Por Guilherme Valente
O MEU PAI, advogado em Leiria, encarnou o melhor do espírito da República, de que foi militante intrépido. Um liberal social - expressão que encontro para o designar, pelo que dele ainda pude conhecer e, sobretudo, pelo que dele me contaram -, combateu pela democracia e a igualdade social, sofreu, foi preso e deportado. Nunca confundiu as ideias com o carácter das pessoas que as defendiam, respeitou sempre e teve o respeito dos adversários, alguns deles seus grandes amigos. Com a minha Mãe, pessoa humilde, quase sem instrução, mas de fina inteligência e fé, estiveram sempre ao lado dos mais desfavorecidos. Isso mesmo foi gratamente lembrado por Amigos meus num encontro recente na nossa Leiria.
O meu pai matriculou-me na escola de Santo Estêvão, a escola primária frequentada pela gente mais pobre da minha Terra. Nessa escola confirmei o que aprendi com ele, com as suas palavras e o exemplo da sua vida: a inteligência, a generosidade, a lealdade, o sentido de justiça, o espírito de aventura, o sonho, não são qualidades sociais, são qualidades humanas.
Muitos dos meus colegas, queridos Amigos que nunca esquecerei, se não a maioria, iam descalços para a escola.
Um dia, ao fim da tarde, quando brincava com alguns deles na pequena quinta onde nasci, o meu pai chegou e viu que eu me tinha descalçado também, descoberta e prazer do miúdo que eu era. À noite, tranquilamente, disse-me: «O que tens de fazer não é tirar os sapatos, mas fazeres sempre o que estiver ao teu alcance para que toda gente possa andar calçada».
Se o leitor substituir «sapatos» por «conhecimento» compreenderá o que pode ser uma metáfora expressiva do crime que continua a ser cometido no nosso sistema educativo. Em vez de calçar todos os alunos, o eduquês, o Ministério, empenham-se em tirar os sapatos a todos.
E a verdade é que se não conseguem, felizmente, acabar com os «ricos», porque estes têm os meios que têm e podem procurar o ensino privado ou estudar no estrangeiro, conseguem, estão a conseguir tornar todos mais «pobres», descer o nível de todos, mas prejudicando sobretudo os mais pobres, os que entram na escola quase sem nada e a abandonam, quase todos, sem coisa nenhuma. Não é óbvio?
(Para quem, tendo acompanhado o que escrevi, não tenha percebido o que eu e os meus amigos designamos com a expressão eduquês (Marçal Grilo criara-a para designar apenas a linguagem frequentemente incompreensível e iletrada dos «especialistas» da educação), digo, sumariamente, que é uma mistura de ideologia igualitarista – reaccionária aos valores da modernidade, geradora, afinal, como se sabe, de maior desigualdade - e teorias pedagógicas ditas «novas», mas velhíssimas, que frequentemente ocultam ou disfarçam uma grande ignorância e ausência de domínio do conhecimento e dos saberes que contam, que era suposto e é imperativo a escola transmitir e promover.)
Supostamente em nome da não discriminação de quem não tem acesso à cultura em casa, o eduquês desvaloriza, reduz até ao ridículo (ao trágico, na realidade; ver as aberrações das provas, lúcida e corajosamente criticadas por Nuno Crato), suprimem a cultura, desvalorizam os saberes, o conhecimento que conta. Estupidificam para anular as diferenças, em vez de elevar todos, apoiando (como deviam, mas não sabem ou não querem fazer) os que apresentam mais dificuldades. Odeiam e impedem a escola e o ensino que revelaria as diferentes capacidades e vocações de todos, uma escola e um ensino que procurasse levá-las tão longe quanto cada um pudesse e quisesse.
Claro que o eduquês convém a muita gente, porque há sempre quem prefira não fazer nada, não assumir responsabilidade nenhuma, e o facilitismo, que a lógica do eduquês impõe, suscita e convive bem com isso. Foi também por isso que lavrou como um incêndio.
Cúmulo de delírio fanático, de estupidez que «mata». Que «mata» pessoas e está a matar o País.
