quarta-feira, 16 de março de 2011

FRANCISCO LOUÇÃ, O REVOLUCIONÁRIO

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Por Maria Filomena Mónica

DEZ ANOS depois da sua fundação, o Bloco de Esquerda pode orgulhar-se de ter hoje no Parlamento 16 deputados. Nascido da união de vários grupúsculos da Extrema-Esquerda, está em expansão, o que justifica o interesse pela personalidade do seu chefe. A 24 de Abril de 1974, então com 17 anos, Francisco Louçã era membro dos órgãos directivos da trotskista «Liga Comunista Internacionalista» (LCI). Nessa noite, depois de ter sido informado que iria ter lugar um golpe de Estado, deslocou-se para uma casa na Rua da Beneficência, em Lisboa. Começou logo a preparar acções de propaganda, entre as quais dois cartazes, com as seguintes frases «Nem mais um soldado para as colónias» e «Fim à Guerra Colonial, Independência já», a serem colocados na Praça da Figueira. Foi daqui que, às 8 horas da manhã, tentou juntar alguns camaradas, a fim de planear o que deveriam fazer após uma insurreição tida como vitoriosa.

Mas nada estava assegurado. No momento em que ele chegava à Baixa, o seu pai, o capitão-de-fragata Seixas Louçã, comandante do navio Almirante Gago Coutinho, descia o Tejo, integrado numa força da NATO prestes a rumar em direcção a Nápoles. A certa altura, recebeu indicações para sair da formatura, colocando-se em frente ao Terreiro do Paço, onde estavam estacionadas as forças rebeldes. O vice-chefe do Estado-Maior da Armada, contra-almirante Jaime Lopes, deu-lhe ordem para disparar. Alegando estar muita gente no local, além de cacilheiros a chegar e a partir, o comandante ter-se-á recusado, mas a eventual carnificina não impressionou o vice-chefe, que insistiu. O comandante optou então por mandar dar «uns tirinhos para o ar», uma ordem que os oficiais se recusaram a cumprir. Diante do Tejo, além das tropas de Salgueiro Maia, havia agora tanques do Regimento de Cavalaria 7, comandados por um alferes miliciano que optara por aderir ao Movimento, o mesmo tendo acontecido aos pelotões de Lanceiros 2.

Na Outra Banda, uma bateria da Escola Prática de Artilharia, que se juntara aos revoltosos, seguia os movimentos da fragata. Sob o nome de guerra de «Tigre», Otelo ordenava a «Charlie Oito» (Salgueiro Maia), que protegesse os blindados, após o que o comandante Vítor Crespo anulava a ordem dada ao comandante Louçã. Perto do meio-dia, este fundeava o navio no Alfeite. A 27 de Maio, solicitava a passagem à reserva, um pedido deferido pelo almirante Pinheiro de Azevedo, o qual não se absteve de lhe dizer: «Eh pá, você atrasou a revolução meia hora.» Não sabemos o que pai e filho se terão dito, mas uma coisa é certa: estivemos à beira de uma guerra civil. Em 1799, Goya publicou uma série de desenhos, os «Caprichos». Num dos mais famosos, o n.º 43, está inscrita a seguinte frase, «El sueño de la razon produce monstruos». O pintor conhecia por dentro os horrores que as utopias revolucionárias podem trazer ao mundo. A fragata nacional não disparou, mas jamais esqueci a frase, aliás ambígua, aposta na gravura espanhola.

O facto de ser descendente de um militar explica alguns traços de Francisco Louçã. Foi ao pai, e não ao avô materno, António Neves Anacleto, um algarvio que, tendo começado no anarquismo, acabou no PPD, que o líder do Bloco foi buscar o seu amor à disciplina. Aos 10 anos, numa redacção, defendia que as férias «servem para descansar, para estudar, e, naturalmente para atacar os pontos fracos nos estudos». Seu colega de turma, Santana Lopes conta que de tal forma o puritanismo do rapaz o irritava que, um dia, lhe prometera 20 escudos, se ele dissesse «merda» em voz alta, o que o outro teria recusado.

A rebeldia, se é que o termo se lhe aplica, reservava-a Francisco Louçã para a política. Em 1972, fora a França. Como tantos de nós, dirigiu-se à livraria Joie de Lire, no Quartier Latin, pertença de um militante trotskista. Era demasiado cedo – tinha apenas 15 anos – para saber o que desejava da vida. Marcelo Caetano resolveu-lhe o problema. No aniversário de uma amiga dos pais, ao saber que o jovem desejava ir para «Económicas», o Presidente do Conselho tentou dissuadi-lo, informando-o ser o ISCEF «um antro de comunistas». Tanto bastou para o entusiasmar. O menino viajou, estudou, casou, tendo hoje uma carreira académica respeitada. Mas nada disto alterou as suas ideias: o capitalismo é mau, o socialismo é bom, a globalização deve ser combatida. Que na adolescência se acredite em tais coisas, compreendo: o que me custa a perceber é como, passado o limiar dos 50 anos, alguém ainda assim pense.

«GQ» de Março 2010