Por Nuno Crato
MAIS UMA VEZ, ao ir levar um amigo estrangeiro ao comboio, esqueci-me de escolher a velha estação de Santa Apolónia e fui levá-lo à Gare Oriente. Má escolha! Não tive outro remédio se não sair do carro e acompanhá-lo — ele jamais descobriria a tempo onde são as bilheteiras. Comprámos a passagem e levei-o à escada para a plataforma. O meu amigo olhava em volta, confuso, e perguntou-me: «Quanto tempo falta?»
Reparei então que não havia nenhum relógio à vista e amaldiçoei de novo a escolha. Em Santa Apolónia não haveria dúvida: o relógio está à vista de todos, no local onde todos o procuram, no centro, bem no topo, comandando tudo. Assim deveria ser.
É curioso que a hora, tal como hoje a conhecemos, uniformizada em 1884 com fusos referidos ao Meridiano de Greenwich, é ela própria resultado dos caminhos de ferro. Antes de os comboios encurtarem distâncias e terem horários a cumprir ao minuto, cada terra tinha a sua hora, com uns minutos de diferença das cidades colocadas a oeste ou a leste. Isso pouco importava. Cada um podia seguir a sua hora solar. Em 1800, havia algum problema que um cidadão de Évora chegasse cinco minutos atrasado a um encontro em Lisboa?
Meio século mais tarde, as viagens de comboio chocaram com essa dispersão horária. Era muito aborrecido estar sempre a acertar os relógios de bolso, que já então estavam difundidos entre os viajantes. Podia-se perder um comboio na estação de transferência simplesmente por a hora local estar uns minutos desfasada da hora no local de partida. Algumas estações obviavam o problema tendo vários relógios. É o caso das estações suíças, que tinham nas gares a hora de Berna, de Lucerna, de Zurique, de Genebra… todas diferindo umas das outras apenas por uns minutos.
A paixão dos suíços pelos relógios é proverbial. E há um historiador de ciência moderno — Peter Galison, de Harvard — que diz que a passagem de Einstein por Berna, entre 1902 e 1909, pode ter sido decisiva para a criação da teoria da relatividade. Galison explica o problema num livro fascinante — «Mapas de Poincaré e Relógios de Einstein» — publicado em Portugal pela Gradiva. A coincidência, pelo menos, existe. O grande físico formulou a relatividade restrita em 1905, num artigo publicado três anos depois de ter chegado à cidade dos relógios. É verdade, os relógios estão presentes em todas as ruas de Berna.
Há a célebre Torre do Relógio, bem no centro da cidade, a uns três minutos da casa que Einstein e a sua mulher, Mileva, ocuparam na Kramgasse, uma das artérias centrais da cidade, e parte do seu percurso diário para a repartição de patentes onde trabalhava. A casa está hoje transformada num museu e o relógio continua a funcionar, coloridamente, com marionetes que se movimentam e um galo mecânico que cacareja, para gáudio dos turistas que se amontoam na rua, à espera que o relógio bata as horas.
A Torre foi construída no século XIII e o relógio no princípio do século XVI. Em 1905, já estava coordenado electricamente com o sistema de relógios públicos da cidade, com um sistema que terá feito Einstein pensar se a simultaneidade dos acontecimentos é um conceito extensível a todos os sistemas físicos.
Mas a grande marca da paixão pelo tempo encontra-se um quinhentos metros a sul, dentro da catedral da cidade. Incrustada no púlpito está uma velha ampulheta, que o padre deverá rodar antes de começar o sermão. Não convêm que se alongue para além do razoável. O tempo é para usar, não é para perder.
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