Por Ferreira Fernandes
QUANDO EU TINHA seis anos e estava na 1ª classe, uma prima que tinha as pernas mais compridas que as minhas apresentou-me a Teresinha. Esta ofereceu-me a imagem de uma santinha, de cores suaves. Estavam as três a sorrir para mim e reparei que as mais novas (as duas que não tinham lírios à volta nem aura) gozavam-me. Corri atrás da minha prima que se me escapou como era costume, ignorei a Teresinha e, horas depois, descobri a imagem amarfanhada no bolso dos calções. Deitei fora a santinha sem perceber que marcava ali o meu destino. Nunca mais suportei a pergunta piegas: “Queres ser meu amigo?”
Não que me tenha tornado anti-amiguista primário. Tenho amigos, mas selecciono-os rigorosamente. Aos candidatos e candidatas convido a cavalgarmos até à melhor vista do Sol a cair atrás do Grand Canyon e eventualmente fumamos um Marlboro – se ao fim do lusco-fusco nenhuma palavra for trocada, tenho um(a) amigo(a) até ao fim da vida. Não suporto é, repito, o “queres ser meu amigo?”. Evidentemente, não estou no Facebook.
Quer dizer, estou mas sob pseudónimos. A única vez que me enterneceu uma mão suplicante de afectos foi a do Tavares, num encontro de antigos alunos do luandense Liceu Salvador Correia. Gordo e careca ele andava com um cartaz ao peito com foto colada. À volta da imagem a preto e branco de um adolescente guedelhudo estava um círculo vermelho que sublinhava esta frase em maiúsculas: “ESTE SOU EU!” Ele parava nos grupos, apontava a foto, dizia ser “o Tavares” e “do 6º C, 1963-64” e o mais que recebia era um ou outro meio-sorriso. A mim, ele reconheceu-me num abraço apertado: “Olha o terror das provetas! Ganda Seixas!”, lançou-me, comovido. Fui sempre “Fernandes” no meu liceu e, pretendendo ir para Economia, nunca entrei num laboratório. Disse-lhe: “Estás na mesma, Tavares!” Estava a ser sincero, nunca o tinha visto.
O equívoco não impediu uma tarde de recordações comuns em que pelo menos metade delas, as evocadas por mim, provinham da minha atenção em anteriores encontros de antigos alunos. “Lembraste do Lucas, o filho do professor?”, perguntei. Não nos lembrávamos nós de outra coisa – embora pela minha parte fosse impossível: quando entrei para o liceu já o Lucas tinha saído e era uma lenda. Passámos, eu e o Tavares, uma tarde inolvidável. Eu queria ser amigo dele, ele queria ser meu, e nem pedimos autorizações tais elas eram óbvias. Trocámos telefones. Nunca lhe liguei, com receio de vir a descobrir que o Tavares talvez tivesse estudado no liceu António Enes, em Lourenço Marques, e nunca pôs os pés em Luanda.
Mas as duas coisas concorreram para eu entrar para o Facebook e com falsos nomes. Entrar, para saborear amizades antigas (inventadas, mas antigas); sob nomes falsos, para não me desiludir. A coisa obriga-me a estudos minuciosos, a fotos da época e a uma forte convicção de que as novas tecnologias vieram para me servir.
Como, por definição, os meus personagens fantasmas não têm passado nem tão-pouco tiveram tempo de fazer amigos antigos a quem dê ganas de retomar contactos, eu próprio tomo a iniciativa em insinuar-me. Não podendo só apresentar um inexistente “Cristóvão Crisóstomo” (não procurem, esse ainda não inscrevi), invento-lhe um passado num lugar muito social – e parto à pesca (“queres ser meu amigo?”) entre quem já tem conta no Facebook e eu sei ter frequentado aquele tal lugar. Privilegio o nicho dos liceus porque, aí, a nostalgia é segura e as hesitações de memória são justificáveis. Tenho tido sucesso e eu, o falso, já pus em contacto verdadeiros antigos amigos, um com o outro. A minha coroa de glória foi quando alguém escreveu: “Éramos um trio do camandro!” E eu e o outro comentámos logo: “Se éramos!” Rimos os três por estas respostas simultâneas. De facto, só mesmo as amizades antigas permitem estas transmissões de pensamento.
