segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Entrevista ao «DN» de 10 Outubro 14

"Empresários não têm liberdade para dizer e fazer o que querem"

Em pouco mais de meia hora de entrevista, o sociólogo fez a análise política e económica do país. O Presidente da República, o governo, o novo líder do PS, os empresários e as famílias através das lentes de António Barreto,
"Portugal gosta de ser especial mas está a ficar como os outros países"

Em pouco mais de meia hora de entrevista, António Barreto varreu o país de ponta a ponta e analisou a situação económica e política. Sobre os empresários, por exemplo, diz serem dependentes e que "dão para os dois lados, para a esquerda e para a direita"

Texto: Sílvia de Oliveira e Hugo NeuM(TSF) Fotografia: Orlando Almeida/Global Imagens

É um dos mais respeitados sociólogos e pensadores da cultura portuguesa e autor de numerosas obras de história e de sociologia. Passou pelo Partido Comunista antes de aderir ao Partido Socialista, foi ministro, deputado no final dos anos 80, mas cedo abandonou a política. Mais recentemente foi presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde criou a base de dados Pordata. Demitiu-se em abril.
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Passámos o período de resgate a ouvir dizer que o que se estava a operar não era apenas uma transformação económica, mas também uma transformação cultural e que o português médio iria sair da crise diferente. Isso aconteceu?  
 
É muito cedo para avaliar os efeitos e consequências do tratamento de choque da troika. E o tratamento ainda não acabou. Estou convencido de que vamos ter mais um, dois ou três anos, ou quatro ou cinco, em que será necessário, por outros meios, manter uma tensão grande sobre os níveis de endividamento, despesa, investimento público e finanças públicas.  
 
Portanto, os resultados verdadeiros só serão conhecidos mais tarde. Por outro lado, tudo o que diz respeito às mentalidades e costumes são as últimas coisas que mudam numa sociedade. Demora muito tempo. É mais fácil assinar um cheque para comprar um carro do que mudar os comportamento e as mentalidades. Quando um político não sabe o que há de dizer, diz logo que o que é preciso é mudar as mentalidades. Isso, em geral, quer dizer que não faz a mínima ideia do que é que está a falar nem o que vai fazer. Vivemos, nestes três anos, uma grande crise de necessidade. As pessoas perderam empregos, rendimentos, casa, as condições de vida que tinham e a ideia, que alguns defendem, de que se começou a ter consumos mais racionais, que se vai ver o que é a pegada ecológica, se se está a prejudicar as gerações futuras, isso, para já, são devaneios.  
 
Precipitações.  
 
Muitas pessoas emigraram, outras reformaram-se ou tiveram de ir para o desemprego, por exemplo, com 45 ou 50 anos e nunca mais vão ter trabalho sério, regular na vida, essas pessoas mudaram. Muitas delas, que ficaram cá, estão talvez mais amargas, resignadas. As que emigraram talvez não, talvez tenham uma espécie de ressurreição. Passado um primeiro embate de dificuldades, as pessoas habituaram-se a fazer um esforço de sobrevivência, a lutar pela vida, pelos filhos, por eles próprios. O que isso vai dar nos próximos anos ainda não sabemos, é muito cedo. A esperança que cada um de nós tem - cidadãos, empresas, bancos e Estado - é de que ficássemos com um pouco mais de consciência do que é o endividamento. Um alto endividamento é escravidão.  
 
Não se pode viver com o que não se tem.  
 
Há a ideia de que são só os pobres que estão endividados, mas não, são sobretudo os ricos, as empresas, o Estado. Toda a gente se endividou. O endividamento pode retirar-nos a independência -já tirou a maior parte -, pode tirar-nos a liberdade e o bem-estar.  
 
Há dias, soubemos que no primeiro semestre o crédito ao consumo, tão diabolizado pela troika, cresceu 17%. Este não é um facto que deita por terra a ideia de uma espécie de revolução cultural, de higienização das finanças pessoais?  
 
Cresceu tão fortemente também porque tinha baixado. E as pessoas estão a tentar recuperar um bocadinho.  
 
Uma pessoa que está habituada a comer certo tipo de carne, não necessariamente bife do lombo do mais caro, e que teve de baixar para coelho, depois para frango e depois para salsichas, e que na primeira oportunidade que tem para voltar a comer um bocado de frango não posso dizer que essa pessoa está a exagerar no consumo. Isso é uma loucura. Talvez a classe média queira recuperar níveis de consumo. Temos de esperar para ver.  
 
Mas este indicador não revela que não se aprendeu com o passado?  
 
Se isso significa endividamento, a minha conclusão então é pessimista, muito cética, quer dizer que as pessoas continuam a pensar que podem viver mais endividadas.  
 
