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Por Rui Tavares
NO TEMPO das manifestações na Praça Tiananmen, em junho de 1989, quase ninguém sabia o que era a internet. O email era também praticamente desconhecido; ainda não havia web, muito menos twitter ou facebook. Raras pessoas tinham visto um telemóvel, e ninguém adivinharia que enviar mensagens de texto viria a ser um dos seus usos mais populares. Mesmo a televisão de notícias, com o seu ciclo de 24 horas por dia, estava apenas a começar. Era muito mais fácil encerrar um país e fazer com que as notícias pingassem a intervalos cada vez mais reduzidos.
Mesmo assim, seguimos os acontecimentos na China com invulgar intensidade, primeiro, e ansiedade depois. Muitos talvez — como eu — pela rádio, nos noticiários de hora a hora — ou já seriam de meia em meia-hora? — enquanto uma minoria talvez tivesse televisão por satélite e canais internacionais. A informação não era contínua; era aos soluços, intermitente, e escassa. Irão ser tolerados os manifestantes? Não estarão eles demasiado audaciosos? Conseguirão vergar o regime? O que explicará este compasso de espera? O que fará o exército? Está confirmado que já há tanques nas avenidas?
Foram chegando então as notícias, cada vez mais seguras, de que tinha havido um massacre na praça.
O movimento foi, porém, mais vasto do que os acontecimentos daqueles dias. Os “mártires de Tiananmen”, como lhes chama o Nobel Liu Xiaobo, pediam apenas aquilo que a nenhum cidadão pode ser negado: liberdade de associação, de manifestação, de expressão e de informação. Isso faz deles património não só do povo chinês mas da humanidade inteira.
Restou-nos a fotografia — e um filme curto — do “homem do tanque”, no qual um desconhecido segurando dois sacos de compras se posiciona calma e metodicamente em frente a uma coluna de tanques. Os tanques desviam-se, ele acompanha. Os tanques ameaçam, ele insiste. E depois os tanques param porque algum soldado lá dentro terá sentido que não conseguiria matar ali aquele homem. Houve muitas tentativas para encontrar a identidade e confirmar o seu destino, que eu saiba sempre infrutíferas. Será melhor assim; seria bom que o “dissidente desconhecido” fosse simplesmente a corporização de algo que existe em cada um dos humanos.
Trata-se, quanto mais pensamos nisso, de um documento simples e muito perturbador. A realidade lembra-nos todos os dias que nós humanos estamos predispostos à obediência; e ali está a prova em contrário, contra todas as evidências mesmo, de que afinal um desobediente consegue deter um império. Coisa difícil de acreditar.
Nos anos seguintes, a China mudou muito. Ficou mais rica e poderosa; os ingénuos do capitalismo acreditaram que com o dinheiro viria a democracia, que “a China ficaria mais parecida connosco”. Afinal, foi o contrário que aconteceu. Nós é que estamos agora mais parecidos com a China, mais dispostos a trocar democracia por dinheiro — por exemplo dispostos a deslocar uma manifestação, em Lisboa, para que os dirigentes chineses possam viver no seu mundo de deferência e fantasia.
Sim, eu sei. Estamos endividados e os dirigentes chineses fazem o favor de comprar a nossa dívida. Por mim, podem comprar toda a dívida que quiserem. Isso não apagará a dívida maior, mais profunda e impossível de pagar que temos ao homem do tanque.
.Por Rui Tavares
NO TEMPO das manifestações na Praça Tiananmen, em junho de 1989, quase ninguém sabia o que era a internet. O email era também praticamente desconhecido; ainda não havia web, muito menos twitter ou facebook. Raras pessoas tinham visto um telemóvel, e ninguém adivinharia que enviar mensagens de texto viria a ser um dos seus usos mais populares. Mesmo a televisão de notícias, com o seu ciclo de 24 horas por dia, estava apenas a começar. Era muito mais fácil encerrar um país e fazer com que as notícias pingassem a intervalos cada vez mais reduzidos.
Mesmo assim, seguimos os acontecimentos na China com invulgar intensidade, primeiro, e ansiedade depois. Muitos talvez — como eu — pela rádio, nos noticiários de hora a hora — ou já seriam de meia em meia-hora? — enquanto uma minoria talvez tivesse televisão por satélite e canais internacionais. A informação não era contínua; era aos soluços, intermitente, e escassa. Irão ser tolerados os manifestantes? Não estarão eles demasiado audaciosos? Conseguirão vergar o regime? O que explicará este compasso de espera? O que fará o exército? Está confirmado que já há tanques nas avenidas?
Foram chegando então as notícias, cada vez mais seguras, de que tinha havido um massacre na praça.
O movimento foi, porém, mais vasto do que os acontecimentos daqueles dias. Os “mártires de Tiananmen”, como lhes chama o Nobel Liu Xiaobo, pediam apenas aquilo que a nenhum cidadão pode ser negado: liberdade de associação, de manifestação, de expressão e de informação. Isso faz deles património não só do povo chinês mas da humanidade inteira.
Restou-nos a fotografia — e um filme curto — do “homem do tanque”, no qual um desconhecido segurando dois sacos de compras se posiciona calma e metodicamente em frente a uma coluna de tanques. Os tanques desviam-se, ele acompanha. Os tanques ameaçam, ele insiste. E depois os tanques param porque algum soldado lá dentro terá sentido que não conseguiria matar ali aquele homem. Houve muitas tentativas para encontrar a identidade e confirmar o seu destino, que eu saiba sempre infrutíferas. Será melhor assim; seria bom que o “dissidente desconhecido” fosse simplesmente a corporização de algo que existe em cada um dos humanos.
Trata-se, quanto mais pensamos nisso, de um documento simples e muito perturbador. A realidade lembra-nos todos os dias que nós humanos estamos predispostos à obediência; e ali está a prova em contrário, contra todas as evidências mesmo, de que afinal um desobediente consegue deter um império. Coisa difícil de acreditar.
Nos anos seguintes, a China mudou muito. Ficou mais rica e poderosa; os ingénuos do capitalismo acreditaram que com o dinheiro viria a democracia, que “a China ficaria mais parecida connosco”. Afinal, foi o contrário que aconteceu. Nós é que estamos agora mais parecidos com a China, mais dispostos a trocar democracia por dinheiro — por exemplo dispostos a deslocar uma manifestação, em Lisboa, para que os dirigentes chineses possam viver no seu mundo de deferência e fantasia.
Sim, eu sei. Estamos endividados e os dirigentes chineses fazem o favor de comprar a nossa dívida. Por mim, podem comprar toda a dívida que quiserem. Isso não apagará a dívida maior, mais profunda e impossível de pagar que temos ao homem do tanque.
In RuiTavares.Net