domingo, 31 de outubro de 2010

OS BRAÇOS DE GARY COOPER

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Por Maria Filomena Mónica

NUM MUNDO MACHISTA, as divas tendem a ser femininas. Na minha opinião, se há um actor com qualificações ao título, no masculino evidentemente, ele é Gary Cooper. Hesitei bastante antes de o escolher, mas, depois de ter visto há tempos, numa exposição em Madrid, a fotografia que Edward Steichen lhe tirou em 1930, tudo se tornou claro no meu espírito. Gary Cooper aparece vestido com um fato escuro, uma camisa branca e um lenço no bolso. O que nos atrai, na fotografia, é o olhar, que nos desafia, e as rugas, evocativas de um passado conturbado. À época, tinha apenas 29 anos, mas, ao lado da boca, notam-se já os traços verticais que, ao longo da vida, caracterizariam a sua face. Há depois, e não é de somenos, o seu corpo. Ao contrário de Marlon Brando, Gary Cooper nunca exibiu o torso em t-shirts apertadas, mas basta ver, em The Foutainhead (Vontade Indómita), de 1949, os tendões dos braços emergindo das mangas da camisa, quando a heroína, Patricia Neal, com ele se cruza na pedreira onde está a trabalhar, para adivinharmos o resto.

Não é aqui o momento para analisar um filme que idolatrei quando, pela primeira vez, o vi no cinema e que depois contemplei, em êxtase, no Ciclo de Cinema Americano dos anos 40, organizado pela Fundação Gulbenkian. Percebo agora que o fascínio vinha sobretudo da presença de Gary Cooper. Não apenas devido à sua beleza, mas à forma – fria, lacónica, seca – como interpreta a figura do arquitecto Roark, um homem que não cede a compromissos, venham eles das elites ou do mercado. Há depois o romance entre ele e a jornalista, chique e arrogante, que decidira nunca se apaixonar. Até à grande cena do beijo, quando, sem ser esperado, ele salta para dentro do quarto dela, tudo é possível. Apesar de Roark aparentar serenidade, a violência nunca está longe da relação. O enredo desenrola-se de forma a que tudo se conjugue para tornar impossível um encontro sexual que, no entanto, pressentimos ser inevitável.

Tenho de admitir que, revisto hoje, em DVD, o filme me pareceu demasiado palavroso. Nunca o produtor deveria ter deixado Ayn Rand ser a autora do guião, pois raro é o escritor capaz de reduzir a linguagem literária à cinematográfica. Não nego que, pelo meio, existam frases dignas de uma antologia: é mesmo disso que me queixo. The Fountainhead é, em grande medida, uma arma na luta pela imposição da filosofia a que a autora chamou «objectivismo», uma corrente de pensamento influenciada pelo clima da Guerra Fria, que afirmava ser o povo uma massa amorfa e o génio a medida de todas as coisas. Felizmente, as palavras de Gary Cooper leva-as o vento. Fica apenas ele e isso chega.

Gary Cooper apareceu em muitos outros filmes. Recordo, por exemplo, High Noon (1952), um filme sobre a construção do Estado de Direito nos EUA. É por considerar que, dentro do western, ninguém chega aos calcanhares de John Ford que, até agora, o não revira. Dele apenas recordava o tema musical, «Do not forsake me of my darlin’…», da autoria de Dimitri Tiomkin. Muitas coisas aconteceram na minha vida desde que ouvi esta canção pela primeira vez, mas jamais a esqueci, como jamais esqueceria o rosto de Gary Cooper – então com 51 anos – no papel do marshall Will Kane. Casado nessa manhã, o herói decide abandonar a mulher, a virginal Grace Kelly, a fim de cumprir o que pensa constituir o seu dever. Enquanto os habitantes da aldeia se refugiam, cheios de medo, numa igrejinha, ele parte a fim de combater o bandido Frank Miller. Ao longo do filme, Gary Cooper quase não fala, mas mexe-se. Reparem na cena final. A maneira de andar de Gary Cooper é hierática e o balançar do coldre sobre a nádega mágico. É isto que recordamos quando tudo o resto se esvai.

Curiosamente, há algumas semelhanças ideológicas entre High Noon, de Fred Zinneman, e The Fountainhead, de King Vidor. Como o arquitecto Roark, o marshall Will Kane luta, sem o apoio do povo, contra os maus. As massas populares são, mais uma vez, consideradas como intrinsecamente covardes. Apesar de ser uma individualista, a mensagem contida nestes filmes não me atrai, mas tão pouco chega para destruir o prazer de, hoje como ontem, admirar os braços de Gary Cooper.

«GQ» de Novembro 2009

sábado, 30 de outubro de 2010

Estamos safos

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Por Antunes Ferreira

DE REPENTE, no meio das trevas em que o País se encontra mergulhado, surgiam dois faróis, qual deles mais importante, para alumiar as escassas esperanças que persistem em sobreviver. O franzir de cenho que posso divisar afigura-se-me suficiente para dar nota das interrogações e das dúvidas sobre a afirmação anterior. Mas, mesmo neste manicómio nacional, tudo pode ter uma explicação, creio.

Vamos, então, por partes. Primeira: o enquadramento da negrura. Não será preciso produzir muita informação, tal é o abanão que resultou da ruptura das negociações entre o Governo e o PSD para se vir a ter um Orçamento para 2011. Os cidadãos já sabiam, nós já sabíamos, que, acabado o tempo das vacas gordas, chegaria o das vacas magras. E, até, que estas últimas enfileiravam na categoria global-portuguesa das loucas. Vacas, obviamente.

Agora, enquanto uma larguíssima parte de nós aperta, uma vez mais, o cinto (são suficientemente conhecidos os que estão isentos de o fazer), a fatalidade que nos tira a tranquilidade que ainda existia alarga-se, estende-se, esmaga-nos. Diz-se que a necessidade aguça o engenho e a adversidade une os desgraçados. Será assim, mas por baixo. Ou seja, num nível inimaginável há uns tempos.

Perante as terríveis intenções constantes do famigerado OE 2001, pergunta-se qual a alternativa possível. Simples: são o FMI e esse estranho e novo organismo comunitários sobre os défices nacionais. Qual deles o pior. Isto é, se as medidas gravosas que o documento contem não forem aprovadas pela Assembleia da República, as que esses dois simpáticos e indulgentes compadres serão muitíssimo piores. É difícil aceitar, mas, pelos vistos, é assim. Cá se fazem, cá se pagam? Quem as fez? Nós, os Portugueses. Quem as vai pagar? Nós, os Portugueses. Bem podemos interrogar-nos que culpa temos nós, e que os malandros que nos empurraram para esta situação foram e são os políticos. Em especial, os Governos. E ainda mais especialmente o actual, do Sócrates. Sempre fomos assim: nem nos governamos, nem nos deixamos governar. Sertório já o escrevia para Roma. Resumindo: somos uma espécie de gente pilatosiana.

Segunda: os salvadores. Alínea a) Hugo Chavez. O presidente venezuelano veio a Portugal há uns escassos dias dar-nos as duas mãos para nos ajudar e consular um «homem bom», que é o nosso Primeiro. Honra lhe seja feita, o patrão da Venezuela fez uma mão cheia de encomendas, das casas até aos Magalhães, passando pelos navios. Positivo.

Alínea b) Hu Jintao, o Presidente da República Popular da China. Ele vem visitar-nos nos dias 6 e 7 de Novembro, acompanhado por uma comitiva de 50 empresários e vários membros do Governo chinês com o objectivo de realizar «acordos» e «contratos de investimento».de acordo com o comunicado oficial.
A antecedê-la, em Pequim, uma ministra da área financeira afirmou que a China se manifestou disponível para comprar títulos do tesouro português e «participar no esforço de recuperação económica e financeira» do nosso País. A este propósito, o Presidente da AEP, José António Barros afirmou que «tudo que venha aliviar a capacidade do Estado colocar a dívida é bom para Portugal». Isto porque, segundo ele, «para a economia chinesa, a dívida pública portuguesa é uma gota de água». E deve ser mesmo, penso.
Será a altura ideal para ver se os dois ilustres visitantes compram a dívida pública na totalidade. E tentar convencê-los de que essa será a melhor solução. Para eles? Não senhor, para nós. E, já agora, se estiverem também interessados em comprar este País, façam favor, sirvam-se.

Estamos safos. Portugal e os Portugueses afinal têm amigos bué da fixes, como dizem os meus netos e, agora, digo eu também.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Passatempo de 27-29 Out 10 - Solução

Pág. 62
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Quem mais se tenha aproximado deste valor tem 24h para escrever para medina.ribeiro@gmail.com, indicando morada para envio.
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Actualização (29 Out 10/15h04m): o passatempo foi ganho por Sabine Mendes, com erro de 1 página.

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

BASTAVAM ALGUNS relatórios internacionais, esta semana divulgados, para os portugueses avaliarem devidamente, sem mentiras nem ilusões, o que representaram para o país estes cinco anos e meio de governação de José Sócrates.

«A década perdida de Portugal», titulava o El País no domingo, citando o Relatório da Economia Mundial do FMI, onde Portugal surge em antepenúltimo lugar entre 180 países no que respeita ao crescimento do PIB entre 2000 e 2010. Com Sócrates como primeiro-ministro, Portugal afastou-se, ano após ano, da União Europeia. E o Relatório prevê que os próximos cinco anos serão de estagnação da economia portuguesa.

Num outro relatório, este da Transparência Internacional, com sede em Berlim, Portugal aparece em 32.º lugar no ranking da corrupção, uma classificação que o coloca como um dos piores países da Europa Ocidental.

Dias antes, o relatório anual da organização Repórteres Sem Fronteiras fazia cair Portugal para a 40.ª posição no que respeita à liberdade de expressão existente no país. Em 2007, Portugal encontrava-se no 8.º lugar, em 2008 baixou para 16.º, em 2009 para 30.º e, agora, para 40.º.

Eis um retrato fiel e sucinto da degradação a que a governação de Sócrates conduziu o país. Atraso e definhamento da economia, proliferação da corrupção e do negocismo, redução da qualidade da democracia com tentativas de controlo e silenciamento da comunicação social. A que se podem juntar o descontrolo total do despesismo do Estado, o endividamento galopante do país nos mercados internacionais, um desemprego inédito e o aumento incessante de impostos a par de cortes nos salários.

