quarta-feira, 10 de novembro de 2010

'Déjà vu'

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Por João Paulo Guerra

QUEM TENHA participado, testemunhado ou simplesmente assistido como mero espectador ao fim do regime do chamado Estado Novo anda agora a tropeçar frequentemente em situações que deixam uma vaga percepção de déjà vu.

Não falo em movimentos de capitães ou conspiratas de generais, mas falo em deslocações de movimentos sociais que, de um dia para outro, alteram substancialmente a relação das forças no enfrentamento político. O mais recente déjà vu foi o duríssimo ataque da hierarquia da Igreja Católica à política desumanizada consignada no acordo de viabilização orçamental entre o Governo e o PSD. Os apelos à "resistência" a tal acordo, ao mesmo tempo que os bispos denunciavam a falta de verdade nos centros de decisão da gestão pública, são de uma dureza rara. Como comentava uma socióloga no DN, "o implícito foi bastante explícito".

No estertor do fascismo, também o regime foi perdendo e perdeu o pilar da fé. A persistência cega na guerra, cada vez mais brutal, destruidora e sanguinária, os massacres, a injustiça social e a repressão levaram a um implícito, bastante menos explícito, afastamento da Igreja em relação ao regime. Eram tão surpreendentes certas homilias, como dar pela presença de jovens oficiais nos comícios da oposição democrática. Ou simplesmente ver figuras da cultura a desertar das hostes do poder.

Com todas as abissais diferenças entre dois tempos que não têm comparação, as críticas frontais da hierarquia da Igreja à falta de verdade no jogo político a que agora se assiste fizeram recordar outros tempos, quando um poder se desmoronava em ruínas e uma classe política apodrecida persistia na mentira como derradeira colete de salvação. Diziam que "reinava a calma em todo o país".
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«DE» de 10 Nov 10