terça-feira, 9 de novembro de 2010

MUAMMAR KADHAFI

.
Por Maria Filomena Mónica

UM DOS MAIS PERIGOSOS Lobos Maus internacionais, Kadhafi, acaba de se transformar numa Boa Avozinha. Descansem que não vou perorar sobre geopolítica, mas apenas lembrar a carreira e o carácter deste líbio peculiar. Nascido em 1942, numa família de camponeses pobres, ingressou na Escola Militar de Bengazi, onde se juntou a um grupo de nacionalistas inspirados por Nasser. Em 1965, foi enviado para Inglaterra, onde frequentou o British Army Staff College, tendo, no ano seguinte, regressado a Tripoli. Em 1969, quando liderou o golpe de Estado que destronou o rei Idris, fazia gala em usar óculos de sol e em envergar fatos de caqui. O jovem não passou desapercebido, muito menos ao chefe egípcio. Em 1970, pouco antes de morrer, Nasser confidenciou a um amigo: «Gosto de Kadhafi. Recorda-me quando tinha a idade dele.»

Em 1973, Kadhafi organizou a Revolução do Povo. Dois anos depois, publicou o primeiro volume do «Livro Verde» explicando, ou tentando explicar, o que era o socialismo árabe. Nos finais de 1970, expulsou dezenas de milhares de italianos – entre 1912 e 1934 o país fora uma colónia italiana – destruiu as bases americanas e inglesas ali estacionadas e transformou a catedral católica de Tripoli na Mesquita Gamal Adbel Nasser. Com base numa mistura de pan-nacionalismo árabe, aspectos do Welfare State e o que designava como «democracia directa», iniciou um plano de nacionalização das grandes companhias, instituiu a proibição do álcool e montou um vasto programa educativo.

Pobre e maltratada pelos ex-ocupantes, a Líbia descobrira, em 1959, uma fonte de riqueza fabulosa, o petróleo. Em 1969, já tinha ultrapassado o Kuwait como o quinto maior exportador mundial, o que deu a Kadhafi uma oportunidade de jogar um papel de relevo na crise de 1973-74. Os EUA não lhe perdoaram. Em 1982, declararam a interdição da importação do petróleo líbio e a exportação para este país de qualquer tecnologia. Em 1986, como represália pelo bombardeamento de uma discoteca em Berlim frequentada por militares norte-americanos (um atentado supostamente praticado por líbios), R. Reagan mandou bombardear Tripoli e Bengazi, tendo morto sessenta pessoas, incluindo a filha adoptiva de Kadhafi. A Líbia respondeu, enviando sobre uma base naval americana dois Scuds, os quais falharam o alvo. O «cão raivoso do Médio Oriente», como Reagan o apelidava, explodiu de fúria.

Entretanto, a suas excentricidades iam em crescendo. Kadhafi não só determinou que, fosse qual fosse o país onde se encontrasse, haveria de dormir numa tenda, como montou uma guarda pretoriana, exclusivamente composta de mulheres. Assustados, alguns países árabes começaram distanciar-se. Em 1975, Sadat dele disse estar «100% doente e possuído pelo diabo». A metamorfose de pestífero em aliado iniciou-se na década de 1990, quando Kofi Annan e Nelson Mandela o convenceram de que os suspeitos de terem posto uma bomba no avião da Pan Am que, em 1988, se despenhara sobre Lockerbie, deveriam ser julgados, a fim de as Nações Unidas suspenderem as sanções que estavam a minar a economia líbia. Curiosamente, Kadhafi fora o primeiro líder a pedir um mandato de captura internacional para Bin Laden, o que, depois do 11 de Setembro, foi recordado. Em 2003, aceitou ser o responsável por Lockerbie; três anos depois, os EUA retomaram relações diplomáticas com o seu país.

As recentes comemorações do 40.º aniversário do golpe foram transmitidas pelas televisões europeias. A 1 de Setembro último [2009], entre dançarinos bailando em cima de andas e enforcamentos simbólicos de inimigos, pude ver a História da Líbia encenada como se o país tivesse sido o centro do comércio fenício, da civilização romana e da cultura árabe. Depois, a 23, e contra o protocolo, Kadhafi discursou, nas Nações Unidas, durante uma hora e trinta e seis minutos! Após ter declarado que o Conselho de Segurança era o equivalente da Al-Qaeda, acusou os EUA de estarem propositadamente a espalhar o vírus da gripe A pelo mundo. Kadhafi pode ser o «nosso» aliado, mas não nos devemos esquecer que, na Líbia, existe um regime que proíbe a existência de qualquer tipo de oposição, que tortura os adversários e que não permite a mais vaga liberdade de expressão. Não percebo o que levou o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luís Amado, elevado agora ministro de Estado, a comparecer nas festividades de Tripoli. A realpolitik não exigia tanto.

«GQ» - Dezembro 2009