Percebe-se, por tudo isto, que Sócrates não queria enfrentar as consequências próximas da sua desastrada e irresponsável governação. Que tente, uma vez mais, vitimizar-se e atirar as culpas para cima de outros. Que prefira, com frio calculismo político, a ruptura a qualquer negociação ou entendimento mínimo que o obriguem a manter-se em funções. Sem mais expedientes. E a arcar com as consequências.
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«SOL» de 29 Out 10

Alguém tem que ceder

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Por João Paulo Guerra

A COMÉDIA romântica com argumento e realização de Nancy Meyers intitulada “Something’s Gotta Give”, exibida em Portugal com o título “Alguém tem que ceder”, conta a história de um ‘playboy’ irrecuperável perdido entre a mais recente conquista e a inesperada mãe da jovem.

Pelo meio, o ‘playboy' é traído pelo coração propriamente dito, o jovem médico assistente antecipa-se na sedução da mãe da miúda e o filme acaba bem, romanticamente, em Paris.

E só mesmo o título é que pode sugerir alguma comparação com a banal ‘sitcom' de política de cordel entre dois partidos tão sequiosos de poder como ansiosos por se livrarem do incómodo de ter que prestar contas pela governação. A política portuguesa está cheia de fugitivos, de agentes políticos que fazem da política o trânsito para a vida regalada - até agora - dos conselhos de administração, com prebendas, sinecuras, tachos, penachos e regalias correlativas. Não há memória de qualquer político que tenha ficado mal na vida e não foi seguramente à custa do subsídio de reintegração.

A cena em exibição entre Governo e PSD é de baixa comédia e baixinha política. O Governo, por mais que diga, tem mais medo de eleições que do FMI. O PSD, por mais que conte, quer que o PS faça o trabalho sujo de pôr em vigor este Orçamento saqueador. O Governo quer que o PSD se comprometa com o Orçamento para que o ónus não bata apenas à porta do Largo do Rato. O PSD quer deixar o PS, sozinho, a contas com alguma fúria do eleitorado. E o povo que paga o bilhete para o triste espectáculo, também paga os cenários, o guarda-roupa, os adereços, os efeitos especiais, as comedorias, mais as vitualhas do banquete.

Alguém tem que ceder? Que ceda o povinho que é para isso que cá anda.
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«DE» de 29 Out 10

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Adivinha

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Por João Paulo Guerra

ESTIVE VAI-NÃO-VAI para apostar que o acordo para viabilização do Orçamento era aprovado terça-feira, mesmo a tempo da apresentação da recandidatura do professor Cavaco Silva.

Mas afinal aprendi que o mais avisado é seguir o conselho de um velho pensador português: prognósticos só depois do jogo.

Uma das razões porque apostaria era de ordem zodiacal: acabáramos de entrar no Escorpião, o signo magnético do senhor dos propósitos, do alto preço, o guerreiro que procura o caminho infalível para atingir os seus objectivos, para além do visível, com Marte como planeta regente, e com Vénus e a Lua cooperativos. Outra, mais prosaica e terrena, era simplesmente porque a delegação do PSD às conversações com o Governo haveria de querer acorrer ao CCB, a marcar presença no beija-mão. Afinal a delegação foi ao beija-mão mas de mãos a abanar quanto a compromisso para viabilizar o Orçamento.

Enganava-me pois e admito-o. Nisto de palpites até o polvo Paul, que ficou célebre por acertar nos vencedores dos jogos do último Mundial de futebol, terá falhado o derradeiro prognóstico, não adivinhando que iria morrer de causas naturais no aquário de Oberhausen.

Há no entanto um enigma na alocução do recandidato que "continua a ser Presidente". É quando o professor diz que "qualquer Governo contará sempre" com a sua "cooperação na resolução dos problemas do país". Ninguém se meta a adivinhar. Mas esta referência a "qualquer governo" poderá trazer água no bico. E o pote da água que traz a alusão no bico pode ser, por exemplo, um chumbo do Orçamento, como também pode muito bem não ser. Especular é uma contemplação própria do raciocínio humano mas adivinhar é do domínio da bruxaria. E para o Dia das Bruxas ainda faltam três noites.
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«DE» de 28 Out 10

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

'Hay Presidente? Soy a favor!'

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Por Ferreira Fernades

MEDIDA sábia em dia em que só se lhe pedia o anúncio da candidatura: Cavaco Silva deu ordens à sua campanha para que os gastos não ultrapassem metade do tecto que a lei impõe. Duplamente sábia, aliás. Caem sempre bem, e agora mais, os anúncios de cortes nas próprias despesas. E, depois, o Presidente Cavaco pode cortar na propaganda sem ser imprudente. No Palácio de Belém os contratos de arrendamento são sempre por dez anos. Eanes entrou em 1976, saiu em 86, Soares, 1986-96, Sampaio, 1996-2006, logo, Cavaco, que entrou em 2006, sabe que 2011 são favas contadas.
Os nossos quinquénios presidenciais são como os planos quinquenais soviéticos, são números falsos. Os mandatos presidenciais, ao contrário do que diz a Constituição, são de dez anos - com um faz de conta de campanha no meio. Os portugueses têm uma leitura muito peculiar da velha frase anarquista, eles soletram-na assim: "Hay Presidente? Soy a favor." Entre nós, os Presidentes são sempre reeleitos, por isso nas campanhas do meio (as do fim do "primeiro" mandato) há sempre um vazio de concorrentes credíveis. No fim de Soares (1996), Cavaco ousou candidatar-se; no meio de Sampaio (2001), Cavaco cortou-se.
Na verdade, as próximas presidenciais são em 2016. Um corte nas despesas a sério não é gastar, agora, só metade na campanha, seria acabar com a campanha toda e com estas inúteis eleições-intervalo.
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«DN» de 27 Out 10

A quem serve o interesse nacional?

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Por Baptista-Bastos

A EXPRESSÃO "interesse nacional", muito em voga nos últimos tempos, é recuperada do discurso que marcou os anos salazaristas. Acontece que Salazar escrevia bem e assimilava melhor, leitor com mão profusa do Padre Vieira, o que melhora o estilo e ajuda os labirintos da metáfora. Os senhores que se servem, agora, da locução, nada sabem de metáforas, de Vieira, e muito menos das inclusões que tal alusão comporta e envolve. E, involuntariamente, são netos de Salazar. A árvore da língua exige a consciência de a saber afeiçoar às circunstâncias, neste caso políticas. A articulada ignorância que demonstram causa um cansaço interminável a quem é medianamente letrado.

Em nome do "interesse nacional", duas vistosas delegações (do PS e do PSD), procuram, no sigilo de enternecedoras conversas, salvar a pátria da derrocada. Os drs. Teixeira dos Santos e Eduardo Catroga são criaturas estimáveis. Em épocas diferentes já tentaram dar sentido à vida portuguesa, e contribuir para a nossa felicidade, mas, lamentavelmente, tudo piorou depois das suas influências. Sempre em nome do "interesse nacional", têm mantido o statu quo, de que são crias e guardiães. As preocupações de ambos nada têm a ver com a renovação do presente. As reuniões apenas tentam dirimir a questão do poder. O conceito de "interesse nacional", na acepção mais nobre, implica a regulação dos laços sociais, e a capacidade de reformulação do sistema, a fim de se definir o que deve ser realizado. De contrário, é um conceito abstracto, porque dele é expulsa a população, permanentemente desrespeitada nos seus direitos e espoliada das suas prerrogativas fundamentais. O "interesse nacional" corresponde ao interesse de uma minoria, cuja natureza de classe (não receemos a noção) invadiu tanto o campo privado como o público. Não há identificação possível entre o tão declamado "interesse nacional" e aquilo que, directamente, diz respeito a todos nós. Nós pertencemos a outra história. À daqueles que pagam a factura pelos crimes que outros, impunemente, cometeram. Não sei muito bem qual o "interesse nacional" que os representantes dos dois partidos em conclave estão a defender, a preservar, a resguardar. A hegemonia do PS e do PSD é balizada por um conservadorismo absolutamente imoral porque gerador das mais atrozes desigualdades. Os drs. Catroga e Teixeira dos Santos não estão ali para reforçar o vínculo social dos portugueses, para melhorar a nossa vida. Estão ali com sentimentos de pacotilha, combinados na ideologia dominante, e cujos resultados estarão sempre esvaziados de substância, pelo carácter dos objectivos visados: manter o sistema a todo o custo. Sabemos o preço desse custo e a índole desse sistema.
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«DN» de 27 Out 10

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A tragédia desejada

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Por Rui Tavares

É ESTRANHO dizê-lo, mas se o orçamento (previsto) fosse apenas injusto, nós já nem daríamos por isso. O nosso país é injusto há muito tempo; nos últimos anos só pontualmente e parcialmente contrariou essa tendência.

Mas é preciso dizer que este orçamento não é só injusto; é errado.

É perturbante pensá-lo, mas se este orçamento fosse apenas errado talvez nos limitássemos a encolher os ombros. Este país tem vivido com mais políticas erradas do que certas. E por vezes o errado é a única coisa que existe.

Mas é preciso insistir que este orçamento não é só errado; é trágico.

E por aí adiante. Essa tragédia vai ser feita de muitas micro-tragédias: quem tem um mínimo de noção de como vive em Portugal a maioria das pessoas só pode ficar arrepiado com o que aí vem. Isto não é só injusto, errado e trágico. Isto vai ficar muito pior.

E mesmo isso não é o pior. O pior é a forma tonitruante, insistente e demagógica como isto foi matraqueado nos últimos tempos. Num momento da verdade como este, esperaríamos que ao menos aqueles que passaram os últimos anos clamando por esta receita (cortes de salários, recessão induzida) sentissem a credibilidade em risco. Neste particular, eu já não tenho quaisquer ilusões. O pensamento do status quo é, afinal de contas, isso mesmo. O partido que mais pediu por austeridade — o PSD — faz agora uma tremebunda birra, como se a não quisesse aprovar. Os profetas do sofrimento já sabem o que vão dizer quando isto falhar, até porque é o mesmo de antes: que não sofremos o bastante. Fica sempre bem.

Em vez de nos salvar, esta receita vai aproximar-nos do agravamento da dívida, da bancarrota e da liquidação total. A primeira obrigação de quem discorde é dizer isto mesmo. Que ao menos fique registado. Nem todos os economistas, políticos e comentadores achavam o mesmo em Outubro de 2010.

Mas não chega. Se o caminho que nos trouxe até aqui foi errado, é preciso explicar como teria sido melhor. E para mostrar outro caminho, não adianta olhar apenas para as estreitas ravinas que delimitam o percurso nacional e que fazem crer que cada passo que demos foi inevitável. É preciso olhar para o mapa. Neste caso é, inevitavelmente, o mapa da Europa.

