Por Nuno Crato
UM HOMEM BÊBADO, passeando ao acaso pelas ruas, sem memória do percurso andado nem ideia da direcção a tomar, é a imagem mais frequentemente usada para ilustrar o conceito matemático de passeio aleatório. Falámos deste conceito várias vezes, desde a primeira crónica que aqui saiu com este título genérico até uma outra de há poucos meses atrás. Se a ideia é repetida, é porque este modelo matemático tem aplicações em áreas tão diversas que estão sempre a surgir notícias das suas aplicações.
O passeio aleatório, entendido como um movimento ao acaso obtido por choques de impulsos, apareceu pela primeira vez em 1900 nos trabalhos dum obscuro matemático francês chamado Louis Bachelier — o objectivo era modelar os movimentos de preços nas bolsas de valores. Cinco anos mais tarde reapareceu pelas mãos de Albert Einstein para explicação dos movimentos de pequenos grãos de pólen mergulhados num líquido, um fenómeno que tinha sido pela primeira vez observado pelo botânico Robert Brown e que acabou por servir de prova experimental da existência de átomos e moléculas.
Em 1935 e nos anos seguintes, outro matemático francês, Paul Lévy, começou a estudar um tipo de movimento em que os saltos podem ser tão bruscos que, de um golpe, se pode andar mais do que em milhares de pequenos saltos (tecnicamente: a distribuição normal é substituída por uma outra de variância infinita). Chamou-se a este tipo de passeio aleatório “voos de Lévy” (Lévy flights). Tudo se passa como se o nosso bêbado, de repente, passasse a usar botas mágicas, como o Pequeno Polegar da história das botas de sete léguas.
Foi preciso passarem muitos anos sobre os trabalhos teóricos do matemático francês para que se encontrassem na natureza fenómenos deste tipo. Foram descobertos por acaso em 1990, no movimento microscópico de moléculas arrastadas em agregados de longos filamentos (micelas). Depois disso, encontraram-se muitos exemplos semelhantes. Ainda recentemente, em Junho deste ano, descobriu-se que os tubarões praticavam voos de Levy quando procuravam comida em águas de caça pouco abundante.
Este mês foi feita uma nova descoberta (doi: 10.1103/PhysRevLett.105.190601). Estudando os movimentos dos macacos aranha — uma família de símios de pernas e braços muito longos que vivem na floresta amazónica — dois investigadores da Universidade da Califórnia notaram que esses animais descrevem trajectórias semelhantes aos voos de Levy: passam muito tempo movimentando-se aleatoriamente em pequenos movimentos e, de repente, cobrem grandes distâncias.
Notaram ainda que os movimentos que fazem, com saltos longos que lhes permitem explorar em pouco tempo vastas zonas da floresta, são especialmente propícios a caçadas dispersas em que os caçadores evitam encontrar-se. Tudo se passa como se, na procura de comida, esses símios procurassem a maneira de maximizar a plausibilidade de encontro de comida e a minimizar a probabilidade de encontros adversos. Os dois investigadores chamaram a estes movimentos “voos de Lévy viciosos” (vicious Lévy flights) e estudaram matematicamente as implicações deste modelo. Os macacos aranha só têm a lucrar com as botas mágicas do Pequeno Polegar.
RECTIFICAÇÃO: Na última crónica afirmei, erradamente, que a exposição de Escher em Évora era a primeira no nosso país. Na verdade, uma outra mostra, que desconhecia, teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian em Janeiro de 1982. Peço perdão aos leitores e à Fundação pelo erro, que um leitor notou e generosamente me indicou.
.UM HOMEM BÊBADO, passeando ao acaso pelas ruas, sem memória do percurso andado nem ideia da direcção a tomar, é a imagem mais frequentemente usada para ilustrar o conceito matemático de passeio aleatório. Falámos deste conceito várias vezes, desde a primeira crónica que aqui saiu com este título genérico até uma outra de há poucos meses atrás. Se a ideia é repetida, é porque este modelo matemático tem aplicações em áreas tão diversas que estão sempre a surgir notícias das suas aplicações.
O passeio aleatório, entendido como um movimento ao acaso obtido por choques de impulsos, apareceu pela primeira vez em 1900 nos trabalhos dum obscuro matemático francês chamado Louis Bachelier — o objectivo era modelar os movimentos de preços nas bolsas de valores. Cinco anos mais tarde reapareceu pelas mãos de Albert Einstein para explicação dos movimentos de pequenos grãos de pólen mergulhados num líquido, um fenómeno que tinha sido pela primeira vez observado pelo botânico Robert Brown e que acabou por servir de prova experimental da existência de átomos e moléculas.
Em 1935 e nos anos seguintes, outro matemático francês, Paul Lévy, começou a estudar um tipo de movimento em que os saltos podem ser tão bruscos que, de um golpe, se pode andar mais do que em milhares de pequenos saltos (tecnicamente: a distribuição normal é substituída por uma outra de variância infinita). Chamou-se a este tipo de passeio aleatório “voos de Lévy” (Lévy flights). Tudo se passa como se o nosso bêbado, de repente, passasse a usar botas mágicas, como o Pequeno Polegar da história das botas de sete léguas.
Foi preciso passarem muitos anos sobre os trabalhos teóricos do matemático francês para que se encontrassem na natureza fenómenos deste tipo. Foram descobertos por acaso em 1990, no movimento microscópico de moléculas arrastadas em agregados de longos filamentos (micelas). Depois disso, encontraram-se muitos exemplos semelhantes. Ainda recentemente, em Junho deste ano, descobriu-se que os tubarões praticavam voos de Levy quando procuravam comida em águas de caça pouco abundante.
Este mês foi feita uma nova descoberta (doi: 10.1103/PhysRevLett.105.190601). Estudando os movimentos dos macacos aranha — uma família de símios de pernas e braços muito longos que vivem na floresta amazónica — dois investigadores da Universidade da Califórnia notaram que esses animais descrevem trajectórias semelhantes aos voos de Levy: passam muito tempo movimentando-se aleatoriamente em pequenos movimentos e, de repente, cobrem grandes distâncias.
Notaram ainda que os movimentos que fazem, com saltos longos que lhes permitem explorar em pouco tempo vastas zonas da floresta, são especialmente propícios a caçadas dispersas em que os caçadores evitam encontrar-se. Tudo se passa como se, na procura de comida, esses símios procurassem a maneira de maximizar a plausibilidade de encontro de comida e a minimizar a probabilidade de encontros adversos. Os dois investigadores chamaram a estes movimentos “voos de Lévy viciosos” (vicious Lévy flights) e estudaram matematicamente as implicações deste modelo. Os macacos aranha só têm a lucrar com as botas mágicas do Pequeno Polegar.
RECTIFICAÇÃO: Na última crónica afirmei, erradamente, que a exposição de Escher em Évora era a primeira no nosso país. Na verdade, uma outra mostra, que desconhecia, teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian em Janeiro de 1982. Peço perdão aos leitores e à Fundação pelo erro, que um leitor notou e generosamente me indicou.
«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 27 Nov 10