O MEU PAI, advogado em Leiria, encarnou o melhor do espírito da República, de que foi militante intrépido. Um liberal social - expressão que encontro para o designar, pelo que dele ainda pude conhecer e, sobretudo, pelo que dele me contaram -, combateu pela democracia e a igualdade social, sofreu, foi preso e deportado. Nunca confundiu as ideias com o carácter das pessoas que as defendiam, respeitou sempre e teve o respeito dos adversários, alguns deles seus grandes amigos. Com a minha Mãe, pessoa humilde, quase sem instrução, mas de fina inteligência e fé, estiveram sempre ao lado dos mais desfavorecidos. Isso mesmo foi gratamente lembrado por Amigos meus num encontro recente na nossa Leiria.
O meu pai matriculou-me na escola de Santo Estêvão, a escola primária frequentada pela gente mais pobre da minha Terra. Nessa escola confirmei o que aprendi com ele, com as suas palavras e o exemplo da sua vida: a inteligência, a generosidade, a lealdade, o sentido de justiça, o espírito de aventura, o sonho, não são qualidades sociais, são qualidades humanas.
Muitos dos meus colegas, queridos Amigos que nunca esquecerei, se não a maioria, iam descalços para a escola.
Um dia, ao fim da tarde, quando brincava com alguns deles na pequena quinta onde nasci, o meu pai chegou e viu que eu me tinha descalçado também, descoberta e prazer do miúdo que eu era. À noite, tranquilamente, disse-me: «O que tens de fazer não é tirar os sapatos, mas fazeres sempre o que estiver ao teu alcance para que toda gente possa andar calçada».
Se o leitor substituir «sapatos» por «conhecimento» compreenderá o que pode ser uma metáfora expressiva do crime que continua a ser cometido no nosso sistema educativo. Em vez de calçar todos os alunos, o eduquês, o Ministério, empenham-se em tirar os sapatos a todos.
E a verdade é que se não conseguem, felizmente, acabar com os «ricos», porque estes têm os meios que têm e podem procurar o ensino privado ou estudar no estrangeiro, conseguem, estão a conseguir tornar todos mais «pobres», descer o nível de todos, mas prejudicando sobretudo os mais pobres, os que entram na escola quase sem nada e a abandonam, quase todos, sem coisa nenhuma. Não é óbvio?
(Para quem, tendo acompanhado o que escrevi, não tenha percebido o que eu e os meus amigos designamos com a expressão eduquês (Marçal Grilo criara-a para designar apenas a linguagem frequentemente incompreensível e iletrada dos «especialistas» da educação), digo, sumariamente, que é uma mistura de ideologia igualitarista – reaccionária aos valores da modernidade, geradora, afinal, como se sabe, de maior desigualdade - e teorias pedagógicas ditas «novas», mas velhíssimas, que frequentemente ocultam ou disfarçam uma grande ignorância e ausência de domínio do conhecimento e dos saberes que contam, que era suposto e é imperativo a escola transmitir e promover.)
Supostamente em nome da não discriminação de quem não tem acesso à cultura em casa, o eduquês desvaloriza, reduz até ao ridículo (ao trágico, na realidade; ver as aberrações das provas, lúcida e corajosamente criticadas por Nuno Crato), suprimem a cultura, desvalorizam os saberes, o conhecimento que conta. Estupidificam para anular as diferenças, em vez de elevar todos, apoiando (como deviam, mas não sabem ou não querem fazer) os que apresentam mais dificuldades. Odeiam e impedem a escola e o ensino que revelaria as diferentes capacidades e vocações de todos, uma escola e um ensino que procurasse levá-las tão longe quanto cada um pudesse e quisesse.
Claro que o eduquês convém a muita gente, porque há sempre quem prefira não fazer nada, não assumir responsabilidade nenhuma, e o facilitismo, que a lógica do eduquês impõe, suscita e convive bem com isso. Foi também por isso que lavrou como um incêndio.
Cúmulo de delírio fanático, de estupidez que «mata». Que «mata» pessoas e está a matar o País.