Por Baptista-Bastos
AS TELEVISÕES procuravam saber o que as pessoas pensavam dos apertões que o Orçamento previa e propunha. A resignação ou a indiferença resignada, como queiram, pareceu-me ser a nota dominante. Eis que a câmara fixa a velha. A velha semelhava uma personagem de Raul Brandão: só osso, susto e dor. Transfigurada de ventos, de afrontas, de insultos. A pergunta da jornalista sobressaltou-a. Talvez a entendesse como estranha e excessiva. Olhou a rapariga, ergueu o dorso curvado, recuperada uma antiga dignidade, e respondeu: "O que eu queria é que eles me deixassem em paz."
Eles. A abstracta identidade dos que nos mandam, nos julgam, nos submetem, nos mentem, e reescrevem, permanentemente, o nosso destino. Aquela velha seca e altiva, despertada, por uma pergunta inofensiva, para a responsabilidade de ter opinião, era a representação de uma nobreza e de uma decência que temos vindo, lentamente, a perder.
A velha não aceitava; a velha não admitia que fizessem dela o troço reles e desprezível de um aglomerado amorfo, ao qual tudo se faz e tudo se aplica. "O que eu queria é que me deixassem em paz." Mas, como a não deixavam em paz, ela reagia impelida pela raiva da impotência e pelo protesto que a debilidade não conseguiu aniquilar.
A raiva é surda e silenciosa. Acumula-se com as decepções, com a soma dos infortúnios, com a desatenção e a incúria que nos votam. Naquela expressão ("eles") tão difusa quanto marcada pelo ferrete da ignomínia habitava o desprezo que ninguém resgata. Culpados de tudo, sobretudo de não gostarem de nós, de nos omitirem, de cancelarem aquela velha ensombrecida pela idade, pelo enigma e pelo desalento, "eles" cercam-nos, assassinam a parte mais asseada das nossas vidas, destroem-nos como relação social.
A dramática frase da velha comportava, em si, os indeterminados sinais que favorecem a ruptura de uns com os outros. A legitimidade das normas foi substituída por uma ideologia que estimula o domínio do dinheiro sobre os valores. A democracia, afinal, só existe, privadamente, para uma dúzia de famílias que manda em Portugal e dispõe, como cães-de-fila, de pequenos servos para todo o serviço.
"Eles" não passam de paus mandados, os quais sustentam o dispositivo de poder que mantém a casta, a casa e o sangue. É instrutivo seguir a trajectória de quase todos os antigos dirigentes políticos, depois do "cumprimento" de funções. A especificidade da sociedade democrática foi, simplesmente, absorvida pela vitória do "mercado" com os seus guardiães implacáveis e os pequenos ou grandes ajustes que o sistema exige.
A frase da velha é, também, uma forma de resistência. Resistência à infâmia com que "eles" nos pretendem envolver.
.AS TELEVISÕES procuravam saber o que as pessoas pensavam dos apertões que o Orçamento previa e propunha. A resignação ou a indiferença resignada, como queiram, pareceu-me ser a nota dominante. Eis que a câmara fixa a velha. A velha semelhava uma personagem de Raul Brandão: só osso, susto e dor. Transfigurada de ventos, de afrontas, de insultos. A pergunta da jornalista sobressaltou-a. Talvez a entendesse como estranha e excessiva. Olhou a rapariga, ergueu o dorso curvado, recuperada uma antiga dignidade, e respondeu: "O que eu queria é que eles me deixassem em paz."
Eles. A abstracta identidade dos que nos mandam, nos julgam, nos submetem, nos mentem, e reescrevem, permanentemente, o nosso destino. Aquela velha seca e altiva, despertada, por uma pergunta inofensiva, para a responsabilidade de ter opinião, era a representação de uma nobreza e de uma decência que temos vindo, lentamente, a perder.
A velha não aceitava; a velha não admitia que fizessem dela o troço reles e desprezível de um aglomerado amorfo, ao qual tudo se faz e tudo se aplica. "O que eu queria é que me deixassem em paz." Mas, como a não deixavam em paz, ela reagia impelida pela raiva da impotência e pelo protesto que a debilidade não conseguiu aniquilar.
A raiva é surda e silenciosa. Acumula-se com as decepções, com a soma dos infortúnios, com a desatenção e a incúria que nos votam. Naquela expressão ("eles") tão difusa quanto marcada pelo ferrete da ignomínia habitava o desprezo que ninguém resgata. Culpados de tudo, sobretudo de não gostarem de nós, de nos omitirem, de cancelarem aquela velha ensombrecida pela idade, pelo enigma e pelo desalento, "eles" cercam-nos, assassinam a parte mais asseada das nossas vidas, destroem-nos como relação social.
A dramática frase da velha comportava, em si, os indeterminados sinais que favorecem a ruptura de uns com os outros. A legitimidade das normas foi substituída por uma ideologia que estimula o domínio do dinheiro sobre os valores. A democracia, afinal, só existe, privadamente, para uma dúzia de famílias que manda em Portugal e dispõe, como cães-de-fila, de pequenos servos para todo o serviço.
"Eles" não passam de paus mandados, os quais sustentam o dispositivo de poder que mantém a casta, a casa e o sangue. É instrutivo seguir a trajectória de quase todos os antigos dirigentes políticos, depois do "cumprimento" de funções. A especificidade da sociedade democrática foi, simplesmente, absorvida pela vitória do "mercado" com os seus guardiães implacáveis e os pequenos ou grandes ajustes que o sistema exige.
A frase da velha é, também, uma forma de resistência. Resistência à infâmia com que "eles" nos pretendem envolver.
«DN» de 3 Nov 10