Os líderes políticos e a opinião tiveram um ano inteiro para poder olhar para esta crise como resultado das debilidades institucionais europeias. Na fase crítica, os nossos governos tiveram o último semestre para montar uma resposta a estas debilidades: levando o Banco Central Europeu a comprar dívida soberana diretamente (em vez de fazer disso um belo negócio para os privados), emitindo eurotítulos que permitissem àUE ter uma política expansionista na escala continental em que ela é globalmente sustentável. Havia oposição? Claro. Mas eles (Sócrates, Zapatero, Sarkozy) falharam miseravelmente no debate; nem sequer o trouxeram para a opinião pública europeia, onde ele poderia ser ganho.

E mesmo dizer isto não chega. Agora que estamos onde estamos, é preciso dizer como se poderia reagir de uma forma mais justa: fazendo os bancos pagar os mesmos impostos que as outras empresas, acabando com o desperdício nas parcerias público-privadas, mantendo a rede de segurança para a população mais pobre.

Onde é injusto, há que mostrar como poderia ter sido mais justo. Onde é errado, é preciso dizer como poderia ter sido de outra forma. Onde vai ser uma tragédia, é essencial demonstrar que poderia ter sido uma oportunidade. Fazer mais justo não teria apenas sido menos errado. Teria sido melhor.
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In RuiTavares.Net

Uma conversa com Mandelbrot

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Por Nuno Crato

SÁBADO DE MANHÃ, a primeira mensagem a entrar no meu computador foi lacónica. No assunto, anunciava “Benoit B. Mandelbrot has died :-(“; no corpo da mensagem havia apenas um apontador para a página do falecido matemático na Universidade de Yale. Tinha 85 anos e morreu de cancro. A missiva vinha de uma comunidade matemática de correio electrónico a que pertenço, e poucos comentários obteve. Um deles, de um colega de Mandelbrot dizia “Benoit was a very stimulating colleague. Much better to have a conversation with him than to listen to a lecture.” Lembrei-me da primeira vez que o vi. E da última. O meu correspondente tinha razão.

Tomei primeiramente contacto com o matemático Benoit B. Mandelbrot da mesma forma que muitos e muitos milhares de pessoas: lendo o seu livro “The Fractal Geometry of Nature”, de 1982. Aí, Mandelbrot desenvolveu a ideia de objecto “fractal”, termo que inventou e que rapidamente popularizou. Trata-se de um conceito matemático, de objecto que reproduz as mesmas propriedades a diversas escalas. Costuma-se dar o exemplo de uma couve-flor, ou dos bronquíolos, os pequenos canais que conduzem o ar nos pulmões. Se os virmos ao microscópio, reparamos nas mesmas características em diversas escalas. Os canais dividem-se e subdividem-se, parecendo que aumentando a visão com um microscópio se vai encontrar o mesmo que antes se via a olho nu — só que mais pequeno. Estas características de auto-semelhança em diversas escalas encontram-se muitas vezes na vida real, desde as plantas aos movimentos dos preços.

“The Fractal Geometry of Nature” foi magnificamente traduzida para português por Carlos Fiolhais e por Malaquias Lima e apareceu publicada em 1991 pela Gradiva com o título “Objectos Fractais”. O livro, como muitos do mesmo autor, é uma mistura fascinante de explicações de conceitos matemáticos, de ilustrações, de exemplos de aplicação tirados de diversas áreas do conhecimento, da hidrologia à linguística, e de referências históricas, semeadas de explicações matemáticas. Fui lendo-o, aos bocados, saltando capítulos, ao capricho dos dias. Achava-o interessante. Muito interessante. Mas apenas isso.

Mais tarde, quando estava a estudar para o doutoramento, encaminhado para os processos aleatórios e para as séries temporais, o meu orientador recomendou-me um trabalho de Mandelbrot onde este explicava como certos processos estranhos, de variabilidade infinita, podiam ter propriedades surpreendentes. Fiquei seduzido e acabei por defender uma tese nessa área. Pelo meio, encontrei Mandelbrot, em Minnesota, numa conferência. Foi em 1990 e lembro-me que não apreciei especialmente a sua palestra, que demorou mais de uma hora, em que falou de tudo, desde música a teoremas matemáticos difíceis. Pareceu-me que vagueava. Alguns amigos que também estavam na conferência diziam-me “Não sabias!? Ele é sempre assim, mas cada minuto da sua palestra dá uma ideia nova para uma tese de doutoramento.” Nos intervalos, conversei um pouco com Mandelbrot. Vimo-nos várias vezes, mas nunca tive coragem para falar muito com ele.

A minha última conversa com Mandelbrot ocorreu dez anos mais tarde. Pelo meio defendi a minha tese e publiquei vários trabalhos na área. Tivemos algumas oportunidades para interagir, mas sempre brevemente. Em 2000 fui visitá-lo a casa, nos arredores de Nova Iorque. O tempo estava magnífico e ficámos um bocado no jardim. Fomos depois ver algumas obras de arte que lhe tinham oferecido, com desenhos fractais, e sentámo-nos ao que nos trazia. Felizmente, um amigo presente em parte do encontro tirou-nos algumas fotografias; eu tomei notas e gravei partes da conversa. Fui agora recuperar umas e outras. Com um sentimento estranho. A gravação deteriorou-se e sobraram apenas pedaços entrecortados.

Falámos primeiramente do que me trazia: um trabalho que estava a finalizar sobre o comportamento de alguns algoritmos e as estatísticas dos custos de computação. “Trabalhei para a IBM durante 35 anos,” disse ele, “por isso sei que tudo o que tem a ver com computação é hoje muito importante”. A IBM foi o emprego mais longo deste matemático nascido em Varsóvia em 1924, registado francês e, mais tarde, também cidadão dos Estados Unidos. Passou pelo CNRS em Paris, pelo MIT, por Harvard e por muitas outras universidades.

Referimo-nos ao seu novo emprego na Universidade de Yale, e Mandelbrot falou entusiasmado de uma cadeira que tinha começado a leccionar para estudantes de Humanidades. “É muito importante que eles tenham contacto com a ciência e a matemática, essa possibilidade é uma das coisas boas do ensino nos Estados Unidos”.

Falámos da origem dos fractais, da razão por que se encontram em tantos objectos geométricos, físicos e sociais. Mandelbrot não tinha uma explicação completa, mas afirmou “Em ciência é muitas vezes assim: primeiro descreve-se, depois percebem-se as razões. Em muitas áreas estamos ainda a descrever a natureza.”
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 23 Out 10 (adaptado)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Catroga e o Duque

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Por João Duque

1. É verdade que assinei o despacho que se pode ler [aqui].

2. Os textos dos Despachos são standard e não são explicativos. A justificação anexa é que o pode ser.

3. Em Julho de 2010 enviei um conjunto de respostas a uma entrevista ao SOL e que nunca foi publicada e penso que terá sido esclarecedora. Deixo-as aqui para esclarecimento da situação.

.oOo.

Cara XXX

Agradeço o interesse e a preocupação em recolher as minhas respostas às questões colocadas que passo a esclarecer:

O Professor Eduardo Catroga licenciou-se nesta casa em Julho de 1966, tendo sido na data o melhor aluno desse ano. Iniciou funções docentes no ISEG no ano lectivo 1967 / 68, tendo sido regente das cadeiras na área da Economia da Empresa até ao lectivo de 1974 / 75. A escola, atendo ao seu curriculum académico e profissional tomou a iniciativa de o contratar a partir de 14 de Outubro de 1991 como Professor Catedrático Convidado, para reforçar as valências do Mestrado e Gestão. Tem aqui prestado, desde essa data, serviço docente em cadeiras do Mestrado em Gestão / MBA. Recentemente tem leccionado a cadeira de “Análise da Indústria e da Concorrência” no MBA. Além disso o Prof. Eduardo Catroga é membro do Conselho Consultivo do ISEG, é Presidente da Associação dos Antigos Alunos do ISEG e Presidente da Fundação Económicas, associação sem fins lucrativos no perímetro do ISEG. Participa activamente na vida da escola organizando o seminário permanente do MBA (designado por “Vital Topics”) e ainda o ciclo de conferências designada Ciclo de Pensamentos ISEG 2010 dedicado ao tema: “Portugal 2020: Para onde vai a Economia Portuguesa?” e enquadrado no âmbito da Associação dos Antigos Alunos e da Fundação Económicas.

Após a sua aposentação em 2007, o Professor Eduardo Catroga necessitou de autorização da Presidência do Conselho de Ministros para acumular as funções de docente com a de aposentado, o que sucedeu com despacho do Secretário de Estado em 3 de Abril de 2008 e para os anos lectivos de 2007/08, 2008/2009 e 2009/2010. Porém, e a pedido do próprio, essa acumulação de funções foi feita sem encargos para o ISEG (isto é, para o Estado) pelo que o contrato que se ajusta a esse tipo de situação é o contrato a tempo parcial 0%, significando que o serviço docente que lhe é atribuído não tem qualquer contrapartida financeira. Quer isso dizer que esteve a leccionar sem receber qualquer valor monetário.

No decurso destas autorizações procedeu-se agora (isto é, à data do Despacho, Maio de 2010) a uma mera formalização da relação contratual acima descrita, pelo que só agora (em Maio) foi publicada.

Que funções vai desempenhar o Prof. Eduardo Catroga no ISEG? Que cadeira(s) vai leccionar?

Uma vez que não tem intenção de continuar a exercer as funções não haverá mais serviço docente, nem contratos, pelo que o último contrato assinado terminará no próximo Setembro de 2010 (já acabou) e não será renovado, cumprindo o despacho da Presidência do Conselho de Ministros e cessando esta longa relação ao nível contratual.

O referido despacho invoca a «conveniência urgência de serviço» para justificar a contratação. Qual o motivo desta urgência?

Os contratos administrativos de provimento realizados ao abrigo do anterior ECDU (Estatuto da Carreira Docente Universitária) eram celebrados com base nessa expressão que decorria da própria lei uma vez que o que se pretendia era dar continuidade aos contratos de docente convidado, e que o eram pela natureza das suas próprias competências específicas e experiência curricular, evitando de abrir procedimento concursal para professor de carreira, o que não era manifestamente o caso.

Diz-se no despacho que as funções vão ser exercidas «a tempo parcial 0%». O que é que isto significa? Significa que não haverá componente lectiva nas suas funções?

Isso significa que a função não foi remunerada, isto é, teve carga horária, mas não usufruiu de qualquer remuneração. Aliás, a sua disponibilidade para continuar a leccionar, foi autorizado nessas condições, isto é, devidamente autorizado pelo Primeiro Ministro e a título gratuito, o que sucedeu e continuou a suceder.

