho todo.
A espécie humana interessava-lhe muito pouco, mas amava, apaixonadamente, orquídeas.
Milhares de orquídeas povoavam-lhe o telhado e a vida. De um pé de orquídea nasciam logo mais dez ou vinte.
E é só por causa das orquídeas que eu hoje me lembrei do Nero Wolf.
Por causa da minha orquídea que, se calhar, é descendente de alguma das que ele teria cuidado nas suas estufas.
Porque a minha orquídea não pára de florescer.
Devo dizer que, por ser muito quente no verão e muito fria no inverno, a minha casa não é propícia à criação de flores. Todas as plantas que procuro trazer para dar um ar mais verde ao ambiente, passadas umas semanas já estão a entregar a sua alma vegetal ao criador.
Todas — menos a minha orquídea.
Foi o meu amigo António, o meu habitual “fornecedor” de flores, que ma ofereceu há uns anos. E sem nenhum cuidado especial, a minha orquídea não pára de se reproduzir. Todos os anos tenho orquídeas novas, dou orquídeas a amigos, distribuo orquídeas pela casa toda - e no ano seguinte lá vêm mais.
Esta semana acabei de colocar as últimas em todos os cantos disponíveis.
E faz bem ficar a olhar para elas e ver como, apesar de tudo e contra tudo, todos os anos renascem.
Se calhar o velho e insuportável Nero Wolf é que tinha razão: que se lixe o que vai lá por fora a minha orquídea não desiste.
«JN» de 4 Dez 09
COM TANTA GRITARIA que vai por aí - ouviu ou não ouviu, foi ou não foi escutado, roubou ou não roubou, foram milhares de euros ou uns trocaditos para o parquímetro, a vacina mata ou a vacina salva — hoje decidi fechar para férias.
Isto é: decidi impermeabilizar ouvidos e olhos a todo o arraial que vai lá por fora, e ficar a olhar para as minhas orquídeas.
Qual Nero Wolf de S. Sebastião da Pedreira.
Claro que hoje já ninguém hoje sabe quem era o Nero Wolf.
Os ingénuos romances policiais, de detectives a escorrer brilhantina com secretárias a escorrer Chanel n.º 5, foram à vida.
Mesmo os que se consideravam “negros” são hoje cor-de-rosa claro, comparados com todas as séries do género que a televisão mostra. E, sem o cigarro na ponta dos dedos, os “private-eyes” e as mulheres-fatais ficaram, definitivamente, desempregados, porque toda a gente sabia que era daquelas baforadas de fumo que havia de sair a resolução do problema (no primeiro caso) e a ida para a cama (no segundo)
Mas Nero Wolf (criado por Rex Stout) nem sequer se encaixa muito nessa categoria, nem é sequer das minhas personagens preferidas, com os seus mastodônticos 130 quilos, bebedor compulsivo de cerveja, de uma inteligência fora do normal e vaidoso dela (“não sou Deus, sou apenas um génio”), sempre metido em casa, e resolvendo os casos depois de o seu assistente lhe ter feito o trabalhinho todo.
A espécie humana interessava-lhe muito pouco, mas amava, apaixonadamente, orquídeas.
Milhares de orquídeas povoavam-lhe o telhado e a vida. De um pé de orquídea nasciam logo mais dez ou vinte.
E é só por causa das orquídeas que eu hoje me lembrei do Nero Wolf.
Por causa da minha orquídea que, se calhar, é descendente de alguma das que ele teria cuidado nas suas estufas.
Porque a minha orquídea não pára de florescer.
Devo dizer que, por ser muito quente no verão e muito fria no inverno, a minha casa não é propícia à criação de flores. Todas as plantas que procuro trazer para dar um ar mais verde ao ambiente, passadas umas semanas já estão a entregar a sua alma vegetal ao criador.
Todas — menos a minha orquídea.
Foi o meu amigo António, o meu habitual “fornecedor” de flores, que ma ofereceu há uns anos. E sem nenhum cuidado especial, a minha orquídea não pára de se reproduzir. Todos os anos tenho orquídeas novas, dou orquídeas a amigos, distribuo orquídeas pela casa toda - e no ano seguinte lá vêm mais.
Esta semana acabei de colocar as últimas em todos os cantos disponíveis.
E faz bem ficar a olhar para elas e ver como, apesar de tudo e contra tudo, todos os anos renascem.
Se calhar o velho e insuportável Nero Wolf é que tinha razão: que se lixe o que vai lá por fora a minha orquídea não desiste.
«JN» de 4 Dez 09