E agora, após a intervenção da troika, o que é que o país ganhou?  
 
É uma dúvida de muitas pessoas.  
 
Era necessário fazer grande parte do que foi feito. Mas foi mal feito, com maus prazos, maus níveis de juros, más maturidades, más escolhas, de bater nos pobres ou nos ricos, na classe média, nos velhos ou nos novos.  
 
Foi tudo feito à força, à bruta. Muitas coisa podiam ter sido feitas com mais seletividade, mais organização, mais explicação. O governo não explicou bem o que estava a fazer, não pediu solidariedade, cumplicidade, apoio, agiu muito no eu quero posso e mando, tem de ser, é a necessidade, e isso não se deve fazer. O que não impede que uma parte do que foi feito tivesse de ser feito. Não tínhamos crédito, não tínhamos finanças públicas e não basta dizer que a Europa tem de pagar e que nós vamos sair do euro.  
 
Há muita gente a dizer muitas coisas muito irresponsáveis. A minha convicção é de que vamos ter mais três a cinco anos de dificuldade. Não sei qual vai ser o sistema, não sei se será um novo resgate, uma nova maneira de fazer austeridade, de reavaliar a dívida e de reestruturar. Tudo isso dependerá da capacidade negociai do próximo governo junto das instâncias internacionais e da própria situação europeia. As notícias da UE são todas más. Nada leva a crer que Portugal possa ser ajudado. E nestas coisas já percebemos, mais do que uma vez, que ninguém ajuda ninguém, a não ser que esteja interessado. Quanto a nós, importa zelar o mais rapidamente pelas condições políticas de gestão das dificuldades económicas e financeiras, uma coisa muito mal feita até agora. Não houve um compromisso interpartídário. Falharam os partidos - os dois grandes-, falhou o Presidente da República, toda a gente. Agora, há que zelar muito seriamente pelas condições políticas da gestão futura da economia e das finanças, que continuarão a ser muito duras. Estamos há três ou quatro anos numa espécie de transferência de rendimentos. Os pobres pagaram mais do que os ricos, a classe média pagou muito mais do que os ricos, a economia pagou muito mais do que as finanças, os pensionistas pagaram muito mais do que os ativos. Nos grandes dilemas nacionais, foram sempre as partes fracas a perder, tal como na Europa, onde também se tem assistido a uma transferência permanente de recursos dos devedores para os credores, do Sul para o Norte, dos pobres para os ricos, do trabalho para o capital. Isso foi reproduzido em Portugal em condições ainda piores. Era importante que as condições políticas dos próximos cinco anos pusessem um travão a isto.  
 
A troika saiu, o salário mínimo aumentou, o IRS vai provavelmente descer e em 2015 há eleições. Há uma ligação entre estes factos?  
 
Para já sim, mas quero ainda comprovar, esperar pelo próximo Orçamento para ver se, de facto, o governo resiste a esta espécie de chaga demagógica que nos habita há 3 0 ou 40 anos.  
 
É preferível não descer impostos?  
 
Há um número do Henrique Medina Carreira que sintetiza muito bem a situação em que estamos. A economia permite que o Estado gaste cerca de 70 mil milhões. Há quatro anos, chegámos a gastar 90 mil milhões.  
 
Foi o princípio do caos e da bancarrota. Atualmente, estamos a gastar 80 mil milhões. Faltam tirar 10 mil milhões. É preciso muita seriedade.  
 
Seria preferível não aumentar salário mínimo e descer impostos?  
 
Não consigo tudo ao mesmo tempo.  
 
Por um lado, tenho as pensões e as reformas, o salário mínimo, por outro, o IRS, o IRC, o IVA, tenho várias quantidades. Interessa saber o que posso aliviar sem recomeçar com a demagogia. A pergunta é inevitável: porque é que isto não foi feito um ano antes ou um ano depois e sim neste, que coincide com o mandato eleitoral? Os políticos portugueses não resistem à demagogia eleitoral.  
 
É assim há cem anos e vai continuar a ser assim.  
 
O PS tem um novo líder, António Costa, que tem um perfil diferente de António José Seguro. Mas o PS de Costa será assim tão diferente, no conteúdo, do PS de Seguro?  
 
Mais uma vez, temos de esperar, é cedo. De António José Seguro sabíamos um pouco mais. De António Costa . não sabemos exatamente o que é que ele pretende fazer. António Costa parece trazer um maior capital de tradição partidária, seja republicana, socialista, de extrema esquerda socialista, maçónica, "soarista", "socratiana".  
 
Isso não pode ser um tiro que sai pela culatra ao PS?  
 