Qual será o vencimento pago ao Prof. Eduardo Catroga?

€ 0,00. O serviço foi e é feito pro bono.

O Professor passa a fazer parte do quadro do ISEG?

Na verdade o que existe actualmente não é um “quadro” mas antes um “Mapa de Pessoal”. Mas de qualquer modo e entendendo o espírito da sua questão, sou a informá-la que um Professor Convidado nunca pertence aos “quadros” de uma Universidade, isto é nunca terá um contrato por tempo indeterminado. Nem isso faria qualquer sentido neste caso porque está aposentado.

O despacho diz também que a contratação tem «efeitos a partir de 1 de Setembro de 2008». O que é que isto significa?

Isso significa que estava a exercer a função desde essa data sem vencimento e com a situação contratual autorizada superiormente, mas sem continuidade contratual que se exigia. O acto do actual contrato evidenciado no despacho é uma mera formalização.

O Professor vai receber vencimentos retroactivamente a partir dessa data?

Como ganhava €0, os retroactivos seriam de €0. Todo esse serviço e essas aulas foram a título gratuito pro bono.

Por que motivo a contratação tem efeitos a partir dessa data?

Para garantir a continuidade contratual e a formal relação com o ISEG que se exigia e que não estava totalmente formalizada pelo meu antecessor.
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XXX, se tiver mais dúvidas ou se achar que as respostas não foram esclarecedoras esteja integralmente à vontade para questionar. Mas este é um daqueles casos, a par com o do Deputado Francisco Louçã, em que o Estado apenas tem a beneficiar, uma vez que o serviço docente por eles prestado é totalmente feito a título gratuito. Bem haja aos dois!

Com as melhores saudações,

João Duque

Negociações

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Por João Paulo Guerra

VAI POR AÍ uma certa confusão: quem negoceia a viabilização do Orçamento é o Governo do PS com o PSD. Mas a matéria em negociação diz respeito aos que não têm voto nesta matéria: os portugueses que vão ser espoliados de direitos e condições de vida mais dignas. Com isto não se contesta a legitimidade democrática dos partidos para formarem governos e constituírem-se oposições. Mas os partidos, como o nome indica, são uma parte. E o todo é que sofre.

De maneira que para os partidos o regateio do voto para o Orçamento pode situar-se ao nível da taxa do IVA sobre o leite achocolatado, como outrora se situou na aprovação de uma fábrica de queijo. À mesa das negociações, os partidos defendem os respectivos interesses de poder e vendem-se por bagatelas. Entretanto, a matéria negociada corta nos salários, nas pensões e abonos, suprime subsídios, aumenta impostos, faz um inferno da vida das pessoas concretas que, bem vistas as coisas, são quem paga as contas.

Ou seja: os portugueses em geral trabalham, recebem, consomem, pagam impostos, alimentam o mercado interno e a máquina do Estado. Os partidos formam governos, governam ou desgovernam. E em caso de desgoverno são os próprios partidos que estabelecem as penas a que os cidadãos vão ser condenados pelos resultados das más políticas governativas. E o cidadão não tem recurso? Tem. O recurso é a alternância dos últimos 35 anos por parte de três partidos que já formaram todas as combinações possíveis para dirigir a máquina do Estado, com os resultados que estão à vista.

Nos momentos de grandes decisões é que se vê o fosso entre governantes e governados. Governantes são aqueles que posam para a fotografia, sorridentes, enquanto trocam chalaças sobre o IVA no leite achocolatado
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«DE» de 25 Out 10

sábado, 23 de outubro de 2010

Passatempo de 21-23 Out 10 - Solução

Pág. 67
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Os 2 leitores que mais se tenham aproximado deste valor têm 24h para escreverem para medina.ribeiro@gmail.com, indicando morada para envio. O 1.º classificado deverá, também, dizer qual dos 2 livros prefere. O 2.º classificado receberá o outro.
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Actualização: se não me enganei nas contas:

1.º: Luís Bonito .. palpite 73 => erro de 6 páginas
2.º: João Rodrigues .. palpite 55 => erro de 12 páginas

Bem-vindos ao inferno!

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Por João Duque

A UNIÃO EUROPEIA tanto exige contas públicas sãs como aceita estas trapaças contabilísticas que só iludem ignorantes.

Paulo Trouxa, conhecido pelo "Pê-Tê" lá do bairro, morreu. Chegado às portas do paraíso, tem de escolher entre o céu ou o inferno, depois de experimentar um e outro durante 24 horas.

O dia no Inferno foi uma delícia: companhias femininas meio desnudadas com corpos divinos e sensações inesquecíveis; desportos variados; refeições abundantes, compostas por iguarias e bebidas nunca antes provadas; amigos em cavaqueira e animação constante, em festas de fim da tarde a desfrutar paisagens lindas; música alegre e estimulante; tudo limpo, arrumado e grátis!

O dia no céu foi sensaborão: anjos e mais anjos assexuados, cobertos por pudicas túnicas, a tocarem em harpa música tristonha a convidar à reflexão intimista; refeições ligeiras, acompanhadas exclusivamente por água, adequadas à paz do corpo e do espírito; vida monótona, sem alterações de cor, música, ritmo ou movimento; sensação de bem-estar que até chateia...

A escolha foi óbvia: "Quero o inferno!"

Regressado ao inferno entra num local horrendo: lixo por todo o lado, gente horripilante, suja e faminta, agrilhoada, a trabalhar arduamente sob um sol escaldante, num deserto de nada, a uma temperatura insuportável... Um inferno!

- Mas eu não escolhi isto! - gritou o Pê-Tê.

- Pois não - respondeu-lhe o Diabo - Antes estava em campanha, agora apanhei o teu voto! Too late, eh, eh, eh!...

O fundo de pensões da PT foi transferido para a gestão do Estado, passando igualmente para este a responsabilidade do mesmo. Se o negócio tivesse sido feito com uma seguradora, e admitindo que realizado ao justo valor, não teria qualquer impacto nos resultados do ano, porque os ativos transferidos (dinheiro e outros valores mobiliários) seriam iguais às responsabilidades futuras.

Como é feito com o Estado, tudo é diferente: a receção dos ativos é reconhecida como uma receita, e esquece-se os passivos. Isso será uma responsabilidade de outros... Como se não existissem!

Enganamo-nos, sob a batuta da União Europeia, que tanto exige que apresentemos contas públicas sãs como aceita estas trapaças contabilísticas que só iludem ignorantes.

Como o sistema de pensões de reforma vai colapsar a prazo, uma vez que se prevê um número crescente de pensionistas a serem suportados por um número decrescente de ativos, o equilíbrio do futuro será, inevitavelmente, feito à custa da redução das pensões. Em 2028, o número de pensionistas já será igual ao número de ativos, admitindo que Portugal vai conseguir manter os atuais, não se verificando nova hemorragia de emigrantes semelhante à dos anos 60, o que é muito provável, face ao triste crescimento económico que antevemos para a próxima década. Partirão os mais novos, os mais aptos, os mais enérgicos e produtivos. Ficarão os mais velhos e os mais dependentes.

E haverá condições para manter os compromissos destes novos quadros da PT para o futuro? Claro que não. Uma vez integrados, virá um dia em que o plafonamento das reformas será imposto, depois as reduções das pensões a escalões mais baixos, e por aí fora... Também não imaginava um corte nos salários...

Eu que já estou no inferno deste sistema de pensões do Estado saúdo os novos que aí vêm: Bem-vindos ao inferno!
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«Expresso» de 16 Out 10

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Ó Lua que vais tão alta

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Por Antunes Ferreira

DEFINITIVAMENTE, a tradição já não é o que era. Ao longo do tempo, a Lua serviu de inspiração a poetas e prosadores, condicionou as marés, equacionou os partos, influenciou a agricultura, alumiou as religiões; e as devoções. A nossa, pois que existe, só no sistema solar, uma caterva delas. A Terra, modestamente, possui só uma. Talvez por isso se farte de trabalhar diversificadamente. E convém não nos esquecermos que apenas tem dois quartos. Tudo indica, sem casa de banho.

Tome-se o exemplo do Portugal que somos. O Povo, essa entidade anónima, matreira e sabedora, que anteriormente cheirava mal dos pés e dos sovacos, dispensou-lhe sempre uma enorme atenção. A expressão andar na Lua cada vez é mais frequente. Cidadãos cumpridores dos seus deveres cívicos e maritais integram essa imensa mole humana dos lunáticos. Dos políticos, nem é bom falar. Não foi, porém, ainda possível relacionar a Lua com a crise ou a discussão do OE 2011. Não se desespere: lá chegaremos.

Do anedotário que ela motivou é melhor nem falar. O fado, como não podia deixar de ser, também a incluiu nas suas letras: enquanto Lisboa namora o Tejo, a Lua arrasta a asa ao Sol. Neste caso é uma situação perfeitamente platónica; quando ela se deita, levanta-se o outro. Era o caso da mulher-a-dias casada com um guarda-nocturno. Nos tempos em que os havia.

Quando Neil Armstrong desceu cautelosamente do módulo lunar Eagle e pisou o solo, fez uma afirmação que ficou para a História do planeta azul: «Este é um pequeno passo para o homem, mas um enorme salto para a humanidade». A missão Apollo 11 resultara em cheio; a Lua perdia a aura que até então a envolvera. Conta-se que uma senhora idosa da província comentara que não era verdade. Se o homem tivesse chegado lá acima, caía. Newton não diria melhor. A partir de então, o nosso satélite vulgarizou-se. Com directo na televisão e tudo.

Estava-se nisto, quando chega a notícia de que a Lua não é o planeta seco e desolado que se imaginava e a prova chegou após uma experiência da NASA que, nos finais do ano passado, fez embater contra a superfície do planeta satélite um engenho de 2,3 toneladas que libertou uma grande quantidade de água. Face a isto, os cientistas acreditam na possibilidade de construir na Lua um posto exterior permanente para a humanidade.

Mas não só a H2O que ali existe em cristais finíssimos resultou da explosão na cratera Cabeus. Uma sonda LCROSS seguiu o engenho e analisou os destroços do embate que causou uma cratera de 20 a 30 metros de diâmetro. O resultado deixou os cientistas da NASA eufóricos. A descoberta ultrapassou todas as expectativas. O solo lunar é mais rico e complexo do que os geólogos pensavam. Uma variedade de elementos pode ser ali encontrada. Prata, hidrogénio e mercúrio são alguns deles. O Senhor Júlio Verne persiste em ser profeta, quiçá maior do que Maomé.

