DAS COISAS QUE FAÇO com prazer é falar dele, Gonzalo Torrente Ballester, o romancista que há exactamente cem anos, nesta manhã de Santo António, nascia no vale de Serantes, a dois passos do Ferrol (Galiza), e de quem tive a sorte de ser muito amigo. E o privilégio de aprender quanto sei de algumas coisas importantes para mim.
Diz-se que os artistas não têm biografia, têm obra. E que é melhor que assim seja porque as vidinhas deles soem ser um desastre humano de proporções insuspeitas, muito em particular as dos escritores. Neste caso está longe de ser verdade: a biografia de GTB faz jus à magnitude da sua obra, não pela quantidade nem a importância dos feitos mas pela qualidade humana com que se conduziu neste mundo, comportamento que fez dele talvez o último dos cavalheiros que eu conheci, uma pessoa cabal, um ser humano completo, inteligente e divertido, de rara compaixão, um exemplo humilde de rectidão moral e de bondade não contaminada.
Acendeu-se naquela manhã atlântica a luz de um escritor que atravessaria o século, que resistiria todas as suas tragédias e acabaria por nos deixar um legado de extraordinária importância sob a forma de uma obra literária que não tem par na Espanha contemporânea e cujo alcance nos sobreviverá a todos longamente. Admirador de Portugal, país que julgava o seu mais afim, não escondia o gosto pela literatura portuguesa: Eça e a geração de 70 eram a sua devoção; Pessoa o seu poeta e Torga o seu descobrimento tardio: três marcos de um muito mais vasto conhecimento lusitano com o qual se identificava, como sujeito atlântico que sempre fez questão de se reconhecer.
Ficou apenas uma coisa por fazer, que lamentarei sempre: passar uns dias de verão em Sintra (“É inevitável imaginar, por trás das janelas esconsas, vidas extraordinárias, sucessos suculentos, sem que isto seja exagerar, pois toda a vida humana, se se conhecesse na sua substância e não apenas na aparência, contada, seria extraordinária e única: contada com graça, entenda-se. Mas isto não o sabem alguns escritores”), ir de charrete à vila nas manhãs de neblina, mantinha escocesa sobre as pernas e um ar de romântico inglês em férias...
A luz de GTB iluminou as vidas de quantos o conheceram. A minha alterou-a completamente: fiquei seu eterno devedor e não passa dia que o não lembre. Restam-me as memórias e os seus livros, muitos dos quais se podem encontrar bem traduzidos em português. Ninguém o deixou escrito melhor do que ele próprio: “Quando morre um escritor, o melhor que se pode fazer é procurar nos seus livros o testemunho da sua relação com a realidade, e que o leitor o faça seu como puder e enquanto puder. Que não desespere na busca: por trás da obscuridade aparece sempre alguma coisa”.