Isto quer dizer que ele tem uma grande base de apoio. Mas, agora, António Costa tem de ser secretário-geral, tem de ter um programa de governo, vai ter de ganhar as eleições e vai ter de dizer onde é que vai buscar os recursos para as finanças públicas. Até agora tem-se limitado a dizer que a Europa paga. Isto não faz sentido. Paga o quê, como, quando e onde? Ele nunca afirmou muito claramente a sua política de alianças e o número de encenação com o partido Livre é um fenómeno novo. O partido Livre é o mais pequenino deles todos, portanto, é o que compromete menos, mas António Costa pôs o dedo numa questão importantíssimo. O PS é geneticamente anticomunista e deixar de ser anticomunista e passar a ser amigo ou aliado do comunismo, do Bloco de Esquerda, ou do Livre, põe problemas seríssimos. Não digo que não nem que sim, eu não o faria. Esta impossibilidade foi uma espécie de seguro de vida da direita e não é saudável que a direita tenha um seguro de vida deste género.  
 
Mas acha que Costa pode chegar ao Partido Comunista?  
 
Ele já deu vários sinais. Sinceramente, não sei. E Costa não esclareceu. As boas frases, ambíguas e equívocas, são as que deixam interpretações possíveis. Quando ele diz "é tempo de acabar com uma esquerda que não se sabe somar"... Agora, esta discussão tem de ser séria. António Costa não quis dizer diretamente o que quer fazer. Acho que vai esperar pelos resultados do debate, mas ele está a correr o risco de perder o próprio partido, porque a força anticomunista do PS é muito grande.  
 
Se António Costa vencer as legislativas, terá condições de fazer diferente e melhor, ou a presença da troika continuará a pressionar e nada acontecerá de diferente?  
 
Ele vai tentar fazer diferente, melhor, vai tentar puxar por todas as hipóteses da solidariedade europeia que existem, que são muito poucas. Não sei se vai conseguir fazer melhor.  
 
Mas há condições para um governo verdadeiramente socialista, menos liberal?  
 
Não sei se temos condições para isso, se temos dinheiro para isso, se há recursos suficientes. O pior de tudo é que estamos numa espécie de oscilação e hesitação entre a independência e a liberdade. Se queremos muita liberdade, temos de nos proteger e só a União Europeia nos protege. Se queremos muito a independência, vamos perder a liberdade, porque teríamos de sair do euro, da União Europeia e deixar de ter amigos lá fora. Tenho a minha saída pessoal e prefiro a liberdade. Já estou resignado a vivermos praticamente sob protetorado, como atualmente. O nosso regime constitucional está de pantanas, porque estamos a viver contra a Constituição.  
 
A Constituição não permite o que estamos a fazer, nomeadamente, com as decisões políticas internacionais que mandam o que Portugal está a fazer hoje em dia. Qual é a margem de liberdade do António Costa em tudo isto? É muito curta. E o problema não é do António Costa, é de qualquer outro. Por isso, o compromisso de uma grande maioria da ordem dos 60% a 70% era indispensável.  
 
Na sua vida profissional recente foi presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos e esteve muito próximo dos empresários, nomeadamente do presidente do grupo JERÓNIMO MARTINS. Os nossos empresários são competentes?  
 
Não é a minha proximidade da família Soares dos Santos que me vai fazer ter ideias sobre a classe empresarial portuguesa. A impressão que tenho dele e da família não tem nada que ver com o resto. O resto são ideias que vou acumulando desde há muitos anos. E não estou particularmente feliz com o que vejo. Grande parte dos empresários viveram sempre à sombra do Estado, ainda vivem e querem continuar a viver, são dependentes do Estado, muitos deles não têm liberdade para dizer e fazer o que querem por causa dos contratos do Estado, dos interesses. E vivem com uma enorme facilidade e promiscuidade relativamente à política. Dão para os dois lados, para a esquerda e para a direita. O que se tem visto relativamente ao ex-grupo Espírito Santo é demonstrativo disso. Estive a ler o relatório da comissão de auditoria da PT, onde novamente aparece o grupo e a família Espírito Santo, e fiquei com uma péssima impressão do que foi a privatização dos grandes serviços públicos. Na verdade, nada foi privatizado no sentido do investimento, foi sim privatizado no sentido de vendido rapidamente para obter dinheiro estrangeiro, que não cria emprego, novas indústrias, novos produtos e novos serviços, que não arranja emprego, que não investiu nada. O que se passou com a PT e com os 900 milhões e a ligação que agora está evidente ao grupo Espírito Santo deve-se, em grande parte, aos maus hábitos, às más tradições de grande parte da elite empresarial portuguesa. Digo grande parte porque ao lado há umas centenas ou milhares de empresas que salvaram Portugal com a exportação. Deste grupo, curiosamente, fazem parte os que falam menos, os menos mediáticos.  
 