E é isto. Vamos, a partir de agora, estar atentos ao que se seguirá. Minas enormes, face às também enormes potencialidades do subsolo lunar vão ser exploradas, espera-se que sem o dramatismo da chilena San José, em Copiapó. Deixem-me que vos diga: as imagens directas do resgate dos 33 mineiros enterrados a 700 metros de profundidade, pela cápsula Fénix, trouxeram-me à memória a alunagem.

Como se poderá dizer nos dias que vão correndo, face às descobertas dos segredos do nosso satélite, a quadra popular «ó Lua que vais tão alta; redonda como um tamanco; ó Maria traz-me a escada; que eu não chego lá c’o banco»?

Liberdade

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Por João Paulo Guerra

PORTUGAL DESABOU 10 furos para um 40.º lugar na tabela mundial da liberdade de imprensa elaborada pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF).

Desde que os RSF publicam a sua tabela, em 2004, esta é a cotação mais baixa da liberdade de imprensa em Portugal. E é caso para perguntar o que ganha Portugal com as mentalidades, os comportamentos, os tiques de arrogância e intolerância que determinaram a queda na classificação? Não ganha nada. Só perde num domínio que é pedra-de-toque da democracia e dos direitos humanos.

Os Repórteres Sem Fronteiras não fundamentam a causa do trambolhão que coloca Portugal vizinho da Tanzânia e da Papua Nova Guiné em matéria de liberdade de imprensa. Mas os "casos" do ano, referentes a Portugal em matéria de liberdade de imprensa recenseados pelos RSF são bem claros: o roubo de gravadores de jornalistas da revista Sábado por um deputado do partido do Governo e os processos judiciais contra o jornal Sol, nomeadamente movidos por um ex-representante do Estado na Administração da PT. Ambos os casos foram protagonizados por meteóricas estrelas do partido do Governo, cuja ascensão na escadaria do poder terá sido directamente proporcional ao trambolhão que terão dado na consideração pública.

O que é particularmente preocupante é que a queda da cotação do país na tabela da liberdade de imprensa acompanha a decadência acentuada do nível de vida dos portugueses. O que parece dar razão a quem pensa, diz e escreve que as políticas restritivas, que impõem sempre os mesmos sacrifícios à mesma maioria da população, são inseparáveis da restrição dos direitos e liberdades dos cidadãos. A senhora Merkl, paradigma dos governantes da direita neoliberal à esquerda envergonhada, já explicou o que é que anda por aí no rastro da austeridade.
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«DE» de 22 Out 10

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

O DÉFICE DE 4,6% do PIB que o Governo se propõe atingir no Orçamento para 2011 é possível sem novos PEC, sem mais impostos, sem mais cortes nos salários?

E é credível quando o Governo é já o único a prever um crescimento de 0,2% e todos os organismos internacionais apontam uma recessão inevitável e um crescimento negativo que pode chegar a -1,8%?

«Tivemos o cuidado de uma prudência acrescida na previsão da receita», alega o ministro Teixeira dos Santos. Ora, a verdade é que, em 2009 como em 2010, este Governo e o seu ministro das Finanças falharam clamorosamente, tanto nas previsões das receitas como no descontrolo das despesas. E ocultaram deliberadamente esse facto aos portugueses.

Em 2009, recorde-se, José Sócrates e Teixeira dos Santos começaram por colocar o défice em 2,2%, subiram-no em Maio para 5,9% e assim o mantiveram obstinadamente até passarem as legislativas de Setembro. Como há dias salientava o economista Vítor Bento: «Chegámos ao final do ano com um défice que era quase o dobro do que fora divulgado pelo Governo até às eleições». O défice de 2009 ficou em 9,3%.

Em 2010, sublinhe-se, Sócrates e o seu ministro das Finanças estabeleceram a meta de 7,3% para o défice. Para a cumprir, já lançaram três PEC e, apesar disso, continuam a esconder o verdadeiro estado das contas públicas e o descalabro em que se encontra o défice.

No meio deste inadmissível apagão informativo, vai-se sabendo que o défice estava em 9,4% no final de Junho. E que a despesa do Estado continuou a crescer irresponsavelmente nestes últimos meses. Sem a cosmética dos 2.600 milhões do fundo de pensões da PT, o défice real de 2010 ficará - apesar dos cortes dos PEC e do aumento da carga fiscal - em valores próximos dos 9% ou 10%.

O jovem socratista Fernando Medina, chamado há pouco a substituir como porta-voz do PS o desaparecido Tiago Silveira, que foi rapidamente consumido pelas labaredas do cargo, vem agora dizer-nos que «o objectivo central é a aprovação de um Orçamento credível na redução do défice». Credível?! Com o passado recente de falhanços, omissões e mentiras do Governo, pensará que ainda alguém o leva a sério? A ele, a Sócrates ou a Teixeira dos Santos?
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«SOL» de 22 Out 10

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Juízes são pagos para incomodar?!

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Por Ferreira Fernandes

O PRESIDENTE da Associação Sindical dos Juízes diz que há uma perseguição dos políticos aos magistrados: "Estamos a pagar a factura de ter incomodado, nas investigações e no trabalho jurisdicional que fazemos, os boys do Partido Socialista." Temos assim que para o juiz António Martins o Estado português se explica como uma luta entre polícias e ladrões.
Cá de baixo, sinto-me pequenino. Amanhã, uns colegas do Martins investigam e processam um ministro ou um deputado, e vejo o acusado a responder à la Martins: "Eu não fiz nada! Esses procuradores e esses juízes é que se estão a vingar porque eu pertenço ao Governo [ou ao Parlamento] que lhes tirou 20% de subsídio de renda de casa." Bola de pingue-pongue é o que me sinto entre raquetas de chantagistas. Com uma diferença. Se os deputados no dia 29, aprovando o Orçamento do Estado, cortarem os tais 20% aos magistrados, estão a zelar pelas contas públicas. Bem ou mal, é discutível, mas fazem aquilo para que são pagos. Já o juiz Martins quando se refere à actividade dos seus escolhe um verbo peculiar: incomodar. Mas eu pago-lhes para incomodar?! Eu pago aos magistrados para investigarem os criminosos e condenar. Qual a lista dos deputados e ministros condenados? É que isso de incomodar não é de órgão de soberania, é de quem sopra acusações e depois nada prova. E a esses eu tirava 100% do subsídio de renda.
«DN» de 20 Out 10

Extintores

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Por João Paulo Guerra

CONTAVA o Diário de Notícias na edição de ontem que o Governo, no seu afã de exterminar algum Estado, se propunha extinguir nove organismos extintos.


Não é original. Já em Junho de 2002 o Governo de Durão Barroso determinou a extinção de organismos extintos. Anteriormente, em plena época pantanal, o Conselho de Ministros dera 15 dias para que os vários ministérios apresentassem uma lista dos organismos públicos que poderiam ser "extintos, reformulados ou fundidos". Porém, em cima da herança do Secretariado para a Modernização Administrativa "cavaquista", o "guterrismo" limitou-se a fundar o Programa Integrado de Formação para a Modernização Pública. Uma década depois, será possível saber o que ganhou e perdeu o Estado entre o SMA e o PIFMP? Aliás, permanecem essas e outras questões a considerar nesta missão de liquidação, dissolução, fusão e confusão de organismos.

A grande questão é que não houve ainda um exterminador verdadeiramente implacável de organismos excedentários na máquina da administração de um país com organismos a mais e serviços a menos. E por cada organismo extinto, o governo extintor, ou o seguinte, cria outros tantos, candidatos a extinção futura. Um dia haverá uma comissão de extinção de organismos do Estado, que não deverá no entanto confundir-se com a comissão de ex-organismos extintos, nem com a comissão de extinção de organismos em vias de extinção ou sequer com a comissão de pequenos e médios extintores.

Importaria era saber como é que estamos de ERCTIS? E de PECLEC? E que há quanto a SIGIC? E como vamos de POC? Onde pára o GTADS? O actual Governo propõe-se extinguir a Comissão para a Optimização dos Recursos Educativos. Será que o organismo, criado há dois meses, não substituiu convenientemente o GAE e o DAPP?
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«DN» de 21 Out 10

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Os culpados escapam sempre

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Por Baptista-Bastos


O ORÇAMENTO, aquilo que dele conhecemos, impõe-nos a obediência total a uma tremenda iniquidade. Falemos de servidão, afinal o que as circunstâncias favorecem: não podemos desobedecer porque o imposto de submissão, engendrado pelo Governo PS, abate-se sobre nós, e responsabiliza-nos sob a fórmula de "o interesse nacional". Expressão cuja lógica é a de comprometer toda a gente menos aqueles que, rigorosamente, são os culpados. O clamor de protestos que se escuta por aqui e por ali conduz-nos ao carácter relacional do poder. E induz-nos a reflectir sobre a sua natureza. No caso português, sobre a monstruosidade das suas aberrações.

A crise do sistema prolonga a argumentação deste Governo que não soube prever as condições históricas, nas quais o capitalismo se movia, e oculta as suas derivas e as suas incompetências com uma retórica "balsâmica". Ouve-se o primeiro-ministro e não se consegue descortinar onde está o "normal" e o "patológico". Mas também não distinguimos os objectivos de Passos Coelho, com o carácter das suas ofensivas sociais e a qualidade da democracia que diz defender. Que raio de democracia é esta, a de Passos, e aquela sob cujo paradigma temos vivido?

A encruzilhada na qual o País convenciona a sua perplexidade é bem pior do que a questão económico-financeira. É a ausência de alternativa. O Governo estrebucha. O PSD não serve. O rotativismo resultou neste imbróglio onde inexiste a racionalidade política, e as excrescências do improviso e as técnicas impositivas (para não dizer: repressivas) se sobrepõem aos próprios conceitos de democracia. Quando vinte por cento da população vivem abaixo do limiar da pobreza, e cerca de 600 mil portugueses estão desempregados; quando a nossa mocidade vai embora e licenciados ganham a vida nas caixas registadoras de supermercados, está estabelecida uma desapropriação social horrorosa. Goste-se ou não, foi-nos imposta uma forma de sociedade totalitária, sob a capa de "democracia de superfície". Nem o PS nem o PSD contrariaram a perda de valores e de padrões, comum à hierarquização do dinheiro que a nova ordem económica incutiu e estimulou.

As nossas sociedades actuais ainda dispõem das virtualidades, intrínsecas à ética republicana e à moral democrática? Em Portugal, muitos que beneficiaram da ruptura do 25 de Abril não são aqueles que pela liberdade se bateram e inúmeros perigos correram. Não há um destes, um sequer, que tenha três e quatro reformas; ou que receba, mensalmente, 3500 contos (moeda antiga) de pensão vitalícia e actualizada, por seis meses de funções numa poderosa instituição bancária pública.

