sábado, 28 de fevereiro de 2009

Policiais - Solução

1989 gramas

Violência

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Por Alice Vieira
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AINDA HOJE ME LEMBRO dos gritos dela. Vivia no andar acima do meu, mas mal a conhecia. Eu chegava tarde do jornal; ela chegava ainda muito mais tarde de um qualquer trabalho que eu não sabia qual era; eu saía muito cedo para apanhar o comboio para Lisboa, ela ainda ficava.
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Havia noites em que o choro e os gritos se ouviam na praceta inteira. Nós vínhamos à janela, olhávamos uns para os outros, e não sabíamos o que fazer.
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A polícia, sempre tão presente quando os clientes do bar ao fundo faziam mais barulho do que deviam, inexplicavelmente estava sempre distraída quando, daquele terceiro andar, rebentavam os gritos, as imprecações dele, e o barulho de vidros e louça que se partia.
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Numa das noites em que tudo foi (ainda mais) insuportável, no patamar da escada eu disse aos outros vizinhos, parados às suas portas, que ia telefonar para a polícia.
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Iam-me matando.
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Se eu não sabia que aquilo era zanga de marido e mulher.
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Se eu não sabia que não tinha nada que me meter pelo meio.
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Se eu não via os dois sempre juntos, e com ar muito feliz .
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Se ela quisesse denunciar, que denunciasse ela, isto é assim mesmo, nunca se sabe o que se passa dentro das casas dos outros.
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E rematavam sempre com aquela frase que justifica todo o nosso egoísmo:
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“ Cada um sabe de si.”
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Se calhar eu não lhes devia ter dado ouvidos e devia mesmo ter chamado a polícia.
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Nunca chamei.
Um dia o casal desapareceu, nunca soubemos para onde.
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Recordava eu esta história há dias entre amigos quando, para surpresa minha, um deles veio outra vez com essa ideia de “eles lá sabem, não nos devemos meter, não temos nada com isso”.
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Pelos vistos, nem todos os cartazes, nem toda a publicidade, nem todas as campanhas chegam para chamar a atenção sobre o dever de denunciar a violência doméstica — que aumenta assustadoramente, e se esconde, e se mascara, e tantas vezes se nega a si própria.
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Denunciar a violência que se exerce contra as mulheres - não!
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Até porque temos de poupar as nossas forças para denunciarmos — e aí sim, com toda a nossa energia! os que ao nosso lado contam anedotas contra o governo, ou os que lançam imagens no “Magalhães” em tempo de Carnaval, ou os que a medo rapam de um cigarrito envergonhado, ou os que põem à venda livros com capas que não agradam ao pacato chefe de família que vai a passar e que, se calhar, no remanso do seu lar, até vê sites que não devia …
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Nesses, sim. Nesses é malhar, vilanagem!


«JN» de 28 de Fevereiro de 2009 - NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

As linhas com que se cose

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Por Antunes Ferreira
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ESTIVE DOIS DIAS EM MADRID, mais precisamente segunda e terça, para, como habitualmente faço, dar umas aulas na Carlos III, a Nova da capital espanhola. Na terça, abri um diário, para ler a notícia que fazia a cabeça da primeira página : «Dimitió Bermejo». Ou seja, demitiu-se Bermejo. Até então era o Ministro da Justiça do Governo presidido por José Luís Zapatero.
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Transcrevo o texto da portada:«Mariano Bermejo, ministro de justicia, dimitió de su cargo ayer, tras recibir numerosas críticas por participar sin disponer de la licencia necesaria en una cacería organizada por Bartolomé Molina, secretario general del Partido Popular en Torres (Jaén), junto a otras 50 personas, entre las que se encontraba el juez de la audiencia nacional, Baltasar Garzón, [] en el momento en el que éste instruía un sumario contra el Partido Popular por supuesta corrupción».
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Sacudi a cabeça. Por um qualquer fenómeno de osmose espacial, estaria eu em Lisboa, a ler um jornal em Espanhol? Dúvida realmente preocupante. Que logo se desvaneceu. Não podia ser. Geográfica e casuisticamente. Em Portugal, ninguém se demite assim, recordo apenas o Jorge Coelho por mor da ponte de Entre-os-Rios, o Vitorino por força duma trapalhada imobiliária e… E ainda se diz que a culpa morre virgem.
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Mais tarde, já na Universidade, um bom Amigo, também professor, deu-me um texto da autoria de Daniel González, publicado no seu blogue El Bloc de Notas de Daniel González. Muito seguido por aqueles lados, informou-me, ainda, o docente. Nele confirmei a minha distorção mental de pouco antes. O comentador, evidente militante do PSOE, usa uma terminologia que muito dificilmente encontro em Portugal. Se é que encontro. Uns trechos, a esmo.
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«Me parece triste la decisión de dimitir de este ministro socialista a raíz de las fotografías en las que aparece en una cacería junto con el juez Baltasar Garzón. Es más, me parece injusto que un hombre que ha dado lo que ha dado por su país tenga que abandonar su puesto por una polémica generada por aquellos que querían tapar su propia mierda (…).
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El Partido Popular no supo encajar que el juez Garzón destapara una trama de corrupción que salpica a gran parte de la ejecutiva de Esperanza Aguirre e implica directamente a Francisco Camps, líder del PP valenciano y presidente de la Generalitat. La trama de Francisco Correa era un lastre para un momento culminante como son las elecciones en Galicia y País Vasco (...)
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Lo que han conseguido (Rajoy estará satisfecho) es que un hombre integro, que estuvo en el momento menos oportuno en el lugar menos adecuado, haya dejado su puesto. Motivo de celebración entre los que en sus filas alimentan la corrupción. Y momento de pena para los que creemos en la justicia.
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En esta dimisión no hay justicia. En el juego de la manipulación, en el juego de la mentira del PP no hay justicia. Ya no puede un ministro disfrutar de sus momentos de ocio, por miedo a encontrarse con alguien que no deba.
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Solo nos queda decirle adiós al señor Mariano Bermejo y desearle toda la suerte del mundo. Y desear que en este caso se haga justicia con estos corruptos del PP».
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Dispenso-me de traduzir, penso que se entende perfeitamente. E creio que tem mais sabor – em Castellano. Muito menos me permito tirar ilações. Comparações com situações que alegadamente se verificam cá por casa? Vade retro, Satanas. Contenho-me, portanto. Apenas me limito a aditar que cada um sabe das linhas com que se cose. Mais correctamente – com que é cozido. Isso mesmo, com z.