O Presidente alertou para uma possível implosão do sistema partidário, culpou os partidos e insistiu no apelo ao compromisso. Cavaco Silva tem razão, o atual sistema partidário está em risco?  
 
Sim, o sistema está em risco e o Presidente da República deu o seu contributo para isso. O mandato poderia ter sido feito de outra maneira, com os partidos políticos, com mais visibilidade pública. Se estas preocupações são dele há já dez anos, já o deveria ter dito antes. Só o está a fazer no fim do seu mandato, tem mais um ano.  
Porque só o faz agora no fim?  
 
Está a construir a memória final do seu mandato.  
 
A pulverização de votos que está a acontecer em Portugal e que acontece, até com maior intensidade, em outros países da Europa, será um fenómeno circunstancial, ou um movimento sem retomo?  
 
Nestas coisas da política a previsão pode brilhar pela certeza ou pela asneira. Nunca fui grande simpatizante da previsão. Estou convencido de que, gradualmente, vamos caminhar para uma fragmentação política, isto é, vão aparecer novos partidos. Tanto dentro do PS como no PSD, poderão existir fenómenos importantes de separação.  
 
Como é o caso do Livre?  
 
Sim. Vamos ver qual o efeito do Livre no Bloco de Esquerda, mas a minha convicção também com o novo Partido Democrático Republicano é que pode ser uma explosão efémera de primavera que de repente acaba, como o Carnaval para durar três dias. Mas pode ser que não. Em toda a Europa há casos destes. Portugal não é diferente. Apesar de resistir muito, Portugal está a ficar um país como os outros. Portugal gosta sempre de ser especial, geralmente pelas más razões, mas está a ficar como os outros países. E nos outros países os novos partidos surgiram e estão a surgir, muitas vezes, a partir ou a esfacelar os partidos existentes. A minha convicção é de que nos próximos dez anos vamos ter novos partidos e que alguns dos atuais vão ficar irreconhecíveis.  
 
Esse fenómeno de aparecimento de novos partidos pode forçar o tal compromisso que defende?  
 
Esperemos que seja esse o resultado, porque senão será o caos político. Em 100 ou 150 anos, Portugal nunca reviu as constituições, ou, antes, as constituições foram feitas à força, não foram referendadas. Estamos em vias de nos aproximar de uma época em que o regime e a Constituição, se não evoluírem pacificamente, democraticamente e em liberdade, sê-lo-ão pela força. Se o caminho for o da fragmentação, sem compromisso nacional, para garantir a responsabilidade da direção política, então teremos o esfacelamento, a Constituição e o regime por terra, como no passado, tantas vezes.  
 
Portugal já deveria ter tido eleições?  
 
Estamos a viver um ano e meio dramático. Desde as eleições europeias tudo tem corrido mal dentro dos partidos, entre os barões dos partidos, no sistema político, no Parlamento, nas comissões de inquérito, no caso Espírito Santo, na PT, na TAP, nas PPP, na Educação. A abertura do ano letivo é um escândalo nacional e internacional. O escândalo da Justiça é uma coisa que já não é do domínio do autismo político, é do domínio do psicadélico. Este Orçamento vai ser de crispação, o do ano que vem vai cair em cima das legislativas, a poucos meses das presidenciais. Já devíamos ter arrumado a casa, já devíamos ter novo Parlamento, novo governo, um compromisso político para podermos viver o futuro. Qualquer dia que passa sem eleições é mau. A partir das europeias deveríamos ter feito logo legislativas.  
 
Começa-se a falar de março.  
 
É qualquer coisinha, mas é o costume, em Portugal tudo se faz com atraso. Deu-se cabo da ditadura com atraso, da descolonização com atraso, da Guerra Colonial com atraso, a revisão da Constituição foi feita com atraso, foi tudo sempre com atraso.  
 
António Costa poderá vencer as legislativas?  
 
É possível, sim. Duvido que tenha capacidade para ganhar com maioria absoluta, mas penso que há uma possibilidade de ele ganhar.  
 
E precisamos de uma revisão constitucional nesta fase?  
 
Profunda. Que impeça governos minoritários, que decida definitivamente a relação de poder entre o Presidente e o Parlamento, que continua a ser equivalente. É preciso inscrever limites máximos ao défice, é preciso retirar da Constituição meia dúzia de coisas puramente bacocas e demagógicas. O que é que é tendencialmente gratuito? Não sei o que isso é. Era necessário dar mais liberdade às gerações atuais para que possam rever a sua Constituição. É preciso permitir as eleições independentes, de novos partidos, é preciso que haja eleições uninominais, de confiança pessoal dos candidatos.  
 
Defende a candidatura de cidadãos independentes nas legislativas?  
 