Vê-se a dificuldade da questão. Mas alguma coisa tem de ser feita. Os bárbaros estão às portas de Bizâncio.
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«DN» de 20 Out 10

terça-feira, 19 de outubro de 2010

E depois?

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Por João Paulo Guerra

OS PORTUGUESES vão acabar por entender, perante esta etapa da crise e face à brutalidade das medidas de austeridade, que tanto lhes faz como lhes fez votar PS ou PSD.


As políticas dos dois partidos são idênticas, apenas divergindo em questões de luta pelo poder. O PSD não está em desacordo com o Orçamento do PS: está a fazer o seu número de prestidigitação para tirar um Coelho da cartola, ao mesmo tempo que procura que seja o PS a fazer o trabalho sujo, que lhe desbaste o caminho. Enquanto isto, o PS vai tentando diferenciar-se do PSD invocando a defesa do Estado Social, com o que poderá enganar mais uns tantos que acreditem que o Estado Social se defende com um Orçamento intermediado pelos bancos, que esmaga as famílias com menos rendimentos e aumenta as desigualdades. Atente-se neste pequeno mas significativo pormenor: o Governo que corta a direito, atropelando assalariados e pensionistas, justifica-se com a alegada escassez de meios técnicos para não carregar um poucochinho sobre as chamadas pensões douradas.

E depois há outro motivo de reflexão: de que vale aos portugueses votarem PS ou PSD se o País é depois governado pela direita radical europeia? Nunca como hoje a Europa foi tão uniforme na coloração política. E três dos governos que escapam ao redil, apesar das afinidades das práticas políticas - Portugal, Espanha e Grécia - estão sob terrível pressão para arrasar o que resta da Europa social. A direita europeia subiu ao poder sobre os escombros da política direitista dos partidos socialistas e social-democratas e agora tem o terreno desbravado para acabar com os derradeiros resquícios de direitos sociais.

E depois? Depois as Merkl e os Sarkozy nomeiam os seus regentes e os Pê Esses passam à história por umas décadas.
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«DE» de 19 Out 10

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Outonal

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Por Rui Tavares

DURANTE O VERÃO, Pedro Passos Coelho começou a parecer-se com o tipo que ganhou o euromilhões mas não teve tempo para levantar o prémio.

Semanas ou meses antes, com um empurrãozinho do caso PT/TVI, o poder ter-lhe-ia caído no colo. As sondagens eram boas, Pedro Passos Coelho teria chegado a primeiro-ministro se as eleições tivessem sido antecipadas naquela altura. Mas ele preferiu esperar que o governo “caísse de maduro”, no que aliás tinha o acordo da maioria dos comentadores da sua área política, ou preferiu “cozer o governo em lume brando”, como dizem os sabichões destas coisas, ou ainda, noutra frase também muito usada nestas ocasiões, “decidiu que não era o seu momento”.

Passos recuou quando era possível fazer cair o governo por causa de um caso político de interferência nos media, de grande ou plausível gravidade para a maioria do eleitorado, desligado da crise do euro, e que acima de tudo parecia ser responsabilidade exclusiva do primeiro-ministro. Pessoalmente, Passos Coelho tinha tudo a ganhar e pouco a perder, mas não teve aquele instinto matador que um político talentoso supostamente tem de ter. Só não precisaria de ter ficado em pânico depois.

Passado alguns meses, Passos Coelho tem aos olhos do eleitorado a mesma credibilidade que tem Sócrates — se pensarmos bem, até custa a crer que tenha caído tão rápido – a que se acrescenta a perene característica de qualquer líder do PSD: são todos tão nabos que parecem ter sido escolhidos na prateleiras da mercearia e não nas diretas do partido.

As sondagens são agora ambíguas ou mesmo más para ele e serão piores os resultados eleitorais se as eleições se derem após uma crise política na qual ele tenha responsabilidade pessoal. Essa crise política estaria diretamente relacionada com a crise orçamental, que certamente agravaria; num momento em que os “mercados” já desejam ver a situação do país como desesperada, Passos Coelho daria uma ajuda a que ela se tornasse efetivamente desesperada.

Acresce a isto que Passos Coelho provocaria esta crise chumbando um orçamento que parece feito de acordo com os desejos da área opinativa do PSD, mais do que qualquer outra. E achará ele que este é o seu momento?

Reformulando a pergunta: Passos Coelho não quis fazer cair o governo num momento que era de responsabilização mínima e ganho máximo para ele, e agora arriscaria fazê-lo num momento que é de responsabilização máxima e resultados mínimos ou até negativos? Não faz sentido. E, como não faz sentido, eu diria que não vai acontecer, e que Passos Coelho estará preparando por estes dias um recuo airoso. Para a próxima, poderá até poupar-nos ao drama preliminar, que só lhe dá a imagem de um líder intempestivo — ou seja, aquilo que o eleitorado já tem e não deseja.

De forma que a conclusão para Pedro Passos Coelho deveria ser, agora sim: este não é o seu momento. Nos próximos tempos ele terá de esperar. Também, que diabo, isto não é como ter perdido o bilhete do euromilhões premiado e não ter mais do que uma probabilidade infinitesimal de voltar a ganhar. Para mal dos nossos pecados, e de forma quase independente dos talentos que qualquer político tenha, quem for líder de um dois grandes partidos em Portugal arrisca-se sempre a chegar a primeiro-ministro.
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RuiTavares.Net

sábado, 16 de outubro de 2010

PIDE é a piza turca

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Por Antunes Ferreira

O AUTOCARRO passava em boa velocidade na estrada de duas vias de cada lado do separador central. É um itinerário principal, que os turcos vão construindo a partir do desenho inicial só com uma rodovia de ida e vinda. Liga Antalya à Capadócia, passando por Konya, a antiga capital. Sucedem-se estações de gasolineiras, penso que nunca vi tantas. E cartazes publicitários. Palavras complicadíssimas, a língua é tramada, entre as quais avulta PIDE. Será que por cá…

Perguntei ao guia, Olgun Doğaray, o significado e a ameaça de uma polícia política dilui-se: PIDE é a piza turca. Agradeci: teşekkűrederim, muito obrigado. Quem havia de dizer?... O homem é licenciado em filologia hispânica, começou a aprender Português em Novembro do ano passado, depois de anos a trabalhar com turistas de habla española.

Esteve em Portugal para o efeito. E fala com bastante correcção, por vezes entremeada de um portuñol que tenta corrigir logo. Chegámos à na Capadócia. Mais precisamente no sábado passado, ou seja, há oito dias. Amigos, familiares, conhecidos e correlativos tinham-me dito que a região era um espanto. E, numa altura como a que vivemos, em que não se pode acreditar em ninguém, nem mesmo em nós próprios, não é que tinham razão?

Graças a uma promoção de três empresas do ramo editorial, a minha mulher e eu decidimos avançar para a visita, claro, sem consultar o Senhor Presidente da República. Turquia é estrangeiro de fora – e de acordo com Sua Excelência, as férias dos lusitanos, ou seja, de todos nós, devem ser passadas cá dentro, incluindo, obviamente, o Allgarve. Porém, como sempre gostei de dar uma facadinha no poder e fugir aos ditames ou aos diktats, ainda que sejam made in Belém, fomos até ao ex-império otomano. Razão acrescida: este ano anda tivemos subsídio de férias e conto que tenhamos 13.º mês. Há, até, quem reze para que isso não fuja. Novenas em curso e abaixo-assinados no Facebook são o pão-nosso de cada dia.

Com 2011 não se pode brincar. Garante o Sol – o distinto semanário da nossa praça, não a estrela refulgente que nos ampara e ilumina – que o OE já está apurado. Se o jornal o disse – está dito. Habemus Orçamentus. Fumetto, bianco. Podemos, portanto, estar descansados. Já nem é necessário perderem-se muitas horas em São Bento. São dispensáveis muitas dores de cabeça no hemiciclo.

Em verdade, em verdade, deixem-me que vos diga. Sugestiva é a Turquia, onde hoje, depois dos solavancos e tropeções políticos, não se sabe se a Constituição foi alterada, não se sabe se quem terá aprovado as emendas estava legal, não se sabe como que as ditas emendas terão passado no Parlamento, não se sabe se este, antes da aprovação já estaria dissolvido, não se sabe como vai ser eleito o próximo Chefe do Estado, não se sabe se alguém sabe que não se sabe. Portugal é surrealista; mas não tanto.

Os outdoors continuavam a passar. ET MANGO diziam bastantes dentre eles. Nada a fazer; reincido na pergunta ao Olgun, licenciado em filologia hispânica. E ele, pacientemente, ET é carne, MANGO é churrasco, mas também pode ser churrasqueira. Aprender até morrer. Não posso esquecer-me de que por ali passaram sumérios, hititas, vândalos, gregos, romanos, e uns quantos mais, além de, evidentemente os já mencionados otomanos. E, naturalmente, o Senhor Kemal Mustafa Ataturk. Enfim, turcos, como as toalhas.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

PASSOS COELHO tem dois desafios de vulto pela frente. O primeiro é imediato e terá que o ultrapassar nos próximos dias.

O líder do PSD já percebeu, ou já o fizeram perceber, que a ideia de chumbar o Orçamento para 2011 é politicamente suicida. E já compreendeu que a sua margem de recuo é mínima e estreita, depois de ter falado de mais e vezes de mais sobre o tema, radicalizando imponderadamente a sua posição e o seu discurso.

Agora, terá que revelar todo o seu talento político para dar o dito por não dito. Para não se afundar num voto irresponsável e afundar, com ele, o país. Até porque a única maneira de obrigar José Sócrates a pagar o desastre a que conduziu a economia e as finanças nacionais é forçá-lo a ficar no Governo nos próximos meses, enfrentando os protestos da crise, o aumento do desemprego, o descalabro anunciado do défice de 2011.

O segundo desafio de Passos Coelho é de médio prazo e bem mais complicado. A receita de Sócrates para compor o défice, com os seus vários PEC, abateu-se, uma vez mais, sobre os funcionários públicos. Mas deixou quase incólume o gigantismo do aparelho de Estado com os seus incontáveis braços (empresas públicas e municipais, institutos, fundações, gabinetes e seus derivados), onde se alberga a sua clientela, em milhares de empregos improdutivos - que são a sua última e intocável base de apoio partidário e eleitoral.