Mistérios de Lisboa - Solução

SEM COMENTÁRIOS

Os costumes rurais

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Por Maria Filomena Mónica
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O MUNDO MODERNO tem tendência para considerar o passado como um paraíso perdido. Os citadinos olham o campo, onde aliás raramente põem os pés, como se de uma Arcádia se tratasse: segundo eles, a vida rural é povoada por lindas pastoras, burrinhos fazendo toque-toque-toque e velhinhas a fiar na soleira da porta. Durante a minha infância, passei o tempo suficiente numa aldeia para saber que nada disto corresponde à realidade.
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Há dias, fui a Lamego. Ao almoço, falou-se de «abafadores», uma personagem que desconhecia. Foi-me explicado que se tratava de umas pessoas chamadas para colocarem uma almofada sobre a cara de um velho, quando este estava a incomodar a família com os seus gemidos, ou, na melhor hipótese, quando se encontrava em processo de sofrimento. O «abafador» procedia ao que hoje chamaríamos eutanásia. A morte de um inútil fazia parte da cultura aldeã.
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Mas não era apenas o fim dos velhos que era aceite. Depois do almoço, fomos até a uma adega, povoada por tonéis de carvalho, iguais aos que eu tantas vezes vira na quinta do meu avô, situada perto de Tomar. Lembrei-me das advertências do meu pai no sentido de ser perigoso entrar dentro do recipiente vazio – proeza que eu tentara em mais de uma ocasião – porque os vapores que ali existiam eram venenosos. Imaginei tratar-se de uma mentira destinada a fazer com que não manchasse o bibe de rendas que sempre usava. Chegara o momento de saber a verdade.
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Gentilmente, o dono da adega explicou-me ser o perigo real, acrescentando que, por vezes, no Douro, era assim que se faziam abortos. Não estando a ver como conseguiria uma grávida meter-se por a pequena frecha aberta na parte fronteira do tonel, quis saber pormenores: não, não era a mãe que por ali entrava, mas o recém-nascido. Do que estávamos, por conseguinte, a falar era de infanticídio. Como no caso dos «abafadores», os vizinhos fechavam os olhos. A vida rural era dura e duros eram, são, os seus costumes.
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Outubro de 2007
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

«Mistérios de Lisboa» - Solução

SEM COMENTÁRIOS

Auto do desempregado

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Por Baptista-Bastos
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E AGORA, QUE VOU FAZER? Ando vazio, a caminhar no interior de dias vazios. Há duas semanas. E ainda não reuni a força necessária para dizer à minha mulher que fui um dos 180 despedidos. Mas suspeito de que ela adivinha qualquer coisa. Não será, propriamente, a situação em si que lhe desperta a desconfiança; mas algo, um pressentimento obscuro, tenaz e desconfortável começa a invadi-la. Conheço-a muito bem. Passámos muitas coisas juntos. Era uma rapariga de grandes olhos luminosos num rosto alevantado que transpirava confiança e coragem. Quando estive gravemente doente manteve-se à minha beira, vigiando-me, tomando-me o pulso, observando a febre. "Nem te atrevas a deixar-me!", exclamou, certo fim de tarde, presumindo, pelo meu aspecto, que a doença se agravara. Fui agitado por estranho solavanco. Olhei-a e ela sorriu: "Eu sabia. Eu sabia que me não deixavas!" É um pouco grotesco, lembrar-me de estas coisas; mas são estas coisas humildes e modestas que formam a consistência das pessoas. Curioso!, há quanto tempo não lhe digo que a amo, há quanto tempo? Quantas vezes lho disse? Não dá muito jeito, reconheço; mas certamente lho disse, embora em português não soe bem; em inglês talvez sim. Talvez. Como fui parar a esta rua? Acontece-me agora isto. Ando por aí à toa, um impulso irresistível e secreto leva-me a caminhar pelas ruas da cidade onde outrora só raramente ia.
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Deixa-me ver as horas. Este relógio foi-me por ela oferecido, quando fiz 45 anos, há mês e meio. Nessa altura já havia rumores, no escritório, de que as coisas não caminhavam bem, gente a mais, encomendas a menos. Nada lhe disse. Apenas boatos; no entanto, começámos a olhar uns para os outros, aquele é mais velho, quantos anos tem ele de casa?, 30, ena, pá!, e de idade?, ena pá! Sou mais novo. Mas há mais novos do que eu. E se pintasse um pouco o cabelo? As brancas dão-me um aspecto mais pesado. Apesar de tudo, tenho fé. Mas manter a fé é difícil, tendo em conta o que por aí se vê. Tenho vergonha de vaguear pela cidade. Tenho vergonha de dizer em casa que fui despedido, "dispensado temporariamente", como me informou a menina da administração, examinando-me com a pesada compaixão de quem nada sabe sobre dor e sofrimento. Tenho vergonha de ser reconhecido por algum vizinho. Tenho vergonha de nada ter para fazer. Tenho vergonha de ainda não ter a coragem de revelar à minha mulher a situação em que me encontro. Tenho vergonha de admitir que não voltarei a arranjar trabalho. Tenho vergonha de ter de me inscrever no Desemprego. Tenho vergonha de ter desejado que fossem outros os nomeados para ir para a rua.
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Tenho vergonha de ser quem sou. Tenho vergonha de ser velho.

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«DN» de 25 de Fevereiro de 2009

NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Curtas-letragens - “Carrnaváu”

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Por Miguel Viqueira
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“OLHA SÓ dona Marrta...!” era o remoque favorito a propósito de tudo e de nada da “faxinêra” da dona Marta, “nega” carioca de grande pandeiro, que mais que andar se contornava ao deslocar-se, risonha mesmo quando não ria, de grandes dentes alvos e olhar fundo debaixo do lenço atado na nuca e que passava o dia nestas e noutras lamentações que mais pareciam já uma cantilena amável, um traço de identidade inconfundível.
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Um dia chegou acabrunhada, olha só dona Marrta, e não parou de se lamentar, a fazer tudo ainda em marcha mais lenta, até que para o fim do dia a dona Marta lhe arrancou o olha só. O pai estava doente, muito doente. E logo agora, vésperas do “carrnaváu”...! Conselhos, recomendações, promessas de que tudo se comporia, você vai ver, conseguiram arrebitar a “faxinêra” que voltou para a favela um pouco menos olha só dona Marrta.
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Na manhã seguinte apareceu de rastos: olha só dona Marrta...! Papai piorou! E o carrnaváu aí chegando, minha nossa...! A coisa parecia séria, o velho estaria mesmo nas últimas, e a olha só desesperava por causa de ter de ir bailar o carnaval com o pai moribundo, olha mesmo só!
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O carnaval chegou enfim, a olha só desapareceu como fizera sempre com ou sem papai doente, e a dona Marta bazou do Rio, que é o que fazem nessas alturas críticas as pessoas de bom gosto. Passada a festa, todo o mundo de volta ao Rio, a faxineira reapareceu enfim, chorosa, completamente destroçada. A ressaca, talvez? Olha só dona Marrta... Papai morreu mêmo. Logo logo no mêmo dia que saí daqui, olha só...! Então mas... e o carnaval? Oh o carrnaváu fô o maó barato, dona Marrta olha só...!
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Contou à estupefacta dona Marta que quando chegara à favela dera com grande carpidação familiar: o velho morrera essa mesma tarde, ao que parece desconsolado por não poder já ir viver o carnaval iminente. Deixaram-no na cama onde falecera, amortalhado e bem tapadinho, fecharam a porta do quarto, trancaram bem a casota da favela e lá se foram todos bailar o carnaval. Três dias e muito samba depois reabriram o quarto, alertaram as autoridades, chamaram de urgência o padre, e procederam ao velório e ao enterro cristão, como era de rigor. E ali estava ela, compungida e chorosa na aflição do luto, olha só dona Marrta...!
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [v.
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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O Caso Mesquita Machado