Absolutamente. Não que queira eleger independentes, não quero fazer um Parlamento com 150 independentes. Isso seria uma balbúrdia, ingovernável. Quero é que a pressão dos independentes seja tal, que obrigue os partidos a ter os melhores.  
 
Quando os partidos perceberem que ao lado dos seus camafeus de conservação, educados nas suas alcovas partidárias e nos seus laboratórios de confeção da juventude em geral, de confeção dos agentes partidários, e que em vez disso na sociedade há pessoas que trabalham, trabalhadores e empresários, cientistas, diretores, advogados, o que quer que seja, que são boas pessoas profissionalmente, humana e culturalmente, os partidos têm de os ir buscar porque senão perdem.  
 
Estaria disponível se isso acontecesse, se fosse possível?  
 
Na minha idade já não, já não estou disponível para nada na política há 15 anos.  
 
PONTO FINAL António Barreto defende a realização de eleições legislativas quanto antes. Tal deveria ter acontecido logo a seguir às europeias.

sábado, 23 de agosto de 2014

As bolandas do PIB

Por Antunes Ferreira 
JÁ SE SABIA que as coisas corriam (muito) mal no que concerne à dívida pública. Mas a situação passou de má a pior. Com este (des)Governo despudorado e ladrão. A dívida das administrações públicas bateu o recorde: subiu de novo no segundo trimestre do ano, fixando o seu rácio em 134% do PIB e alargando a distância face à meta traçada pelo Governo. Para este agravamento contribuiu o programa de reestruturação financeira às empresas públicas de transportes, que obrigou a reconhecer na dívida pública 3,5 mil milhões de euros de dívida bancária da CP, Carris e STCP.
Ora, em Março, ela atingira 132,9%. E com este rácio ela pulou do obtido no final de 2013: 128,9%. Mas o azar, quando bate à porta deixa sempre o infeliz visitado de cara à banda e muito preocupado. Porque, além da dívida bruta, a dívida pública líquida de depósitos da administração central ( que como se sabe é a “almofada” de liquidez que tem ajudado o IGCP a gerir a dívida) também apresentou um aumento. Os dados publicados pelo banco central indicam que a dívida líquida de depósitos passou de 118,8% do PIB no primeiro trimestre do ano, para 122,4%  no segundo trimestre.

O (des)Governo parece ter assobiado para o lado face a estas percentagens. Recordo que o estranhíssimo Documento de Estratégia Orçamental dado à luz em Abril previa que no conjunto deste ano a dívida bruta atingiria os 130,2% do PIB. Até agora, de São Bento ouve-se um silêncio assustador. Será que a desorientação habitual dos homens de Passos e de Portas também cresceu? A ser assim é pior a emenda do que soneto. Manuel Maria Barbosa du Bocage parece ter premoniado a actual situação das finanças nacionais.
Face a esta situação, António Costa, candidato às primárias do Partido Socialista (que se me afigura viver em permanente ebulição e confusão geral) referiu que no inicio desta crise, Portugal tinha a dívida publica em 97% do Produto Interno Bruto e acrescentou que com todos os aumentos dos impostos, com todos os cortes nos salários, nos serviços e nas pensões dos reformados, obra deste suposto Executivo, ela atingiu os 134% já mencionados, segundo o Banco de Portugal. Convém também mencionar que é o banco central e regulador (?) da actividade que no seu boletim estatístico, a desgraçada dívida pública na óptica de Maastricht a que conta para Bruxelas, alcançou uns… 223.270 milhões de euros em Junho deste ano. Peanuts, para a coligação.

Com a euforia representada pelas privatizações, pelas exportações, pelos resultados fantásticos na ida aos mercados (que a esmagadora maioria dos Portugueses nem sabem o que são…) há coisas que não se podem nem devem ocultar. Um só exemplo serve para desmontar a falácia das exportações: a balança comercial continua a ser altamente deficitária. Mas isso para o (des)Governo não tem qualquer relevo. É despiciendo. 

Se William Shakespeare não se tiver enganado, o to be or not to be, that’s the question continua eterno. No caso vertente, isto é, o português, o ser ou não ser, eis a questão, que Hamlet eternizou em “ A tragédia de Hamlet príncipe da Dinamarca”, tem toda a razão: ser deficitário  ou não ser deficitário, esta é a questão levantada pela Frau Angela Merkel e posta em prática pela amaldiçoada tróica. Isto quer dizer que o Orçamento do Estado, que era o último reduto das finanças portuguesas, também nos foi roubado e europeizado.

Um dia destes, para não aumentar uma vez mais o défice do PIB têm os (des)governantes de pensar em privatizar Portugal. O problema é saber quem estará interessado. No “Frei Luís de Souza” a resposta do Romeiro foi: Ninguém!
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Aditamento - texto da Lusa:


A atividade económica em Portugal voltou a abrandar em julho, fixando-se nos -0,3% e entrando pela primeira vez em terreno negativo desde setembro do ano passado, segundo indicadores divulgados hoje pelo Banco de Portugal (BdP).

