quarta-feira, 12 de maio de 2010

Manuel Alegre

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Por Baptista-Bastos

HAVIA, TALVEZ, uma possibilidade criadora neste PS, acaso possuísse a grandeza de desanuviar a tensão que nele próprio quase explode. Mas o PS, este PS, perdeu menções, esqueceu o brio da história de muitos dos seus militantes e dirigentes, move-se ao sabor dos ventos e inverteu, definitivamente?, o papel que poderia representar na sociedade portuguesa. É uma associação de ressentidos, uma agência de empregos, e proclama que os alucinados são os outros.

A possibilidade de que falo consistia em acabar com a dilação em torno da denominação de Manuel Alegre, candidato à Presidência da República, que deixou de ser uma torpe vingança para se converter num escabroso indecoro. Ouve-se o fatal José Lello e não se acredita; escuta-se o medonho Vitalino Canas e ficamos transidos: estamos num lodaçal de afrontas. Em nome de quê? Da retórica de obediência ao chefe, praticada sem as reservas da consciência individual.

Goste-se ou não de Alegre, esteja-se ou não de acordo com as críticas por ele feitas às derivas da direcção deste PS, ele pertence ao património cultural, nosso e daquele partido, e às raízes de um combate que identificou os socialistas com uma certa fórmula de actuação na sociedade. O "estar em discordância" não pertence aos domínios das inutilidades ideológicas: é um valor da honra contra as certezas definitivas de um mundo sem honra.

Estas ardilosas indecisões já custaram à esquerda as últimas presidenciais. Foi a salgalhada de Sócrates que colocou Cavaco em Belém. Basta consultar os números, sem nos deixarmos inibir pelas armadilhas mediáticas, e proceder a uma equação que recuse a perda de sentido da aritmética, para entendermos a natureza do embuste. Como se tem visto, Cavaco estava mais nos carris de Sócrates do que Manuel Alegre. Ideologicamente, a questão reside aí.

A história repete-se, com outros protagonistas, sem maior segredo, enigma ou fascínio. Mas sob o peso de uma tristeza letal, provocado por este mundo flutuante, desprovido de convicções e de dimensão. Há dias, almoçando com um velho amigo e camarada de imprensa, o António Rêgo Chaves, falámos da perfídia desta gente, que estendeu o reino da falsa linguagem até ao desgosto da palavra. Perderam-se as referências cívicas que assinalaram o nosso tempo e marcaram os nossos destinos. Um desfile de nomes, de obras, de probidade, de desempenho ético, que reabilitaram a fisionomia moral e cultural de uma pátria sequestrada pela violência do fascismo. Não dispomos, hoje, de muitos valores exemplares, que nos permitam organizar a vida segundo os princípios de uma sociedade decente.

Talvez Manuel Alegre seja um dos últimos dessa estirpe.
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«DN» de 12 Mai 10