Ao despesismo deste polvo gigantesco de serviços e repartições clientelares, com empregos e mordomias à discrição (direito a carros e motoristas, despesas de representação, refeições e viagens bem pagas), juntam-se os gastos milionários com pareceres de juristas e advogados amigos, com gabinetes de comunicação e empresas de promoção de eventos, etc., etc.

Pior ainda: à colossal dívida escondida das empresas do sector público (da Estradas de Portugal à Parpública, da RTP à CP) somam-se os encargos galopantes da política socrática de atirar as despesas para gerações e anos futuros: dos juros crescentes da dívida aos custos imparáveis das parcerias público-privadas ou da factura dos fundos de pensões. São milhares e milhares de milhões de euros que manterão o défice de 2011 - e de 2012 e de 2013... - em níveis insustentáveis.

Como irá Passos Coelho no papel de primeiro-ministro, provavelmente já em 2011, resistir a este monstro despesista? Sabendo-se, ainda por cima, que o clientelismo partidário no aparelho de Estado não é só uma doença congénita do PS, mas também do PSD?
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«Sol» de 15 Out 10

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Virar tudo do avesso

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Por Baptista-Bastos

O PARADIGMA DE SOCIEDADE sob o qual temos vivido está a esboroar-se. E parece não haver resposta imediata para esta nova desagregação histórica. Em termos políticos somos herdeiros de um enredo corrompido que nos fez viver entre a opressão e o medo, o ódio e a resignação. Quem nos tem dirigido não possui estofo de estadista nem a dignidade de confessar a sua impotência. As últimas décadas são cerzidas com remendos, mistificações, ideologias esgotadas, sem nenhum dos dirigentes ter, alguma vez, apostado, seriamente, na verdade e na liberdade. Sem o menor rebuço nem a mais escassa repulsa, os governantes do PS e do PSD restauraram, nos últimos trinta e tal anos em que se sentaram no poder, o reino da indecisão, da infelicidade e da renúncia.

Os três ex-presidentes que foram ao Prós e Contras (RTP1, dia 11 de Outubro, p.p.) sublinharam essas características, e apenas nos incitaram a resistir e a procurar entender o mundo que nos foi imposto. Nenhum deles falou em resignação. Mas, como não estavam ali para pregar a virtude, nem para evocar excitações antigas, repetiram que a natureza do que nos acontece exige que impeçamos o mundo, o nosso pequeno, assustado e aflito mundo, de se desfazer totalmente. Como? De uma forma ou de outra disseram-nos que a "classe política" é um desfalecimento de causa, e que temos de nos haver e ungir com o que há. O que há, porém, é muito mau. Paciência, é assim.

O paradigma económico, social, político e cultural em que vivemos soçobra a olhos vistos. E ninguém analisa, explica e debate a origem do mal. Os nossos intelectuais mergulharam na nostalgia demencial dos seus insuportáveis universos e das suas angústias insignificantes, desligados das obrigações difíceis que, moralmente, lhes são exigidas. O jornalismo não explica porque não sabe. É penoso ler o que preopinantes impreparados escrevem sobre o que nos rodeia e, afinal, nos limita e escraviza. Os sinais do tempo não se reflectem numa imprensa pejada de comentadores do óbvio, notoriamente inclinada para um só lado da história. As televisões atingem os níveis da desonra. Não são, exclusivamente, "telelixo", constituem, em boa consciência, humilhações que nos infligem.

Soares, Eanes e Sampaio desconhecem como dar a volta ao texto no qual fomos enredados. A padronização do mundo, inculcada pelo capitalismo vitorioso, favorece não só o "pensamento único" (de que tanto se falou, há anos, com presunção e ignorância) como a democracia de superfície e a abdicação de pensar. Evidentemente, há perigos ocultos e ameaças latentes. Eanes falou nas explosões sociais inorgânicas que podem pôr em causa a própria definição de sociedade, tal como a entendemos. Pergunta-se: e essa não será a solução, virar tudo do avesso?
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«DN» de 13 Out 10

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Nonsense

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Por João Paulo Guerra

PORTUGAL no seu dia-a-dia é um permanente tributo à memória de Raul Solnado. Nos anos 60, quando Solnado gravou a História da sua ida à Guerra, Portugal travava uma guerra absurda e incompetente, que municiava os batalhões da Índia com caixotes de chouriços e dispunha cozinheiros e escriturários, armados com obsoletas espingardas Mauser, para enfrentar um eventual desembarque da Real Marinha inglesa que bloqueava o porto da Beira. A expressão "isto parece a guerra do Solnado" passou mesmo a ser um dos mais frequentes desabafos das tropas mobilizadas.

Desde então, Portugal tem feito um assinalável esforço por adequar a sua realidade ao nonsense de Raul Solnado. E o nonsense cada vez faz mais sentido em Portugal. Ontem mesmo, a propósito da crise, o secretismo dos Serviços Secretos vinha posto a nu no jornal Público: dificuldades de tesouraria, problemas financeiros, dificuldades operacionais. Admite-se mesmo o cancelamento de operações, o fecho de «estações» e despedimento de «espiões». Portugal, que já se tinha notabilizado no ramo ao divulgar pelos 230 deputados do Parlamento mais os incontáveis membros dos gabinetes parlamentares a lista dos agentes secretos, põe agora em letra de forma, ou se preferirem em caracteres, as misérias dos Serviços Secretos.

Solnado já tinha visionado este panorama pelintra e amador. "Cheguei à guerra do inimigo, bati à porta, a sentinela espreitou pela frincha e perguntou: ‘Quem é?". E eu respondi: "Sou a Maria Albertina". Malandrice. "O que é que queres?". "Eu venho cá buscar os planos da pólvora". E ele perguntou. "Trabalhas d' espia há muito tempo?". "Trabalho desde as 11".

A história do Solnado está à beira da realidade, com "espiões" a recibo verde a espiarem o inimigo a prazo.
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«DE» de 12 Out 10

O dia em que a perspectiva nasceu

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Por Nuno Crato

NÃO SE SABE qual foi o dia. Nem se sabe o ano. Há quem diga que foi em 1415 e quem afirme que foi em 1413. O dia célebre terá tido lugar em torno dessas datas. Terá sido então que o arquitecto e artista Filippo Brunelleschi terá pela primeira vez espantado os seus contemporâneos mostrando-lhes um desenho rigorosamente elaborado com os princípios da perspectiva linear.

Tal como relatou Antonio Manetti, que 50 anos depois escreveu uma biografia de Brunelleschi, o artista florentino estudou matematicamente a maneira de elaborar o desenho. Quis criar uma imagem que, vista de um ponto, aparecesse ao nosso olho muito semelhante ao objecto desenhado. Com esses estudos, fez desenhos e pinturas que os seus contemporâneos achavam estranhos. Habituados a ver as pessoas mais importantes aparecerem maiores, mesmo que estivessem mais longe, e a ver paredes e as portas desenhadas como rectângulos, os florentinos a quem Brunelleschi mostrava as suas representações ficavam espantados por verem as paredes e as portas aparecerem como trapézios. As linhas que sabiam ser paralelas apareciam nos desenhos e pinturas como linhas oblíquas, que pareciam convergir.

De facto, as linhas convergiam. Convergiam para aquilo a que se veio a chamar «ponto de fuga», pois é assim que as imagens tridimensionais se formam nas nossas retinas. Só que as pessoas da época não o sabiam.

Um dia — o tal dia! — Brunelleschi pintou uma imagem do que era o edifício mais famoso da cidade: o Baptistério de Florença. Fez na superfície um furo, de forma que se pudesse espreitar pelas suas costas. Colocou-se no sítio certo, em frente ao edifício e pediu aos amigos que espreitassem pelo furo com um só olho, observando o Baptistério. Em seguida, colocou um espelho em frente ao buraco, de forma que as pessoas vissem reflectida a tela por que estavam a espreitar. As duas visões eram praticamente indistinguíveis. O edifício estava tão bem pintado, e com a perspectiva tão bem desenhada, que observá-lo reflectido daquela posição ou observar o edifício tridimensional era praticamente a mesma coisa. O artista deu-se ainda a requintes. Na imagem que tinha pintado espelhou o céu, de forma que os observadores viam as nuvens em movimento, o que aumentava a ilusão.

Gosto desta história, pois ela explica como a descoberta da perspectiva linear foi um ponto de viragem nas representações renascentistas. A narrativa é rica, pois situa historicamente esta viragem da arte e salienta que foram os conhecimentos matemáticos de Brunelleschi, um homem que tinha estudado numa «escola de ábaco», que permitiram essa revolução. Mostra ainda que aquilo que é para nós natural hoje, na era da fotografia e do cinema, era na altura surpreendente. Conheço o edifício em Florença, tal como muitos milhões de pessoas em todo o mundo, e imagino a cena.

É claro que a realidade é mais complexa, que a perspectiva linear foi descoberta pouco a pouco pelos pintores do Renascimento, nomeadamente por Giotto, e que tem já antecedentes na arte grega, conforme mostram algumas referências de Platão aos cenários de peças de Sófocles e de Ésquilo. Isso tudo é certo, mas não abala em nada o poder desta fascinante história.

Estive há dias a ler um texto que «desconstrói» esta narrativa e fala da «construção social» da «construção da perspectiva». Não aprendi nada com essa crítica da «mística simplificadora da narrativa», que afinal não põe em causa a sua veracidade. Mas aprendi muito com a história. Vou continuar a contá-la.
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«Passeio Aleatório»- «Expresso» de 9 Out 10 (adapt.)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Juros

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Por João Paulo Guerra

O FÓRUM NÃO GOVERNAMENTAL para a Inclusão Social considerou que 2010 está a ser o pior dos últimos 30 anos em Portugal em matéria de combate à pobreza.


É paradoxal porque o ano de 2010 foi proclamado pela Europa, da qual Portugal faz parte e à qual se submete, Ano de Combate à Pobreza e Exclusão Social. Dir-se-á que a crise caiu em cima do país de supetão, sem aviso prévio, não só impedindo o combate à pobreza e à exclusão mas impondo mesmo novas e mais duras medidas de austeridade. Mas quem o disse faltará á verdade. Porque a verdade é que Portugal anda de crise em crise e de austeridade em austeridade, moribundo pela doença ou às portas da morte pela cura, há duas ou três décadas e há cinco ou seis governos. E portanto nenhuma crise chega a Portugal de surpresa, como nenhuma promessa de tréguas na austeridade passa de pura e simples demagogia com fins eleitorais ou outros.