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Por J.L. Saldanha Sanches
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UMA LONGA INVESTIGAÇÃO (oito anos) aos inexplicáveis sinais exteriores de riqueza do presidente vitalício da Câmara Municipal de Braga e aos seus familiares e amigos teve o resultado habitual: arquivamento por falta de provas.
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Sem cadáver nem flagrante delito estes processos estão para lá das forças da nossa justiça: mas vamos admitir que não havia mesmo provas e o arquivamento foi a única solução possível. E as questões fiscais?
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O processo penal no Estado de Direito põe o dever de prova a cargo do Estado. O processo fiscal não.
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No processo fiscal, o sujeito passivo deverá convencer a Administração e o juiz (se o processo for para tribunal) que as suas casas ou os seus carros cabem dentro dos rendimentos declarados. A discussão sobre a inversão do ónus da prova no caso do enriquecimento de políticos é ociosa. Por meios fiscais pode obter-se quase o mesmo efeito.
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Se no processo se prova que um empresário conhecido pelos seus actos de benemerência chamado Domingos Névoa ofereceu 10.000 euros à filha do Sr. Mesquita Machado no casamento desta (lembrando-nos uma célebre cena de um filme de Coppola) pode não se provar que haja aqui qualquer crime ou motivação condenável.
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O Sr. Mesquita Machado é um corifeu da democracia socialista e o Sr. Domingos Névoa provavelmente partilha estes nobres ideais. É um sentimento que só o enobrece.
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Mas a nobreza de sentimentos não influencia as empedernidas qualificações fiscais. O fisco tem pêlos no coração. Não será esta desinteressada dádiva uma doação? Terá sido tributada em imposto do selo?
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O Sr. Mesquita Machado pode ter admiráveis qualidades de poupança que expliquem o património que tem acumulado. Mas terá esta poupança passado pelas declarações de IRS?
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Será possível que em Braga haja inúmeras penhoras de contas bancárias dos empresários que não entregaram o IRS e se comunique ao Ministério Público os abusos de confiança fiscal dos falidos que ficaram a dever o IVA e nada se faça em relação a estes casos? Que o Ministério Público investigue durante oito anos sem a colaboração da Inspecção Geral de Finanças ou da DGI?
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Quando um praça da GNR com um enorme património é levado a tribunal por extorsão a automobilistas, a pergunta que deve ser feita é saber por que motivo não detectou a DGI a distância entre património e rendimento num alvo tão fácil como um praça da GNR. Porquê? Como pode a Administração deixar escapar situações como estas?
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Já passou o tempo em que Administração era um corpo corroído pela corrupção, um corpo impotente e inerme. Hoje funciona, e se pode ser acusada de alguma coisa (em relação aos que cumprem) é de excessos.
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E em relação aos marginais sem declaração ou com declarações ridiculamente falseadas? Aos políticos que acumulam fortunas em ninguém perceber como?
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Seria bem mais importante reagir a tais situações (se isso não for incompatível com a política deste Governo) do que redistribuir, por meio de um novo regime de deduções no IRS, uns magros tostões entre as várias camadas de contribuintes.
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Adenda: a Defesa e os serviços secretos portugueses estão sempre no limiar da farsa: aquela história dos livres-trânsitos para os espiões (para irem ao futebol? Para andarem de comboio?) demonstra que ao lado dos generais de opereta temos os espiões de livre-trânsito.
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«Expresso» de 21 de Fevereiro de 2009 http://www.saldanhasanches.pt/
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domingo, 22 de fevereiro de 2009

O Fiel Jardineiro - O livro


SUPOSTOS INDÍCIOS DE UM ALEGADO CARNAVAL

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Por Nuno Brederode Santos
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JÁ OS MEUS AMIGOS DEBANDAM, na pequenina diáspora que os assalta aos primeiros rumores de Carnaval. Por mim, menos dado a tais folguedos, nunca é seguro: espero sempre até ver se a frondosa senhora morena da madeixa loura reaparece no disfarce fantasista do costume: uma Jane Fonda a cujos braços, peito e ancas sobra Barbarella por todos os lados (sendo que a espada curta e o escudo de plástico prateado não são mais do que crédito malparado da princesa Zena ou adereço de uma qualquer amazona insurgente). A seu lado, cumpridor e tristonho, virá o marido, vergado, não só à calvície prematura dos 40, mas sobretudo às enormes responsabilidades sociais que visivelmente se atribui. Esse, porque o orçamento é de crise ou porque a imaginação só lhe proporciona o voo da galinha, trará um chapéu preto de larguíssima aba (coisa de cineasta inconformado, mas que os lojistas chineses que o vendem sempre imputam ao Indiana Jones). Esta gente é que é fiável: só descem ao meu horizonte se e quando for Carnaval. Nem compro serpentinas antes de os ver. Andamos todos, neste vale de lágrimas e sorrisos, a toque de caixa: acorremos ao osso que nos é lançado e alçamos as patas da frente para o devolver a quem o lança. Muitas vezes, quem mais ladra é quem mais corre e quem mais alça. A minha atitude não me vexa: faço como os outros. Entretanto, formalista e respeitoso, só no domingo à tarde saberei, de ciência rija, se na terça-feira é Carnaval.
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Mais forte é a convicção do Ministério Público em Torres Vedras. Aí, uma mãe de Bragança descaída no mapa lobrigou pecado gordo nas fotos de umas senhoras carenciadas, pelo menos daquele mínimo de roupa que assegura uma razoável dose de Islão na Cristandade. Cidadã vigil, queixou-se ao Ministério Público local, reclamando que fôssemos todos poupados à irredimível afronta da "pornografia" (numa extensão conceptual que nos torna todos culpados na banheira). Tiro e queda: proibindo a infâmia no escassíssimo tempo disponível, o pescoço da nossa virtude foi subtraído à guilhotina da nossa luxúria. Realista e folião, o autarca responsável disse aos media da sua surpresa, alimentou o folhetim e, muito institucionalmente, barafustou por requerimento. De um dia para o outro, um (ou uma?) jornalista tentou em vão contactar a ministra da Educação e eu próprio não consegui um comentário, nem do sócio mais antigo da Academia Almadense, nem sequer do dr. Vale e Azevedo. Só que a opinião pública fora já mordida pela cascavel da crítica mordaz. Pelo que o pronto recuo da autoridade - que o autarca, com cifrões no lugar das meninas (e falo das dos olhos) - se desnudou no que era: o baixar da ponte levadiça ao sitiante. Mas o procurador-geral, que foi à Madeira asseverar, para nossa tranquilidade, não haver lá mais corrupção do que no resto do País, explicou que o caso, afinal, era o MP estar em campanha eleitoral - coisa mística em que é melhor não interferir (mesmo quando ela interfere connosco). Mesmo sem a Barbarella, o episódio sugere que é Carnaval.
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Mas já antes disso alguém tinha querido arear as pratas ao brio do pachola português. Ao que parece com origem na Lusa, foi-nos servido o pedido de ajuda a Portugal que Barack Obama terá endereçado a Cavaco Silva (no dia seguinte, foi-nos revelada idêntica diligência junto de José Sócrates). Por vazia que a barriga possa estar, o nosso ego insuflado tomou-lhe os espaços. O episódio demonstra que uma boa educação compensa. A resposta, feita em linha de montagem, do Presidente americano aos telegramas de felicitações das autoridades políticas do mundo inteiro, sendo uma formalidade cortês para todos os outros, era afinal a admissão de que, sem nós, a América soçobraria no mercado do escândalo, do vício e da desregulação dos costumes. E de que os herdeiros políticos do xerife Fontoura levariam Newark a salvar os Estados Unidos. Perante a boa recepção que o facto teve entre nós, o Congresso suspirou de alívio e a Casa Branca abriu Mateus Rosé. Assim é que está bem, porque temos de ser uns para os outros. Mais um indício de que o Carnaval está aí. Mas a vida fez-me céptico e eu continuo a esperar pela Barbarella.
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Se na terça-feira for, de facto, Carnaval, então eu alinho: durmo a sesta de fato e gravata.

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«DN» de 22 de Fevereiro de 2009.

