sábado, 19 de junho de 2010

Uma obra menor

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Por Antunes Ferreira

MORREU JOSÉ SARAMAGO. Curta a notícia, grande o pesar. Desapareceu o único Nobel Português – a solo. Egas Moniz fora-o também, porém a meias.

Normalmente, uma ocasião destas é motivo mais do que sobejo para dizer bem do falecido. Dos falecidos. Pelo Mundo inteiro esta prática – que vem, presumo, desde que o primeiro homem o foi, porque começou a falar – é tão habitual que a admiração surge quando se diz mal. E quando assim acontece, vem um tanto afastado da data do óbito. Há excepções, todas as regras as têm.

Tive o privilégio de conhecer Saramago, de com ele conversar, de almoçar com ele por diversas, bastantes mesmo, vezes. Homem difícil, não pela frontalidade, mas pelo feitio, de algum modo pouco simpático. Um dia, em meados de 1976, na Varina da Madragoa, onde quase diariamente almoçava com a sua mulher de então, a Isabel da Nóbrega, foi ele que se me dirigiu, pela primeira vez.

Fiquei um tanto admirado. Admirador confesso dos seus livros, para mim tratava-se de uma honra. «Não quero incomodá-lo. Sei quem é e que foi para o Diário de Notícias depois de eu ter saído de lá. Quero apenas, desejar-lhe sorte, porque bem precisa dela. É uma casa complicada. Mas, pelo que sei de si, acho que se vai desenvencilhar».

Agradeci-lhe e perguntei-lhe se queria tomar o café connosco, bem como a Isabel, que conhecia bem, era colaboradora do DN e quando ali ia entregar os textos dela dava-me uns dedos de conversa amável. O jornalista e escritor olhou-me através das lentes dos seus óculos, penso que terá reparado na minha mulher e disse, com uma certa secura: «Um dia destes». Só.

Anos depois, creio que em Outubro de 90, encontrámo-nos na Bertrand. Eu tinha acabado de ler o seu livro mais recente, a «História do Cerco de Lisboa» - de um jacto, de tal modo me entusiasmara. O enredo, admirável, era, simultaneamente um isco a que não se podia escapar e um passo enorme no seu caminho de ganhador.

Fomos almoçar. E exaltei o que me tinha obrigado a duas noites em claro, dei-lhe os parabéns, mas, sobretudo, o meu agradecimento pelo prazer que me proporcionara. Limitou-se a acenar com a cabeça, como que sendo o suficiente para me responder.

Mas, de súbito atirou-me com uma pergunta calina: de qual das suas obras gostara eu mais. Não tive dúvidas em responder-lhe (e nem hoje as tenho) que era precisamente a «História do Cerco de Lisboa». Mediu-me de novo. «Isso nem parece seu. Trata-se da minha obra menor».

Ontem, quando me chegou a notícia do seu desaparecimento, lembrei-me desta estória. E do seu feitio frequentemente desagradável. E do telefonema que lhe fiz aquando do Nobel. E da resposta dele, que foi apenas o renovar do comentário antigo. «Continua a dizer que do que gosta mais é da minha obra menor»? Continuava – e continuo.