De acordo com os Indicadores de Conjuntura hoje divulgados pelo banco central, o indicador coincidente mensal para a evolução homóloga tendencial da atividade económica fixou-se nos -0,3%.

Este valor indica uma queda de 0,3 pontos percentuais face a junho, mas a atividade económica vinha a abrandar desde janeiro, quando o indicador se fixou nos 0,7%.

A atividade económica entra assim em terreno negativo, o que não acontecia desde setembro de 2013, quando o indicador referente se fixou nos -0,1%, segundo os números do BdP.

Os Indicadores de Conjuntura hoje divulgados dão também conta de uma ligeira diminuição no consumo privado, com o indicador coincidente para a evolução homóloga tendencial do consumo privado a fixar-se nos 0,9%, 0,1 pontos percentuais abaixo do valor registado em junho.

Este indicador desce a valores de fevereiro, depois de se ter mantido estabilizado durante quatro meses.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

NA PRIMEIRA PESSOA - Ai a minha mãe!...



Por Antunes Ferreira

N
uma mata cerrada a diferença do dia para a noite são os animais; no resto tudo é escuridão graduada desde o cinzento carregado até ao preto tinta-da-china, mas sem tira-linhas. As árvores tapam o sol e tapam a lua, mais qual? De dia o silêncio assusta; de noite, os uivos, os grasnidos, os piares assustam também. Será que silêncio significa sossego? Bem pelo contrário. Os caludas em tom sussurrado atrofiam os homens fardados.
P

orém isto é quando os militares caminham em patrulha, na chamada bicha de pirilau ou estão alapados numa emboscada, à espera de quem caia nela – ou se safe. Aí o capim desempenha o seu próprio papel, actor mudo, sem caixa de ponto, mas importante. Porém quando segue uma coluna de camiões o caso é bem diverso. O barulho dos motores mata o psiu, alerta para longe da picada. E então, quando se constrói uma nova estrada pisando as marcas dos pés que por ali passaram, nem falar nisso. Buldózeres, cilindros, bidões de asfalto, serras mecânicas, pás, picaretas, martelos hidráulicos…

N
ão pode haver silêncio nestes transes. E quando se tem de dormir na picada, no meio da mata, ainda é mais complicado, nada de cigarros, o morrão é um excelente objectivo para eles, um olho aberto, o outro fechado, o brado da sentinela, quem vem lá? O vento no capim, o grito de um macaco, o zumbido de milhões de mosquitos são tudo motivo de suspeição: se são os sacanas estamos fodidos. Então pessoal, ninguém se deixa dormir sem a canhota à mão de semear. A segurança tem de ser tão eficaz quanto seja possível.

E
sta é a minha terceira coluna; vou, vamos, a caminho dos Dembos, dizem os conhecedores que é a pior zona do terrorismo(*) de Angola, mais precisamente para o Quibaxe para onde levamos material de guerra, alimentos e até gado vivo para abate. São 48 viaturas civis, interpoladas por outras militares: três “burros de mato”, os Unimog mais pequenos, dois maiores, dois jipes e na frente uma GMC da segunda guerra mundial, carregada de sacos cheios de areia e de pedras, com o fundo reforçado por placas de aço, bem como a cabina do condutor.

É
 o rebenta-minas, parido pelo desenrascanço português, que consiste num cilindro de metal com correntes grossas, daquelas das âncoras dos navios, penduradas, tudo soldado à frente da viatura pesadíssima na tentativa de prevenir qualquer rebentamento de bomba enterrada na terra do caminho, traiçoeira. Já vi uma não rebentada, lançada de avião, 300 quilos bem pesados, com um detonador acoplado que felizmente não… detonou. Resulta que, quando o camião se desloca, as correntes vão batendo no solo para detectar e rebentar as possíveis minas ali plantadas por eles, os turras. (*) 

C
ai a noite, caralho não conseguimos chegar ao fortim da fazenda Maria Fernanda, fartámo-nos do bate-cu nas “carroças”, de afastar uns abatises que por ali ficaram, de desenterrar camião atolado na lama vermelha, estamos feitos, temos de dormir na picada. Explicando melhor: eu comando as viaturas civis; o alferes miliciano atirador Pedro Martins, do Grafanil, comanda as militares e os soldados da escolta. Confabulamos, pigarreio e aviso a malta que passamos o breu ali mesmo. Monta-se a segurança e na medida do possível os camiões tentam formar um círculo à maneira das caravanas onde os brancos se defendem heroicamente dos sioux e outros peles vermelhas.