NOTA: Este 'post' é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

sábado, 21 de fevereiro de 2009


Clicar na imagem, para a ampliar... e apreciar - em especial o ponto 3.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O Enterro do PSD

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Por Maria Filomena Mónica
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QUEM PENSE QUE O DR. LUÍS FILIPE MENEZES se referia ao Dr. Balsemão, ao Dr. Pacheco Pereira ou ao Dr. Marcelo Rebelo de Sousa, quando, a 18 de Fevereiro de 1995, designou os «sulistas, elitistas e liberais» como os seus principais inimigos, engana-se. A fálica flecha era-me dirigida: aquelas características – que eu tomo como virtudes e ele como defeitos – aplicam-se-me que nem uma luva. Não sou do PSD, mas no estado em que os cadernos eleitorais se encontram – e provavelmente sempre se encontraram – ele não tinha forma de o saber.
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Como quem não se sente não é filho de boa gente, passei a seguir a sua carreira com atenção. Na Sexta-Feira de madrugada, quando soube os resultados da guerra interna do PSD – ou antes os pseudo-resultados uma vez que ninguém sabe quem foi metido ou riscado das listas – a sua vitória não me espantou. Como o nome indica, nada é mais popular do que o populismo. Felizmente que não penso que o homenzinho de Gaia chegue ao poder: o que conseguiu foi enterrar o PSD.
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Lembrei-me então de um empreendimento por ele prometido antes de férias: um novo cemitério. Após ter constatado que os vinte e quatro cemitérios existentes em Gaia estavam a abarrotar, pôs a concurso público a concepção e gestão de outro, o qual albergaria quarenta e uma mil sepulturas, contando com dois fornos crematórios, uma igreja aberta a todos os credos e um parque de estacionamento, num investimento ascendendo a 20 milhões de euros. Logo houve quem – as agências funerárias – questionasse a decisão, com base no favoritismo da autarquia por uma multinacional. Imaginei que a privatização da morte provocasse uma fúria, mas, pelos vistos, os ecos da revolução da «Maria da Fonte» esfumaram-se. Verificou-se, é certo, alguma agitação, mas esta foi provocada pela hipótese de serem os espanhóis a lucrar com o negócio. Por fim, sabemos tudo: é em Gaia que o líder do novo partido, evidentemente nortenho, anti-liberal e anti-elitista, pensa enterrar o PSD: requiescat in pace.
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Outubro de 2007

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Migrações e Relações Internacionais

