quarta-feira, 23 de junho de 2010

O Certo e o Errado

.
Por Baptista-Bastos

UM JORNAL ESCREVEU, em editorial, sobre José Saramago: "Esteve, muitas vezes, do lado errado da História." Infere-se, deste duro juízo moral, que o feliz editorialista conhece o lado certo da História, e que ele próprio se situa, intrepidamente, nesse lado. E que é o lado certo ou errado da História? O lado certo será límpido e asseadíssimo; o errado, por antinomia, sujo, abjecto, torpe.

O simplismo da afirmação retém, em si, a totalidade das ideias feitas; e a estrutura do conceito é reveladora da preguiça mental, invariavelmente associada à atracção exercida pelos "vencedores" da História sobre aqueles cujo horizonte de valores é unívoco e maniqueísta. Claro que a frase do editorialista autoriza-nos, pelas razões expostas, a considerá-la uma parvoíce. Até porque se entende, com clareza, o que, verdadeiramente, ele deseja atingir.

Que é um "vencedor" da História? Thiers, o carniceiro dos comunards? E estes serão, mesmo, os "vencidos"? Franco foi o "vencedor" da Guerra Civil em Espanha?; Pinochet foi-o, no Chile?; e Videla na Argentina? As interpretações clássicas conduzem, habitualmente, a concessões ao que convém dizer. E o que convém dizer, nesta como em outras matérias afins, faz parte da "submissão" a um particular modelo de pensamento.

Saramago foi um comunista desobediente; nunca dissidente porque não tolerava as derivas morais, periodicamente em moda. Esteve sempre onde a consciência o determinava. Em Chiapas, nas batalhas rurais, como a protestar contra as iniquidades de uma lei de imigração nas Canárias ou em Madrid. Cortou com Cuba porque não sabia reduzir o superior ao inferior. O seu rosto grave nunca perdeu a preocupação do mundo. Havia nele algo de sartriano: o gosto de se envolver, a exultação em se arriscar, a felicidade de desafiar. Não estava de perfil para o "acontecimento"; escolhera a exigência dos factos para melhor compreender o coração dos homens. Um ser desta estirpe contrairia inimigos ferozes e amigos efusivos. O seu lado era esse, o do compromisso, numa época funesta em que os intelectuais, por cansaço, indiferença ou estratégia, haviam desistido de ser cidadãos.

Talvez não tivesse razão, algumas vezes; talvez. Mas nunca deixou de exercer o acordo ético e ideológico que implica o despique e que recusa qualquer espécie de "arbitragem". Sobretudo, nunca emudeceu quando as vozes de muitos outros se cumpliciavam com a cobardia. Esteve no lado que envolve a relação problemática entre poder e liberdade. Quero dizer: escolheu a instabilidade, as ameaças e os riscos. E é um dos maiores escritores portugueses de sempre.
.
«DN» de 23 Jun 10