Quando no ano passado, no auge de um feérico calendário de três campanhas eleitorais, o Governo inaugurou «o início do fim da crise» sabia que a promessa valia tanto como aquela do governo e do partido que acenaram, nos anos 80, com salário para as donas de casa. Aliás, deitando a crise para trás das costas, o Governo interrompeu no ano passado um longo período de congelamentos salariais na administração pública, com aumentos que agora vão ser cobrados com juros usurários pelo Estado.

E é assim que no Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social o número de pobres vai disparar no País, ao mesmo tempo que os talibans neo-conservadores vão continuar a influenciar as políticas anti-sociais, na Europa e em Portugal, e a acusar os pobres de constituírem a causa da pobreza. Perguntava Almeida Garrett quantos pobres são necessários para fazer um rico? Cada vez mais.
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«DE» de 11 Out 10

sábado, 9 de outubro de 2010

À tesourada

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Por João Duque

FACE A UMA injustificada descontinuidade no fornecimento das águas com que a companhia das mesmas brindou José Maria de Eça de Queirós, exigiu este ao digno diretor da dita (e membro do Partido Legitimista) a justa e equitativa contrapartida contratual.

A um previsto incumprimento no pagamento, tinha a companhia o poder de cortar, por contrato, o fornecimento de água à cozinha e ao quarto de banho de Eça.

Como contrapartida, Eça exige: "Para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso, no análogo àquele em que V. Exa. me cortaria a canalização, de cortar alguma coisa a V. Exa. Oh! E hei-de cortar-lha!"

O senhor ministro Teixeira dos Santos incitou a oposição parlamentar a cortar alguma coisa em alternativa aos já previsíveis aumentos de impostos. Onde cortar 4500 milhões de euros ao défice orçamental de 2011?

Atemorizado, mudei de canal, protegendo a família de um previsível e repelente cenário de centenas de parlamentares, de tesoura em riste, a escortanhar em tudo e mais alguma coisa. E com tanto apêndice e penduricalho seco, inútil, mas consumidor, pelo país fora, imaginei tesouradas a torto e a direito a ferirem o mais íntimo da sensibilidade familiar, que olhos delicados não podem suportar.

Ai quereis cortes, pois aqui vão!

Do Orçamento do Estado dependem 13.740 instituições que compõem as administrações públicas. Só primos mais afastados, dependem do "grande irmão" 639 fundações, 343 empresas municipais, 1182 empresas públicas, 356 institutos públicos, 485 associações sem fins lucrativos, e ainda 166 outras instituições de classificação indefinida.

Deixo de fora as 5271 instituições que compõe a administração central, 5094 a local e 204 que completam a regional. Querem convencer-me de que todas aquelas instituições são essenciais à manutenção do Estado português e à realização do seu desígnio? E as PPP? E as SCUT, onde uns andam e não pagam e outros pagam e não andam?

Mas não houve ainda a coragem para se rever as pensões de reforma calculadas sob fórmulas erradas, com base em tabelas de mortalidade desadequadas, em taxas de atualização desconformes, generosas mas irresponsáveis, e que resultam na maior das injustiças sociais a que vamos assistir.

A geração que se vai reformar dentro de anos vai sofrer o que outros não são chamados a repartir.

Quem vir os seus salários agora amputados em 10% vai ver toda a carreira profissional futura amputada nesse valor, mas vai também ver afetada a sua pensão de reforma em continuidade!

Quando se reformar vai ser muito mais pobre do que os que se lhe anteciparam em circunstâncias semelhantes, apesar de terem descontado mais durante toda a carreira contributiva.

O Governo propôs agora significativos cortes e aumentos de impostos. Podia ser diferente? Sim, e não seria a mesma coisa!
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«Expresso» de 2 Out 10

Maldita a hora

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Por Antunes Ferreira

MAL ENTREI NO TÁXI, ainda ajustava o cinto de segurança pois me sentara ao lado do condutor, e lhe dizia o destino, saiu-lhe um «maldita vida» carregado de pontos de exclamação. «Essa agora, porquê? Queria uma ida ao Porto, ou, pelo menos, a Coimbra?» E estava a milímetros de o mandar encostar ao passeio, para sair do carro, quando ele explicou «nada disso, Senhor, estou só a lamentar a minha vida, estou farto disto, fartíssimo!...»

O homem afivelava um ar desgraçado, pior do que o tempo que fazia, mais carregado do que as nuvens quase negras que cobriam completamente o céu. Cautelosamente, avancei com um pseudo caridoso «a vida está má, tem toda a razão». A minha mulher, no banco traseiro, optara por um concordar de aceno de cabeça. E seguíamos pela Avenida da República, com as bátegas o trânsito estava, se possível, ainda mais caótico do que o habitual.

«Veja o Senhor: há dez anos que me meti nisto, amaldiçoada decisão, não aguento mais, chego ao fim do dia num feixe de nervos, ninguém me diga nada, a minha companheira que não abra a boca, senão é o cabo dos trabalhos!...» E gesticulava com a mão direita, a esquerda segurando o volante. Franzi o cenho. Deve ter notado, «não se preocupe, as mudanças são automáticas». Assenti, cheio de cagaço. Um homem é um homem, um gato é um bicho.

«Já tive uma vida boa, quatro lojas, três carrinhas de distribuição, empregados, motoristas, até um contabilista, um TOC como afirmava, que eu, a bem dizer nem sabia o que era, mas aceitava sendo quem ele era, homem sabedor de contas, de parcelas, de somas e diminuições, naquele tempo mais as primeiras, com os lucros, impostos e deduções. O sujeito tinha um primo, ainda que afastado, na repartição das massas, resolvia todos os problemas, fazia vista grossa, empochava uns trocos largos, naturalmente».

Timidamente, avancei: «e então, como veio para à praça?» Virou a cabeça, desta vez é que se enfaixa no carro da frente, «foi o divórcio, Senhor, e os sacanas das Finanças, a Senhora desculpe». E esta confusão, antes havia o “nada de confusões, ruas prós automóveis, passeios prós peões, agora é porra prá confusões, passeios prós automóveis e rua prós peões”. Se me consigo safar disto, vou a pé a Fátima e lá duas voltas de joelhos, juro!»

«Olhe este gabiru, colega de profissão - na tropa colegas eram as pu…, peço outra vez desculpa à Senhora, camaradas, eu até não digo palavrões, o Queiroz é que sim, os meus pais deram-me chá em pequeno – que fazem coisas destas, o gajo nem pôs o pisca-pisca, se calhar comprou a viatura sem eles, saiu-lhe mais barata!... Mas, eu já o lixo». Agarrei-me à pega, o Diabo podia tecê-las, o chofer apertava com o outro, passou-lhe um rente, «toma qué práprenderes, viu como eu o fo.., mais perdão minha Senhora, o tramei?»

Se soubesse e pudesse, começava logo uma novena ao Santo Padre Cruz, mas, chegávamos ao destino. Voltou-se para mim, a Raquel descera, abria o guarda-chuva, fiz as contas, arredondei bem os euros. «Muitíssimo obrigado, Senhor. E, ainda por cima, estes mentirosos aumentam o IVA, e diminuem os salários, as pensões, os subsídios e sei lá mais o quê. Até o cartão do Sindicato subiu. Agora que a sua Senhora já não ouve, são uns cabrões, é a puta da crise!...» No rádio do carro, certamente a pedido de ouvinte idoso, a Amália: « Maldita a hora…».

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Calçada tricolor na Av. dos Descobrimentos, em Lagos

100 anos e um dia

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Por Rui Tavares

PARECE QUE a Iª República cometeu o grande pecado de ser uma balbúrdia, — mas por oposição a quê? Pelos vistos, deve haver quem ache que o resto do mundo era, naquele primeiro quartel do século XX, uma espécie de pacífico jardim.

Não era; desde ocupantes de cargos eleitos a cabeças coroadas, do primeiro-ministro de Espanha ao arquiduque da Áustria, houve homicídios para todos os gostos naquela época. Não excederam, contudo, a morte massificada da gente comum; entre os anos de 1914-1918 — não tinha a nossa República quatro anos — houve simplesmente uma Guerra Mundial, neste continente e nas suas colónias. Quando essa Grande Guerra e a sua estúpida e inútil mortandade acabou, tinham acabado também vastos impérios: o dos Czares, varrido por duas revoluções e desmembrado; o Austro-Húngaro, despedaçado; e pouco tempo depois o Império Otomano. No culminar desse processo, fez-se o ensaio geral aos genocídios que seriam levados às maiores consequências nos meados do século XX europeu. A República Portuguesa lá aguentou, mas entre a Iª e a IIª Guerra Mundial nasceram o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, e regimes seus aparentados — como a ditadura nacional em Portugal — um pouco por toda a Europa. Desfez-se o sonho da Sociedade das Nações. Como eloquentemente diz a historiadora Zara Steiner, esta foi a época em que — por quase todo o mundo e sobretudo na Europa — “as luzes falharam”.

Perante isto, — ou melhor, esquecendo isto — há gente que faz da leitura da Iª República uma única lenga-lenga sobre como os líderes políticos portugueses da época eram defeituosos. Pois eram. Sem querer ser preciosista, esse é exatamente o sentido da República: sermos governados por gente imperfeita.

Precisamente porque não existe gente perfeita, nem gente que herde a predisposição para governar vitaliciamente um país, o princípio republicano é o de que nem o nascimento nem a classe social devem vedar alguém de eleger e ser temporariamente eleito.

Isto é uma coisa boa, e uma coisa simples. Às vezes há coisas assim. É pueril alegar que ser governado pelo filho do rei da Casa de Bragança tivesse sido melhor do que ter sido governado pelos Srs. Teófilo Braga ou Bernardino Machado, mas quer o sentimento anti-progressista que rasguemos as vestes por cada vez que este país deu um salto político. Pelo grande gozo que é “irritar a esquerda”, pratica-se o contorcionismo da mioleira. Mesmo assim, o liberalismo continua a ser melhor do que o absolutismo; e a república melhor do que a monarquia, a democracia melhor do que a ditadura. Melhores porque regimes mais livres e mais iguais, mais próximos do princípio de que a sociedade se pode — e deve — auto-governar.

Isto não faz destes regimes isentos de críticas; mas fá-los certamente dignos de comemoração, dignos de serem lembrados em conjunto. Mas, lá está; Pedro Passos Coelho faltou ontem ao lugar onde se proclamou a República; como a direita portuguesa em geral faz por ausentar-se do 25 de Abril. É uma atitude de ignorância voluntária que só poderia desculpar-se se ao menos fosse clara e assumida.

Mas enfim, não se pode exigir vontade a quem não a tem. A melhor comemoração da República é viver querendo governar-nos a nós mesmos. Uns dias melhor e outros pior, lá vamos insistindo.
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RuiTavares.Net