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Por António Barreto
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O TEMA SUGERE IMEDIATAMENTE uma pergunta: quais são os nexos, as causas, os efeitos e as implicações existentes entre as migrações e as relações internacionais? A minha resposta simples é a seguinte: podem ser de toda a espécie, de intensas a inexistentes. As migrações podem, ou não, influenciar as relações internacionais. Estas podem, ou não, ter consequências nas migrações. Uma observação da história revela a existência de várias relações, de causa e efeito, num ou noutro sentido. Relações internacionais, entre dois ou mais países, dentro de uma ou mais regiões, podem conduzir a migrações casuais ou permanentes, como podem não ter especial influência nesses movimentos de população. Países ou grupo de países com relações intensas, nomeadamente económicas, ou até políticas, podem ser também o ponto de partida ou de chegada de fluxos migratórios volumosos, como podem desconhecer esse movimento de população. Inversamente, migrações humanas entre vários países e diversas regiões podem forjar um certo tipo de relações internacionais, de cooperação, como podem estar na origem de outros tipos de relações internacionais, de conflito. Como também podem ter reduzida influência no modo como se constroem e praticam as relações entre Estados. Em poucas palavras, posso concluir que não existe regra ou lei que estabeleça efeitos ou características permanentes e necessárias entre as migrações e as relações internacionais. Esta, a resposta simples. Como veremos mais adiante, a resposta pode ser bem mais complexa.
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Todavia, antes de avançar, convém, em poucas palavras, definir os termos em causa, ou pelo menos definir o entendimento que deles tenho, para os efeitos desta exposição. Por relações internacionais entendo o modo como se organizam as relações entre Estados, ou entre grupos de Estados, sejam elas próximas ou distantes, de cooperação ou conflito. Por migração, quero referir-me a todos os movimentos de população entre dois ou mais países, com carácter de longa duração, permanente ou definitivo, independentemente dos motivos ou das circunstâncias que lhes estão na origem. Excluo as viagens de negócios, o turismo, o recreio e as estadias de curta duração com objectivos limitados e específicos, como o do estudo. São definições simples, mas úteis para o propósito. Tenhamos, no entanto, consciência de que estas “viagens”, que não incluo na definição de “migrações”, representam hoje a quantidade colossal de cerca de 500 milhões de pessoas que anualmente se deslocam de um país para outro. Vista do espaço, a Terra é um planeta habitado por uma população em permanente movimento!
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Vale a pena acrescentar algo à definição do termo de migração. Nos tempos modernos, falar de migrações significa quase sempre falar de migrações económicas. Isto é, fluxos de pessoas que abandonam um país para, de modo durável ou definitivo, se instalarem noutro país, a fim de aí trabalharem, residirem e viverem. Estas são, sem dúvida, as migrações mais conhecidas e as que atingem volumes mais relevantes. Constituem aliás um movimento de população que se transformou em traço estrutural da maior parte dos países. As últimas décadas criaram uma situação nova: a da possibilidade de emigrar de quase todos os países para uma grande variedade de outros. É certo que já houve grandes migrações no passado. Sem ir até aos tempos bíblicos, nem aos da colonização ou da escravatura, basta referir o século XIX, durante o qual milhões de europeus se deslocaram para os chamados novos continentes. Mas, enquanto na maior parte do século XX, muitos países se “fecharam”, no tempo actual, com a globalização, com os novos arranjos internacionais (como a União Europeia, por exemplo), com o turismo e com novas políticas de controlo de fronteiras, começámos a viver um ciclo de relativa abertura.
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A maior parte dos países do mundo não é estranha às migrações. Ou porque recebem trabalhadores estrangeiros, ou porque deles saem pessoas para trabalhar noutros horizontes. A maioria dos países vive com a migração como um facto natural e permanente. Não era assim há cinquenta anos. Ou, pelo menos, há cinquenta anos, o fenómeno tinha pouco significado. Isto, com excepção de alguns países ou Estados modernos, como os Estados Unidos da América, o Canadá, a Austrália, a Venezuela e o Brasil que se fizeram, desde os séculos XVIII e XIX, a partir dos migrantes que receberam (o que não exclui o facto de todos esses países terem antes populações autóctones). Para esses chamados novos países, ou novos mundos, a imigração é um factor genético da sua constituição.
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Mas as migrações económicas, tal como as conhecemos hoje, não incluem toda a realidade das migrações. Outros fenómenos estiveram na origem de grandes movimentos de população. A chamada descoberta, a colonização, a conquista, a reconquista, a deportação e a fuga traduzem-se em situações ou estão na origem de factos que podem ser equiparados às migrações. Repare-se, por exemplo, como os grandes impérios, tanto os ultramarinos como os continentais, se fizeram sempre graças também a movimentos de populações. O império romano, o otomano, o português, o germânico, o britânico e o russo organizaram-se a partir de grandes migrações ou exigiram grandes migrações para se estabelecerem. Conforme os casos, as migrações ficaram ligadas a guerras ou conquistas políticas, a administração pacífica ou a deslocações violentas de pessoas, a decisões voluntárias ou a movimentos compulsivos.
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Neste momento da minha exposição, sinto quase a necessidade de fazer uma espécie de declaração de interesses: tenho simpatia pelas migrações. Independentemente das suas circunstâncias (que podem ser dramáticas), das suas consequências (que podem ser trágicas), dos problemas que provocam (que são numerosos e complexos), considero que as migrações dão um valioso contributo para o desenvolvimento da humanidade e dos povos. Sei que das migrações podem resultar violência e preconceito, mas creio que são um insubstituível factor de aproximação dos povos. Sei que as migrações podem resultar de guerras e opressões, de genocídios e fomes, mas tenho a certeza de que já salvaram as vidas de milhões de pessoas. Sei que as migrações modernas resultam, as mais das vezes, de situações de carência e privação, mas também são o modo como as pessoas lutam contra esses mesmos fenómenos.
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Esta minha preferência não é apenas uma crença. Nem só uma opinião de carácter político ou moral. Sabe-se, cada vez mais e melhor, que as migrações trazem consigo crescimento económico e desenvolvimento; ajudam à renovação demográfica e à mistura de populações; e promovem a aproximação de culturas e a convivência entre diferentes. Na verdade, as migrações não são apenas pessoas em movimento. Com elas, viajam as ideias, os produtos, as culturas e as crenças.
As mais actualizadas investigações arqueológicas, históricas, antropológicas e linguísticas vão revelando que o movimento e a mistura de populações, por vias pacíficas ou não, estão na origem de enormes progressos da humanidade. A agricultura, a indústria e o comércio desenvolveram-se mais e mais rapidamente naquelas áreas onde era fácil ou foi tornada fácil a movimentação de pessoas e a divulgação de técnicas. E não foram apenas os progressos económicos e materiais: também as culturas, a escrita, as ciências, a organização das sociedades, a administração pública, a saúde e a educação desenvolveram-se mais e melhor nos continentes propícios ao movimento e às migrações. São também cada vez em maior número os estudos de economistas e historiadores económicos que tendem a sublinhar, para o tempo contemporâneo, as grandes vantagens puramente económicas que resultam da imigração de trabalhadores estrangeiros.
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Como em tudo na vida, não há só a face brilhante das migrações. Há também o lado negro, o do sofrimento. Quando as migrações estão ligadas a actos de guerra, de opressão ou de conquista, acabam por acrescentar drama e tragédia ao que já era dor e conflito. Ou quando as migrações, por via das questões políticas, religiosas e sociais, acabam por desencadear perturbações maiores nas sociedades, também aí assistimos a esse reverso da medalha. Será necessário recordar exemplos? Só entre os mais recentes, pensemos na Palestina, no Uganda, na Libéria, no Sudão, nos restos da União Soviética, na Somália, no Zaire, em Angola... Mas não se pense que estas situações mais dramáticas pertencem a outros continentes. A Europa está directamente envolvida nelas. Ou porque também conheceu há bem pouco tempo movimentos desesperados de pessoas à procura de abrigo, paz e trabalho, como quando assistimos ao desmoronamento da federação jugoslava e vimos milhares de pessoas, em barcos irreais, à procura de bom porto. Ou porque uma parte importante dos que fogem, como os africanos da costa ocidental, dirigem-se para o Mediterrâneo e para os países europeus, onde aliás nem sempre chegam e donde, tantas vezes, são recambiados.
