Por Maria Filomena Mónica
POR NÃO GOSTAR de Hillary Clinton, por desconfiar de Barack Obama e por suspeitar de John McCain, decidira não prestar atenção à campanha americana. Até que aconteceram duas coisas: McCain escolheu Sarah Palin para vice-presidente e li Dreams from My Father de Obama. Tendo declarado ao meu filho que achava a Palin cómica, admoestou-me, afirmando não compreender como, em vez de prestar atenção ao único candidato diferente, me entretinha a seguir as piruetas de uma mentecapta. O facto de ter sido ele, o mais anarquista dos seres, a obrigar-me a abandonar o cinismo, e não alguém da minha idade, não é despiciendo, uma vez que explica a maneira como Obama chegou à Casa Branca.
As memórias de Obama, Dreams from My Father, são uma espécie de bildungsroman, escritas aos 33 anos, ou seja, antes de ter entrado na política. Nelas, ele relata, sem auto-comiseração, a infância e juventude no Hawai e na Indonésia e, depois, aos 17 anos, a ida para o continente dos EUA. Por pretender que o filho admirasse o progenitor, a mãe, uma branca, contara-lhe histórias maravilhosas de África, o que fez com que o miúdo jamais tivesse sentido a raça como um problema, até porque, numa ilha com uma multiplicidade de etnias, tal era possível.
Há muito que leio memórias de políticos enquanto jovens, mas, se exceptuar My Early Life, de Churchill (uma obra cobrindo igualmente o período da juventude, mas redigida quando o autor ultrapassara os sessenta anos) não consigo lembrar-me de outro livro que se eleve acima das banalidades autoglorificatórias que os políticos têm por habito produzir. As memórias de Obama são uma obra-prima literária.
Até chegar à Universidade de Los Angeles, a sua identidade era de tal forma repartida que toda a gente o tratava por Barry, e não por Barack, nome que só adoptou após uma colega universitária lhe ter declarado que o último era mais giro do que o primeiro. Depois de ler a obra, passei a gostar do homem, o que, apesar do que dizem os apparatchicks, é importante. Admirei a sua insatisfação quando descobriu que não sabia a que grupo, étnico ou social, pertencia, como admirei o juízo revelado quando, após o ritual dos fuminhos – cannabis e cocaína – concluiu que a via hedonista o não interessava.
Só quem conhece os EUA compreenderá a sua conversão, tardia, ao Cristianismo. Filho e netos de ateus, Obama sentia um vácuo na sua vida, sentimento que a ausência de uma figura paterna contribuiu para agravar, tendo-se então convencido – o que é significativo – de que só através das igrejas conseguiria ter influência junto das comunidades negras.
Quando, após se ter licenciado por Columbia, decidiu ir para Chicago, o que o marcou foi a figura de Harold Washington, o Presidente da Câmara, negro, daquela cidade. Começou a pensar que talvez gostasse de fazer política. Uma das características da sua personalidade é a confiança em si próprio. Poderíamos imaginar que o jovem, que entrevimos através destas memórias, acabaria na delinquência, mas Obama quis sempre mais e melhor. Como explicou, «não nos podemos satisfazer enquanto a única forma de mobilidade social permitida aos negros for a mudança de um gueto pequeno para um maior».
Mais divididos do que nunca depois da guerra no Iraque, os americanos, brancos e negros, acreditaram em quem lhes dizia: «Yes, We Can». Numa época de pessimismo, Obama permitiu que os EUA pudessem exibir «a audácia da esperança». Há quatro anos, quando se apresentou à Convenção Nacional Democrática, era um senador desconhecido do Illinois. Nem os seus admiradores se arriscariam a pensar que, dentro de poucos anos, seria Presidente dos EUA. Mas foi isso que aconteceu. Porque, já então, ele o pensava.
Estou consciente de que o voto num homem carismático pode degenerar no populismo, mas o poder de atracção de Obama não reside em qualquer traço irracional, mas na serenidade. Por outro lado, o seu cepticismo quanto à forma de transformar o mundo levou-o a concluir que todas as intervenções, no seu país ou fora dele, têm de ser feitas lentamente. Desde cedo que desprezou «as pessoas que dão prioridade ao sonho relativamente à realidade, à impotência relativamente ao compromisso». Por muito estranho que pareça, dei comigo a pensar em Burke.