S
entado no estribo da Suzuki de 15 toneladas, rapo da ração de combate e melancólico abro a caixa de cartão. E logo o senhor Bravo, proprietário e condutor do camão me pergunta o que estou a fazer. Adriano Bravo é um tipo muito especial. Uma mina gamou-lhe a viatura que tinha e uma perna, a direita. Foi para o Alcoitão fazer a recuperação depois de lhe terem colocado uma artificial. E voltou a conduzir o novo camião, o Suzuki, porque esta é a minha vida e sou como os gatos, não tenho uma, tenho sete…

D
eixe-se de merdas, você vai comer connosco e dê a puta da ração ao preto que vai sentado no cimo da carga. Guerra extraordinária, em que os homens de um lado e do outro disparam com tudo o que têm à mão e, raio de prática, vão-se insultando enquanto atiram. Vai na tua terra soldado cabrão, vai meter no cu do Salazar na cona da puta da tua mãe, berram do capim. Vai levar na peida macaco, se te apanho corto-te os colhões, nunca mais tens filhos mesmo depois de morto. E assim.   
A

banco com os condutores, comemos postas de pescada do Cabo deliciosamente fritas,  lombo de porco assado já vindo de casa, batatinhas cozidas na hora, reinam os fogareiros de petróleo, guardadas as chamas por tabiques de contraplacado já trazidas de Luanda para o efeito. E tudo regado com um vinho de estalo, da colheita do Crispim que é de Viseu e rebatido com uma bagaceira do mesmo dono. Um banquete na picada, uma quase orgia nocturna, umas anedotas picantes, sabem aquela do padre e da freira? Não sabem, eu conto. E ri-se baixinho, mas ri-se. No entanto, porra, faltam as fêmeas.

N
o dia seguinte retomamos a marcha. Mais uma horitas e estamos a chegar se não houver merda. O Moreira da bazuca benze-se, pelo sim, pelo não. Há! O pessoal dum Unimog ia mas mais ou menos descontraído, já tinham passado o rebenta-minas e o camião civil onde eu ia e outro, um White curiosamente branco e, de repente, buuuummm!!! Mina controlada à distância por cordão de disparo, com certeza. Paneleiros!!!! Assassinos!!! Filhos de uma carrada de putas!!!!!!!!

P
ara espanto de todos, depois de tiros a esmo para a mata ou para o ar, não se vê ninguém, ficaram apenas três feridos. O maqueiro Lingrinhas já começou a tratar deles e, de supetão, ó Henrique! Na mata não se diz a patente, não ande por aí o Mata-alferes. Corro. Esparramado no chão, envolto em ligaduras, adesivos, pensos individuais do combatente está o Periquito, alentejano de Évora Monte, 22 anos, solteiro mas com dois filhos e um coto a jorrar sangue por troca com a perna esquerda.  O Lingrinhas faz-lhe um garrote com um cinturão bem apertado, mas… Henrique, o gajo morre-nos. Quim liga o rádio pede o heli para o evacuar! Foda-se Henrique, o cabrão não quer funcionar!

N
ão sei se alguma vez alguém morreu nos vossos braços. Eu sei. Eu sei o que custa, porque, garrotado, cheio de morfina, o Periquito engalfinhou a sua mão na minha, enquanto, sentado ao lado dele, eu o amparava, passando-lhe o meu braço sobre os ombros dele. E o sangue a empapar as ligaduras. E ele a gemer, ai a minha mãe!!... ai a minha mãe!... ai a minha mãe… Ai a minhaaa… Os olhos já vidrados. Por mais anos que viva nunca me esquecerei. Ai! O helicóptero aterra meia hora depois, foi rápido, mas não chegou a tempo. Metem-no lá numa padiola. E foi um cadáver que transportou de volta a Luanda.

P
orém, a estória vivida não fica aqui. O Zagalo, vizinho do Periquito em Évora, quando para ali se deslocaram por terem sido mobilizados abre-se comigo já no quartel: meu alferes há duas merdas estranhas; a primeira é que o moço estava amigado com uma gaiata a quem tirara os tampos quando ela tinha 16 anos; daí o casal de filhos, a miúda com oito anos e o puto com seis, logo ele tinha podido meter o amparo de família e passar à peluda, mas não fez ninguém sabe porquê, ele nunca se confessou à malta. A  segunda ainda me mete mais macaquinhos no sótão: a mãe dele já tinha falecido vai para três anos.