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É a altura de falar um pouco de nós. Portugal tem uma velha história de migração. Deixo de lado os tempos idos das migrações que fizeram o povo e a nação, ou das que levaram os portugueses aos outros continentes. Bastam-nos os séculos XIX e XX. Só o último século seria suficiente para demonstrar que Portugal conheceu quase todas as experiências possíveis de migração económica e social. Conhecemos bem a emigração para as colónias africanas e latino-americana e para a ex-colónia brasileira. Também vivemos a emigração para os chamados países novos de povoamento ou estabelecimento europeu, como os Estados Unidos, o Canadá, a Venezuela e a África do Sul. Foram estes os padrões migratórios até aos anos sessenta do século XX. Eram, em certo sentido, um factor estrutural da demografia portuguesa. A emigração era o recurso natural de muitas populações a fim resolver os seus problemas de carência económica. Desempenhou o papel de válvula de segurança, de fonte de rendimento para muitas famílias e de equilíbrio relativo nas contas externas. A emigração desses tempos ficou inscrita na história do país, na literatura e nas representações populares. A emigração dessa altura deixou, pelas segundas e terceiras gerações, uma diáspora portuguesa espalhada por vários continentes e que se avalia hoje a vários milhões de descendentes.
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A partir dos anos sessenta, uma mudança radical fez com que os fluxos migratórios quase abandonassem o Brasil e se virassem, maioritariamente, para a Europa. Esta precisava de trabalhadores, Portugal tinha-os em quantidade, sofrendo, ao mesmo tempo, de uma situação de atraso económico e de incipiente industrialização. O período que vai de 1960 a 1975 é o período de maior emigração da história portuguesa. Talvez um milhão e meio de trabalhadores foram viver alhures, nomeadamente em França. As consequências, para Portugal, foram notáveis. Atingiu-se o pleno emprego. Aumentaram os salários dos que aqui ficaram. As mulheres passaram a integrar a população activa com emprego. As famílias rurais ganharam mais uma fonte de rendimento. Muitos puderam finalmente construir a sua casa e aceder a um módico de conforto. As contas públicas alcançaram um equilíbrio de pagamentos bastante para compensar os défices comerciais. A população, directa ou indirectamente, conheceu outros mundos e preparou-se para uma abertura mental e material sem precedentes.
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Ao mesmo tempo, talvez pela primeira vez, a população decresceu em termos absolutos ao longo de vários anos, sem que tal se deva a guerras ou epidemias. Por si só, a emigração bastaria para mudar grande parte da sociedade portuguesa. Continuaram portugueses a partir para a América do Norte (sobretudo madeirenses e açorianos) e para África. Mas a segunda metade do século XX é sem dúvida o tempo da emigração europeia. O que traduz também a reorganização da economia e da política, tanto nacionais como internacionais. Esta emigração acompanhou as novas tendências das relações internacionais. Em certo sentido, precedeu essas novas tendências. Muito antes da integração europeia, da adesão formal de Portugal à Comunidade Europeia, já a população tinha procedido a essa integração. A integração europeia de Portugal começou por ser humana e social, só depois foi política e económica.
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Depois desse ciclo, Portugal regista novo facto inédito: o regresso, para uns, a chegada, para outros, de 500.000 a 600.000 portugueses de África. Foi acontecimento único na história recente da Europa. Em menos de dois anos, a população aumentou 6 a 7 por cento. O que poderia ter sido fonte de perturbações, de problemas e de conflitos muito sérios, acabou por se processar de modo geralmente pacífico (o que não quer dizer sem esforço, sem drama e sem dificuldades) e se transformar numa colossal renovação da população. Também neste caso, as relações internacionais marcaram e influenciaram as migrações.
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Logo a seguir, novos episódios inéditos na história do país: a chegada de emigrantes estrangeiros em grandes quantidades. A ponto de a demografia portuguesa ter mudado, agora com qualquer coisa como 6 ou 7 por cento de estrangeiros residentes. Primeiro, habitantes das mais recentes ex-colónias africanas, com relevo para Cabo Verde, Guiné e, menos, Angola. Depois, novidade também, a chegada de brasileiros, que aliás constituem hoje a principal comunidade de estrangeiros a residir em Portugal. A seguir, um surto de novos imigrantes dos países europeus, nomeadamente espanhóis, mas também ingleses e franceses. As actividades económicas, as ligações empresariais e a migração de terceira idade são responsáveis por esta situação. Em todos estes casos, estamos perante fluxos migratórios estreitamente relacionados com a história e a tradição, ou com a nova configuração internacional de Portugal, como país pertencendo à União Europeia.
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Finalmente, de modo inesperado, em menos de uma década, mais de uma centena de milhares de oriundos da Europa de Leste, especialmente ucranianos, mas também moldavos, romenos e russos. Nunca, no princípio dos anos noventa, os melhores analistas, sociólogos, geógrafos ou demógrafos tinham sequer sonhado com essa eventualidade. De países longínquos e, para nós, estranhos, com os quais Portugal nunca tinha tido qualquer relação densa ou intensa, chegavam dezenas de milhares de trabalhadores que rapidamente se espalharam por todo o país. A contrariar os fenómenos anteriores, eis um caso de migrações que parecem, à primeira vista, independentes das relações internacionais. Evidentemente, se olharmos bem e quisermos mostrar como “isto anda tudo ligado”, será possível encontrar na pertença de Portugal à União Europeia e ao Espaço Schengen, assim como num comportamento deliberado da Alemanha, nossa parceira na União, as razões que explicam o caminho tomado pelos ucranianos, russos e moldavos. Mas isso já será um esforço intelectual excessivo. Esta chegada de migrantes a Portugal não tem, efectiva e imediatamente, relação com a história ou com a actividade internacional de Portugal. Poderá, eventualmente, assistir-se ao inverso: relações entre dois Estados que se estabelecem e desenvolvem com base em movimentos populacionais prévios. De qualquer maneira, não esqueçamos que estamos, no caso dos ucranianos, perante a segunda maior comunidade de estrangeiros, depois da brasileira e antes da cabo-verdiana. Pouco sabemos ainda sobre os seus projectos de vida. Querem ficar definitivamente entre nós? Fazem casa e educam os seus filhos em Portugal? Procuram, um dia, a naturalização? Ou, pelo contrário, consideram este apenas como um episódio de vida, uma migração temporária, e alimentam o plano de poupar para regressar mais tarde ao seu país, tal como, a propósito, tantos portugueses fizeram em França? É o que saberemos melhor dentro de uma ou duas décadas.
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Neste capítulo de imigração de estrangeiros, há ainda a mencionar, última em data e sem relações com a presença de Portugal em Macau, a chegada de alguns milhares de chineses. Numa década, sobretudo através do comércio, começou a criar-se uma já significativa comunidade chinesa, outro facto inédito na nossa sociedade.
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Mas esta rica história, na qual Portugal experimentou quase todos os tipos de migrações, não acaba aqui. Depois de, em meados da década de noventa, Portugal se ter transformado num país de imigração predominante, isto é, que recebia mais estrangeiros do que portugueses partiam, eis que, no início do século XXI, a emigração de portugueses para o estrangeiro, que nunca cessou completamente, parece retomar. Nos últimos anos, o número de emigrantes portugueses atingiu novamente valores elevados, com médias na ordem dos 30.000 por ano, sendo no entanto verdade que talvez haja mais emigrantes temporários ou sazonais do que permanentes. O destino, além da tradicional América do Norte, é ainda preferencialmente europeu, mas surgiram já novas alterações. Parece não ser a França o primeiro destino, nem a Alemanha, mas sim a Espanha, a Inglaterra e a Suíça. Os casos mais curiosos podem ser o da Espanha, outro facto novo na história, e o da Inglaterra, cuja comunidade portuguesa cresceu a um ritmo muito acelerado para atingir valores estimados próximos dos 400.000. Esta nova emigração, ou esta nova vaga de uma velha emigração para a Europa, não surge por causa da pertença de Portugal à União. Nem neste caso, nem no da Espanha ou da Suíça, tal como também não fora o da França dos anos sessenta. As razões fundamentais são, como no passado, as dificuldades económicas portuguesas, a procura de mão-de-obra naqueles países e a notável diferença de salários e oportunidades. É certo que a pertença à União ajuda (o que não é o caso da Suíça). Mas não foi esse facto que desencadeou o movimento migratório. Apenas o permitiu, dado que as leis e as directivas europeias facilitam a deslocação e o estabelecimento.
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E gostaria ainda de referir que, nestas novas migrações, um outro caso merece atenção: o da migração pendular, diária ou semanal, de trabalhadores portugueses para Espanha. São já milhares os que, das regiões fronteiriças, se dirigem regularmente para o seu emprego na Galiza ou na Estremadura. É incerto o futuro deste movimento de trabalhadores. Mas, tendo em conta a dinâmica económica dos dois países, é de prever que aumente e se desenvolva.
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Este é o resumo breve da história das migrações em Portugal. Teve efeitos felizes, como o da melhoria dos rendimentos e do bem-estar. Momentos infelizes, como o da separação das famílias. E teve episódios dolorosos, como o da viagem “a salto” ou o dos bairros da lata da região parisiense. Teve também situações insuportáveis, como as do trabalho clandestino e da multiplicação de ilegais em Portugal. Mas o balanço geral é o de um formidável contributo para a mudança social e para um relativo progresso. Em pouco mais de quarenta anos, cerca de dois milhões de portugueses saíram para o estrangeiro, quase um milhão e meio de pessoas vieram viver para cá. Temos de convir que foi muito. Em pouco tempo. Mais uma vez, esses fenómenos bastavam, por si próprios, para ter mudado a sociedade.
