De Manuel João Ramos
No Semanário SOL de 26/11/2010
CAOS NAS MULTAS DE TRÂNSITO
Auditoria da IGAI alerta para a “grave situação” da Autoridade de Segurança Rodoviária
Sónia Graça
UMA AUDITORIA bastou para pôr a nu o que o Governo nunca admitiu: a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), sucessora da Direcção-Geral de Viação, encontra-se numa “grave situação: os serviços demonstraram um “elevado nível de incapacidade para dar seguimento, em tempo útil, às diversas fases de tramitação dos autos”. Só no ano passado, prescreveram 600 mil processos; em média, por ano, a Polícia abre um milhão.
Em causa, segundo uma auditoria financeira da Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI), estão várias lacunas. Desde logo, a manifesta falta de pessoas: para 164 lugares previstos no quadro, apenas 72 estavam preenchidos no início do ano.
A auditoria - a que o SOL teve agora acesso - foi entregue em Abril ao ministro Rui Pereira. Desconhece-se se foram entretanto adoptadas as recomendações da IGAI.
Só... estruturas
As deficiências apontadas à ANSR, colmatadas pelo outsoursing, estão na origem de outras anomalias. Criada em Maio de 2007, a ANSR ainda não tem um conselho administrativo com serviços de tesouraria e contabilidade para gerir as contas bancárias e os movimentos financeiros.
Uma das 10 contas, por exemplo, é do BES e está reservada para verbas das contra-ordenações. No entanto, nem o BES nem o instituto de Gestão da Tesouraria e Crédito Público enviam à ANSR extractos detalhados sobre as centenas de milhares de movimentos de conta, cujo controlo é “quase inexistente”.
Razões pelas quais, denuncia a IGAI, “não estão garantidas, de forma alguma, as boas práticas da gestão dos dinheiros públicos”. Passados três anos, não existe um arquivo de documentação dos processos que dê resposta quer às necessidades da própria ANSR, quer às múltiplas solicitações de entidades externas. Há uma grande dificuldade de preparação dos processos para remessa a tribunal”, lê-se na auditoria.
Os inspectores confirmaram o pior quando solicitaram a responsáveis deste organismo 39 processos (suporte físico) para verificar o seu controlo: 14 pura e simplesmente não foram localizados e os restantes estavam deficientemente organizados”, dada a falta de documentação (originais dos autos, gulas de pagamento, avisos de recepção de notificações, etc).
86%de prescrições...
Quase todos os processos analisados, aliás, tramitaram no SIGA (sistema informático de gestão de autos) sem que existisse o original do auto ou o comprovativo do seu pagamento. São, portanto, tomadas decisões como se o infrator ainda não tivesse pago a coima. À conta deste erro, acaba por ser condenado ao agravamento da multa, acrescida de custas e da aplicação da sanção acessória.
As fragilidades do sistema informático são muitas: como o SIGA não gera listagens de situações relativamente às quais devem ser feitos reembolsos. Nem existem mecanismos de controlo automático para o efeito, são muitas vezes os próprios condutores que reclamam a devolução das quantias, uma vez absolvidos ou prescrito o auto.
A prescrição é, de resto, o desfecho da maioria dos processos. No ano passado, assim terminaram 598.013 autos - dos quais 516.400 (86%) “morreram” numa “fase muito embrionária” antes de ter sido proferida qualquer decisão (297.048 ainda não tinham sido registados no sistema).
Recorde-se que em Março de 2008, quando a ANSR celebrou um protocolo com a Ordem dos Advogados, sob orientação do Ministério da Administração Interna (MAI), para agilizar o processamento dos autos, o ministro Rui Pereira prometia: “Daqui a um ano não haverá processos atrasados nem em risco de prescrição».
E menos 12 miIhões de receita
Em termos práticos, a prescrição significa que deixam de ser aplicadas sanções acessórias de inibição de condução e ficam por registar, no Registo Individual do Condutor, as infracções graves e muito graves. Resultado: o condutor continua muitas vezes a beneficiar de penas suspensas e atenuação especial das sanções», diz a IGAl. Facto que, advertem os inspectores, “em nada contribui para a diminuição dos comportamentos de risco na estrada, antes potencia convicções de impunidade”.
Quando, além disso, as decisões implicam sanções pecuniárias (coimas e custas), a prescrição significa a não arrecadação da receita – que registou, aliás, uma quebra de 13% entre 2008 e 2009, equivalente a cerca de 12milhões de euros.
Mas há erros - descobriu a IGAl -, que começam nas entidades fiscalizadoras. Em 2009, a ANSR devolveu nove caixotes com originais e duplicados de autos à Direcção-Nacional da PSP e seis ao Comando Geral da GNR. Uns foram recebidos em situação irregular ou sem documentação essencial. Outros diziam respeito a infracções cometidas há mais de dois anos (neste caso, a IGAI recomenda que se apurem os motivos que levaram à prescrição dos autos na posse das polícias).
Enviada ao presidente do Sistema de Controlo Interno da Administração Financeira do Estado e ao controlador financeiro do MAl, o relatório da IGAl deixa um recado ao Governo: “Esta realidade deverá motivar uma cuidada reflexão, sob pena de estarmos perante a completa descredibilização das entidades intervenientes em todo o processo relacionado com as infracções estradais”.