.Se um desconhecido lhe estender um “queres ser meu amigo?”, hesite. Posso ser eu a inventar passados e a tentar curar-me de traumas da infância
QUANDO EU TINHA seis anos e estava na 1ª classe, uma prima que tinha as pernas mais compridas que as minhas apresentou-me a Teresinha. Esta ofereceu-me a imagem de uma santinha, de cores suaves. Estavam as três a sorrir para mim e reparei que as mais novas (as duas que não tinham lírios à volta nem aura) gozavam-me. Corri atrás da minha prima que se me escapou como era costume, ignorei a Teresinha e, horas depois, descobri a imagem amarfanhada no bolso dos calções. Deitei fora a santinha sem perceber que marcava ali o meu destino. Nunca mais suportei a pergunta piegas: “Queres ser meu amigo?”
Não que me tenha tornado anti-amiguista primário. Tenho amigos, mas selecciono-os rigorosamente. Aos candidatos e candidatas convido a cavalgarmos até à melhor vista do Sol a cair atrás do Grand Canyon e eventualmente fumamos um Marlboro – se ao fim do lusco-fusco nenhuma palavra for trocada, tenho um(a) amigo(a) até ao fim da vida. Não suporto é, repito, o “queres ser meu amigo?”. Evidentemente, não estou no Facebook.
Quer dizer, estou mas sob pseudónimos. A única vez que me enterneceu uma mão suplicante de afectos foi a do Tavares, num encontro de antigos alunos do luandense Liceu Salvador Correia. Gordo e careca ele andava com um cartaz ao peito com foto colada. À volta da imagem a preto e branco de um adolescente guedelhudo estava um círculo vermelho que sublinhava esta frase em maiúsculas: “ESTE SOU EU!” Ele parava nos grupos, apontava a foto, dizia ser “o Tavares” e “do 6º C, 1963-64” e o mais que recebia era um ou outro meio-sorriso. A mim, ele reconheceu-me num abraço apertado: “Olha o terror das provetas! Ganda Seixas!”, lançou-me, comovido. Fui sempre “Fernandes” no meu liceu e, pretendendo ir para Economia, nunca entrei num laboratório. Disse-lhe: “Estás na mesma, Tavares!” Estava a ser sincero, nunca o tinha visto.
O equívoco não impediu uma tarde de recordações comuns em que pelo menos metade delas, as evocadas por mim, provinham da minha atenção em anteriores encontros de antigos alunos. “Lembraste do Lucas, o filho do professor?”, perguntei. Não nos lembrávamos nós de outra coisa – embora pela minha parte fosse impossível: quando entrei para o liceu já o Lucas tinha saído e era uma lenda. Passámos, eu e o Tavares, uma tarde inolvidável. Eu queria ser amigo dele, ele queria ser meu, e nem pedimos autorizações tais elas eram óbvias. Trocámos telefones. Nunca lhe liguei, com receio de vir a descobrir que o Tavares talvez tivesse estudado no liceu António Enes, em Lourenço Marques, e nunca pôs os pés em Luanda.
Mas as duas coisas concorreram para eu entrar para o Facebook e com falsos nomes. Entrar, para saborear amizades antigas (inventadas, mas antigas); sob nomes falsos, para não me desiludir. A coisa obriga-me a estudos minuciosos, a fotos da época e a uma forte convicção de que as novas tecnologias vieram para me servir.
Como, por definição, os meus personagens fantasmas não têm passado nem tão-pouco tiveram tempo de fazer amigos antigos a quem dê ganas de retomar contactos, eu próprio tomo a iniciativa em insinuar-me. Não podendo só apresentar um inexistente “Cristóvão Crisóstomo” (não procurem, esse ainda não inscrevi), invento-lhe um passado num lugar muito social – e parto à pesca (“queres ser meu amigo?”) entre quem já tem conta no Facebook e eu sei ter frequentado aquele tal lugar. Privilegio o nicho dos liceus porque, aí, a nostalgia é segura e as hesitações de memória são justificáveis. Tenho tido sucesso e eu, o falso, já pus em contacto verdadeiros antigos amigos, um com o outro. A minha coroa de glória foi quando alguém escreveu: “Éramos um trio do camandro!” E eu e o outro comentámos logo: “Se éramos!” Rimos os três por estas respostas simultâneas. De facto, só mesmo as amizades antigas permitem estas transmissões de pensamento.
«DN» e «JN» de 8 Ago 10