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Ao contrário do que se passava até aos anos sessenta, hoje, em Portugal, nas ruas das cidades e vilas, até nos campos, ouvem-se falar todas as línguas. Ucranianos pisam uvas nos lagares, russos arrancam cortiça no montado, cabo-verdianos trabalham na construção civil, moldavos servem em restaurantes, brasileiros atendem nos comércios e espanhóis tratam nos hospitais. Vêem-se pessoas com todas as cores de pele e vestidas de todos os feitos. Reza-se a todos os deuses. Comem-se e bebem-se todos os produtos de todo o mundo. Vêem-se filmes ou televisão e lêem-se jornais nas mais inesperadas línguas. Se acrescentarmos a isso as liberdades políticas e culturais, podemos concluir que a sociedade portuguesa é hoje aberta e plural. Para o que as migrações, tanto as partidas como as chegadas, foram determinantes. São causa e consequência do pluralismo. São causa e consequência da liberdade. É esta história que permite hoje esperar que os portugueses não tenham a memória curta e que defendam e pratiquem, para os estrangeiros que vivem connosco, políticas iguais àquelas que sempre quisemos que fossem as dos outros países para com os nossos concidadãos emigrados. Nem mais, nem menos.
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Deixemos Portugal e voltemos à Europa e ao mundo. As migrações, as suas causas e as suas consequências, constituem hoje um dos mais sérios e complexos problemas de todas as sociedades. Muito mais do que no passado, as relações internacionais estão condicionadas, em parte, pelas migrações, sejam as realizadas, sejam as previsíveis. A organização da União Europeia, por exemplo, é particularmente sensível a este ponto, como se verificou com a adesão de novos membros (Bulgária e Roménia), com a candidatura de outros (Turquia) e com as relações com terceiros (África do Norte). As relações dos Estados Unidos com os países latino-americanos estão igualmente marcadas pelo problema das migrações.
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Há, como se sabe, muita discussão sobre as políticas possíveis. Mas também há muita especulação, geralmente alarmista. Ainda há bem poucos anos se receavam, por toda a Europa, as enxurradas de imigrantes com origem na Europa central e de Leste, vindos dos novos membros da União ou dos países que se afastaram da antiga União Soviética ou da Comunidade de Estados Independentes. Eram frequentes as certezas sobre as consequências nefastas que se verificariam. Mas ninguém previa, por exemplo, que só a Grã-Bretanha seria capaz de, em poucos anos, absorver meio milhão de Europeus de Leste; que Portugal receberia cerca de 100.000 cidadãos das mesmas origens; e que valores de idêntica ordem proporcional se verificariam em Espanha, na Itália e em França.
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Apesar das histórias de sucesso, a opinião pública continua a pensar que as migrações trazem problemas. Por um lado, é verdade. Por outro, tal sentimento é exagerado. Perante qualquer notícia menos agradável ou diante de uma tendência económica negativa, como por exemplo o desemprego, logo se esquecem as inegáveis vantagens da imigração de estrangeiros, para rapidamente se lhes atribuírem culpas e responsabilidades. Neste quadro, o preconceito cresce a uma velocidade impressionante. Reparemos como certos povos estão indelevelmente ligados a preconceitos inadmissíveis. Dispenso-me de referir os nomes próprios, mas há povos que foram quase equiparados a um certo tipo de malfeitores. De uns, logo se pensa que são terroristas. Outros são evidentemente traficantes de droga. De uma nacionalidade se tem a certeza que estão todos entregues à prostituição e ao proxenetismo. Uns são evidentemente criminosos, outros contrabandistas; uns são naturalmente violentos e especialistas no crime organizado, enquanto outros dedicam-se todos ao comércio ilegal. Pensem em fazer, em voz baixa, estas equiparações e verão que o preconceito é bem real.
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Além disso, mais fundo e mais persistente, há o racismo. O racismo está frequentemente associado às migrações. O que agrava aquela que é já uma complexa questão social. Há certos fenómenos que, quase inevitavelmente, acompanham as migrações em massa. Como por exemplo o trabalho ilegal, as redes de tráfico e colocação de mão-de-obra, o desenraizamento, a marginalidade ou as condições de habitação segregada. Se a todos estes factos, perturbantes e de difícil resolução, acrescentarmos as manifestações de racismo, como é infelizmente frequente, então temos diante de nós situações realmente explosivas.
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Não creio exagerar. O racismo é um traço permanente da civilização ocidental. Talvez o seja também de outras, é-o seguramente. Mas é a nossa civilização que me interessa aqui. Não esqueço que também há no Ocidente o seu contrário, a tolerância e a miscigenação. Como não esqueço que muita gente, na Europa, não é racista; nem que a luta contra o racismo e pela igualdade tem tido, neste continente, pontos altos no pensamento, na acção e na lei. Mas não vale a pena esconder aquele que é também um facto relevante, quase uma tradição histórica: há séculos que o racismo é um traço permanente nas sociedades e nos hábitos ocidentais e europeus. E nem é preciso recuar até aos tempos da escravatura e das primeiras colonizações: o século XX é farto em exemplos de acções, hábitos, leis e comportamentos racistas, tanto neste como noutros continentes.
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Vivemos hoje e viveremos no futuro tempos de globalização. De abertura das sociedades. De movimento e deslocação dos povos. De liberdade de circulação e de derrube de alfândegas. Mas também, paradoxalmente, de criação de novas fronteiras. O estabelecimento de disciplinas severas para impedir ou controlar os movimentos de população está, em muitos países, na ordem do dia. A mistura de populações acelera-se em todo o mundo, seja por mestiçagem, seja por habitação e vizinhança. Mas, ao mesmo tempo, surgem novos conflitos e novas manifestações de segregação. Creio ser difícil admitir a total liberdade de circulação: nenhum país, nenhum Estado a admite. Mas esse não é motivo suficiente para reforçar os impedimentos, as proibições e as separações. Até porque tais atitudes e políticas não evitam hoje, como se sabe, a clandestinidade e o trabalho ilegal, nos quais tanto colaboram os estrangeiros como os nacionais de qualquer país. Não é por eles, pelos estrangeiros, que devemos ser mais racionais nas políticas. É por nós, por todos nós, dado que, para além da circulação, do trabalho e da sobrevivência, estão em causa direitos humanos, a participação na vida pública e a integração de todos na vida colectiva.
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A Europa tem receio das migrações. Tanto os Estados europeus como as suas populações. Tempos houve, há não muitas décadas, em que a migração era considerada necessária, desejada ou, pelo menos, tolerada sem ressentimentos. Hoje, parece que estamos a viver tempos diferentes. Ao mesmo tempo que as fronteiras se abriram, que as alfândegas quase desapareceram, que o turismo, os negócios ou simplesmente a liberdade de circulação florescem, uma espécie de sentimento de receio começou a desenvolver-se. Uma das mais complexas questões que ocupam actualmente as instituições da União, assim como os governos dos Estados membros, é a da imigração, em todas as suas vertentes. A Europa tem receio dos europeus de Leste, dos turcos, dos árabes e dos africanos...
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Do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos e o Canadá têm receio das migrações. Estes países, feitos pela emigração, receiam hoje os imigrantes do mundo inteiro, especialmente da América Latina. Está em estudo e em curso de construção uma barreira detectora de imigrantes! Existe a convicção de que é possível controlar a emigração e de que razoável que um país só deixe entrar dentro das suas fronteiras as pessoas de que necessita para o seu mercado de trabalho!
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Em África, é o contrário. A emigração parece ser o desejo, o horizonte e a ambição de muitos povos, a ponto de se estabelecerem vias de transporte ilegais, arriscadas e perigosas, onde todos os meses morrem dezenas ou centenas de candidatos à emigração. Hoje em África, mais do que em qualquer outro continente, as migrações estão ligadas a situações de carência absoluta, a conflitos e guerras de enorme crueldade e a movimentos de deslocação compulsiva e violenta de centenas de milhares ou milhões de pessoas.
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Finalmente, há realidades novas, ou com novos contornos, que obrigam a uma firme atenção. Nos países de acolhimento, criam-se fenómenos de não integração das segundas e terceiras gerações que cada vez mais perturbam a paz social. Muitos dos que recebem estrangeiros pensam que compete apenas aos outros adaptarem-se aos seus costumes. Mas também há muitos estrangeiros que não estão disponíveis para fazer o esforço de adaptação. Daqui resultam conflitos e incompreensões que têm envenenado as relações entre etnias. E também existem Estados que, para as suas políticas internas e externas, tentam utilizar as suas comunidades da diáspora.
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Termino com uma profissão de fé nas migrações. O que não impede que tenha consciência da dimensão dos problemas que lhes estão associados. Há enormes pressões, seja para aumentar as migrações, seja para as conter e limitar. Associados às migrações, há fenómenos de extrema complexidade, nem sempre fáceis de resolver. Mais do que no passado, com a globalização, as migrações entram directamente no domínio das relações internacionais. Por isso, não são só a humanidade dos nossos comportamentos e a tolerância das nossas leis que estão em causa. Estão também a paz e o desenvolvimento.