(*) Terminologia usada então…

quinta-feira, 19 de junho de 2014

NA PRIMEIRA PESSOA -Um pirolito igual ao nosso

Nesta rubrica escrevo, a partir de hoje, estórias
que se baseiam em episódios vividos por mim
nas mais diversas circunstâncias, desde as familiares
 até às profissionais, tentando assim repartir
com os leitores deste blogue experiências que fiz
durante a minha vida e que, na generalidade, e
 se o tempo retroagisse, voltaria a viver.
Espero que gostem. 
Por Antunes Ferreira

Fui mobilizado para Angola em 1966, depois de já ter sido promovido a alferes miliciano. Os acasos da vida aqui não entraram pois outros factores me forçaram a embarcar no “Uíge” com mais dois mil bicos fardados que foram encontrar a bordo uns quantos mais e quantas - e outros, entre as nove e as onze, mais acolhedores do que os restantes membros da tripulação. Estes últimos, poucos, tentaram de imediato fazer ralações, ups, relações mais próximas com os memb…, ups, a malta castrense. Vidas.

 A viagem correu satisfatoriamente, só houve, logo à saída da barra um soldado da Mouraria que meteu noutro três centímetros duma ponta-e-mola e quem levantou o auto adivinhem? Só a modéstia natural me impede de dizer que fui eu… E durante ela que demorou 14 dias tentei descobrir os mistérios insondáveis do brídege, tarefa que me foi quase infrutífera dada a condição do animal – eu – não me entusiasmar assaz com jogos de cartas e, sobretudo, porque as partidas eram a dinheiro e isso nunca fiz, faço e farei (conheço que disse façarei, mas isso é outra estória. A bordo, todos os oficiais gabavam a minha sorte, o que parecia ser a ironia suprema que não era; ao contrário desses militares cuja família ficava no Puto, a Raquel esperava-me em Luanda.


Minha mulher decidira ir também à guerra, uma muito especial, levando o Miguel e o Paulo como acompanhantes, porém sem guitarra nem viola. De resto, ela, quando abre a boca (até hoje) faz chorar de emoção que a ouve? Nada, faz chorar sim as pedrinhas da calçada horrorizadas perante as notas e as semifusas de tal sorte que há quem lhe chame filha da pauta. O desembarque no porto de Luanda decorreu sem grandes sobressaltos, a maioria do pessoal de trombas e eu com sorriso achincalhante.

Não resisto qui a contar anedota que corria por entre guindastes, cadernais e outros. Um soldado, pisando tereno firma vê um menino preto a vender jornais. Pergunta, “olha lá catraio o jornal é de hoje?” E a resposta pronta do negrito: “não, patrão, é doje e quinhentos”. Adiante, siga a estória ultrapassado que foi este breve parênteses. O Serviço de Justiça, minha especialidade levou-me à CCS/QJ – RMA, sigla cabalístico-militar que trocada por palavras queria dizer Companhia de Comando e Serviços do Quartel- General da Região Militar de Angola.

Salto aqui o que foi a minha vida entre autos e processos até às colunas ao mato; mas, estas merecem uma explicação mais pormenorizada. A minha especialidade como acima disse era SAM – Serviço de Justiça. Descodifico: Serviço de Administração Militar. Daí que a minha arma habitual era uma BIC laranja. Mas, de Lisboa, o ministro do Exército, general Luz Cunha, mandara um despacho para o general comandante da RMA (sigla acima) decretando que tratando-se eu de um elemento subversivo e comunista devia como prémio fazer colunas ao mato e, se possível, as piores possíveis. As possibilidades de que o alferes miliciano A. Ferreira levar um tiro eram possivelmente as mais possíveis.

Fiz umas quantas, bastantes, a locais pouco recomendáveis, desde Zala até Nambuangongo, passando por Sazaire. Pedra do Feitiço e quejandos. Sem ter apanhado o tal tiro recomendado. Passou o tempo até que completei cinco anos fardado. Por mor da PIDE que então não era DGS lá passei à peluda, jargão castrense que quer dizer passar à disponibilidade, ou seja regressar à vida civil. Se voltasse a Lisboa tinha a vida mais complicada por obra da prestimosa organização policial/política que gostava muito de mim. Para melhor, muitíssimo.

Já desfardado, um dia, ou seja, uma noite decidimos a Raquel e eu entre lençóis tentar a fabricação de uma menina pois já estávamos abonados de dois rapazes. Porém, o parto resultou numa “cachopa” que se chamou… Luís Carlos, contra todas as previsões de familiares e amigos que juravam a pés juntos o sexo feminino para a nascitura que, finalmente, foi um nascituro portador de saúde e de pulmões; na vizinhança faziam-se apostas sobre os decibéis do puto.


A Raquel entendeu dar o primeiro banho ao recém-chegado com os outros dois a assistir, a fim de desde logo conjugarem o verbo amar e o espírito de família com o júnior. E logo, depois de o desflraldar, o Miguel cochichou para o Paulo: “olha, ele tem um pirolito igual ao nosso”… E se os augúrios tivessem acertado e fosse uma catraia?