POR NÃO GOSTAR de Hillary Clinton, por desconfiar de Barack Obama e por suspeitar de John McCain, decidira não prestar atenção à campanha americana. Até que aconteceram duas coisas: McCain escolheu Sarah Palin para vice-presidente e li Dreams from My Father de Obama. Tendo declarado ao meu filho que achava a Palin cómica, admoestou-me, afirmando não compreender como, em vez de prestar atenção ao único candidato diferente, me entretinha a seguir as piruetas de uma mentecapta. O facto de ter sido ele, o mais anarquista dos seres, a obrigar-me a abandonar o cinismo, e não alguém da minha idade, não é despiciendo, uma vez que explica a maneira como Obama chegou à Casa Branca.
As memórias de Obama, Dreams from My Father, são uma espécie de bildungsroman, escritas aos 33 anos, ou seja, antes de ter entrado na política. Nelas, ele relata, sem auto-comiseração, a infância e juventude no Hawai e na Indonésia e, depois, aos 17 anos, a ida para o continente dos EUA. Por pretender que o filho admirasse o progenitor, a mãe, uma branca, contara-lhe histórias maravilhosas de África, o que fez com que o miúdo jamais tivesse sentido a raça como um problema, até porque, numa ilha com uma multiplicidade de etnias, tal era possível.
Há muito que leio memórias de políticos enquanto jovens, mas, se exceptuar My Early Life, de Churchill (uma obra cobrindo igualmente o período da juventude, mas redigida quando o autor ultrapassara os sessenta anos) não consigo lembrar-me de outro livro que se eleve acima das banalidades autoglorificatórias que os políticos têm por habito produzir. As memórias de Obama são uma obra-prima literária.
Até chegar à Universidade de Los Angeles, a sua identidade era de tal forma repartida que toda a gente o tratava por Barry, e não por Barack, nome que só adoptou após uma colega universitária lhe ter declarado que o último era mais giro do que o primeiro. Depois de ler a obra, passei a gostar do homem, o que, apesar do que dizem os apparatchicks, é importante. Admirei a sua insatisfação quando descobriu que não sabia a que grupo, étnico ou social, pertencia, como admirei o juízo revelado quando, após o ritual dos fuminhos – cannabis e cocaína – concluiu que a via hedonista o não interessava.
Só quem conhece os EUA compreenderá a sua conversão, tardia, ao Cristianismo. Filho e netos de ateus, Obama sentia um vácuo na sua vida, sentimento que a ausência de uma figura paterna contribuiu para agravar, tendo-se então convencido – o que é significativo – de que só através das igrejas conseguiria ter influência junto das comunidades negras.
Quando, após se ter licenciado por Columbia, decidiu ir para Chicago, o que o marcou foi a figura de Harold Washington, o Presidente da Câmara, negro, daquela cidade. Começou a pensar que talvez gostasse de fazer política. Uma das características da sua personalidade é a confiança em si próprio. Poderíamos imaginar que o jovem, que entrevimos através destas memórias, acabaria na delinquência, mas Obama quis sempre mais e melhor. Como explicou, «não nos podemos satisfazer enquanto a única forma de mobilidade social permitida aos negros for a mudança de um gueto pequeno para um maior».
Mais divididos do que nunca depois da guerra no Iraque, os americanos, brancos e negros, acreditaram em quem lhes dizia: «Yes, We Can». Numa época de pessimismo, Obama permitiu que os EUA pudessem exibir «a audácia da esperança». Há quatro anos, quando se apresentou à Convenção Nacional Democrática, era um senador desconhecido do Illinois. Nem os seus admiradores se arriscariam a pensar que, dentro de poucos anos, seria Presidente dos EUA. Mas foi isso que aconteceu. Porque, já então, ele o pensava.
Estou consciente de que o voto num homem carismático pode degenerar no populismo, mas o poder de atracção de Obama não reside em qualquer traço irracional, mas na serenidade. Por outro lado, o seu cepticismo quanto à forma de transformar o mundo levou-o a concluir que todas as intervenções, no seu país ou fora dele, têm de ser feitas lentamente. Desde cedo que desprezou «as pessoas que dão prioridade ao sonho relativamente à realidade, à impotência relativamente ao compromisso». Por muito estranho que pareça, dei comigo a pensar em Burke.
«GQ» - Fevereiro/Março 2009