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Sociedade de Geografia de Lisboa
Lisboa, Janeiro de 2006
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NOTA: Este post é uma extensão do que está afixado no Jacarandá, onde eventuais comentários deverão ser afixados

0,5% do IRS para a LPCC

«Como falhar completamente...» - Solução


A + B = 315 + 110 = 425

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O DISCURSO DO NADA

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Por Baptista-Bastos
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A VITÓRIA DE SÓCRATES é a metáfora do eucalipto: ele seca tudo à sua volta e conduz o partido como muito bem entende. A percentagem de 96,43 por cento dos votos não reflecte, em boa verdade, a imagem que o PS deseja expor. O PS dispõe de cerca de 73 mil militantes, mas apenas 29 mil votaram, por terem as quotas em dia. Há um manifesto desinteresse dos socialistas pelo destino do partido em que militam. Pode-se atribuir essa falta de comparência cívica a mil razões. As mais das vezes razões falaciosas. E as declarações jubilosas de altos dirigentes, em lufa-lufa de subserviência ao chefe, além de fastidiosas, ocultam o nó do problema. O PS é a imagem devolvida do País: desencanto, aborrecimento, ausência de convicções, desmotivação. São os próprios princípios que estão em causa. A absurda justaposição do slogan "socialismo moderno" com a lógica fatal do neoliberalismo mais assanhado conduziu a uma esterilidade ideológica e ética que estas eleições vieram sancionar. O volumoso resultado obtido por Sócrates não tem importância nenhuma. A ameaça dos acontecimentos, a carência de respostas sérias, o desprezo para com a história do partido, a falta de fidelidade descaracterizaram o PS. E José Sócrates não vive em autismo, não se move num universo virtual: simplesmente não sabe como resolver os inúmeros problemas da sociedade portuguesa. Os temas exclusivos que, no congresso, suscitaram o seu interesse, são indicadores do seu oportunismo ou da sua incompetência. Esqueceu o desemprego, o desajuste entre a realidade pungente, na qual estamos mergulhados, e a mudança das instituições; a falência dos bancos, a corrupção e a própria questão da liberdade. Sócrates tinha opções: não as tomou ou não as quis tomar. A sociedade pedia-lhe (e até lhe exigia) respostas. O método de pensamento que utilizou é-lhe habitual. Passa ao lado do que se lhe pedia, exigia ou perguntava. Sob a capa de falar de problemas "fracturantes", nunca assumiu, com a coragem requerida, enfrentar os dilemas que o excedem, mas que são inseparáveis dos princípios elementares do nosso viver colectivo. Desconhecemos o que José Sócrates pensa da exaustão portuguesa, sovada pela agressividade das leis que promoveu e fez promulgar. Não sabemos dos seus projectos para Portugal, sobre o qual nos é inculcada a ideia de que materialmente não tem futuro.
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Parece que o secretário-geral do PS e primeiro-ministro somente obedece a forças cegas e brutais, impostas e garantidas pelos grandes interesses, que sobrepuseram o económico ao político. Apesar de tudo, presumi, um pouco ingenuamente, que José Sócrates iria inflectir o discurso para outros perímetros. Enganei-me. O homem não tem cura.
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«DN» de 18 de Fevereiro de 2009.
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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

«A vida difícil dos nossos espiões» - Solução do passatempo

Página 108

Eis o que me irrita em Pedro Passos Coelho

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Por João Miguel Tavares
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EU APRECIO A FORMA como Pedro Passos Coelho conquistou o seu espaço no PSD e na comunicação social, com um tom civilizado, um discurso articulado, uma presença aprumada e uma atitude que poderemos definir como "eu sei que vou ser líder do PSD, só não sei é quando". Há pouco mais de um ano, Passos Coelho era um sério candidato a aparecer no Perdidos & Achados da SIC. Hoje, é um sério candidato a ser o José Sócrates da direita (não é uma ofensa, juro). Ora esta ascensão-relâmpago, este súbito surgimento em manhã de nevoeiro, não é desprovida de méritos. Os meus jovens amigos de direita entusiasmam-se com a sua figura, e eu não tenho dúvidas de que a sua postura liberal faça falta à pátria, mesmo que os tempos soprem mais para o lado do Estado Todo-Poderoso e a malvada recessão tenha transformado a sua ideia de privatizar a Caixa Geral de Depósitos numa gafe incómoda.
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No entanto, apesar das suas vastas qualidades, Pedro Passos Coelho tem andado a armar-se em sonso nas suas últimas intervenções, que é coisa que irrita um bocado. A gota de água que fez transbordar o meu copo foi a sua intervenção no final de um almoço no American Club (almoço em sua homenagem, claro), surpreendentemente acompanhada por uma série de jornalistas, onde o candidato a líder que não é candidato a líder disse: "Saber se Manuela Ferreira Leite se sente em condições anímicas para levar uma mensagem positiva ao País e catalisar a mudança é uma avaliação que só ela poderá fazer. Tenho a certeza de que o fará." Esta já é pelo menos a quarta vez que o ouço dizer isto, ipsis verbis, e eu escuto pouca rádio e não vejo assim tanta televisão. As "condições anímicas" da senhora e a "avaliação que só ela poderá fazer" começam a soar a disco riscado. Demasiado riscado.
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O problema, claro, não é o riscado, mas a hipocrisia subjacente. Eu percebo que Pedro Passos Coelho não queira ser confundido com Luís Filipe Menezes, o que só lhe fica bem. Mas entre pedir abertamente a demissão de Ferreira Leite cada vez que ela mostra o penteado, como faz Menezes, ou insinuar sucessivamente que a senhora se devia demitir mas não sou eu que vou pedir a sua demissão, como faz Passos, acho que prefiro a clareza vinda de Gaia. É que o problema está aí: de nada vale Passos Coelho vender-se como uma alternativa séria se não for capaz de falar com seriedade. Ou entende que é Ferreira Leite quem deve enfrentar Sócrates e se cala. Ou entende que a senhora é uma tragédia e o diz com clareza. Agora, esta atitude de meter pioneses na cadeira enquanto faz cara de menino bem comportado, convenhamos, já começa a enjoar.
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«DN» de 17 de Fevereiro de 2009
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NOTA: Este post é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

«Espera» (crónica de JPG 16 Fev 09) - Prémio

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Passatempo Aniversário de Galileu - Solução

A balança indica 508 gramas

Quem diria? - Taro plagia Sócrates

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Por Antunes Ferreira
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A FRANCE PRESSE, descobri agora e o Japão, acabo agora mesmo de descobrir, estão mancomunados com José Sócrates. Que desplante! É um verdadeiro plágio. E não creiam os que ainda me lêem que se trata de mais um boato malévolo e anónimo – de minha autoria. Não se leia nisto uma grave incongruência. Há momentos em que um anónimo convicto e de boa fé se permite dizer de peito aberto e coração puro que encontrou motivos tão dramáticos numa afirmação, que tem de desabafar com alguém. No caso com os escassíssimos corajosos que seguem as minhas escrevinhadelas. Portanto, nada de confusões: este caprichoso anónimo, sou eu.
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Transcrevo um despacho da agência em causa, oriundo de Tóquio. Utilizo a versão em português do Brasil e, por consequência mantenho a grafia, que, de resto, e de acordo com o Acordo, a partir do 2010 aqui ao lado - e que já se descortina no horizonte, menos afastado do que se pensa – será a base da uniformizada. Permito-me aqui uma parentética, endereçada aos que ainda estão contra o documento. Apenas a título informativo, solicitando que comparem com os dados da
Mãe Pátria que dizemos que somos.
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É curioso, mas, quer queiramos, quer não, a República Federativa do Brasil, tem 190 milhões de
habitantes, e uma superfície de cerda de 8.515 milhões de quilómetros quadrados, o que significa quase metade da América do Sul. Em comparação com os demais países do globo, dispõe do quinto maior contingente populacional e da quinta maior área. Nona maior economia do planeta e a maior latino-americana, o Brasil tem hoje forte influência internacional, seja no âmbito regional seja no global.
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«Japão vive pior crise econômica desde a Segunda Guerra»
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«A economia do Japão está atravessando sua pior crise desde o final da guerra, afirmou nesta segunda-feira o ministro de Política Econômica e Orçamentária, Kaoru Yosano, após divulgação de cifras que revelam que o país sofre a maior contração em 35 anos. "Esta é a pior crise desde o final da guerra. Não resta dúvidas", declarou Yosano à imprensa».
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«Segundo cifras oficiais divulgadas nesta segunda-feira, a economia japonesa sofreu no quatro trimestre de 2008 a pior contração desde 1974, com uma queda de 12,7% do Produto Interno Bruto. "A economia japonesa, cujo crescimento depende muito das exportações de automóveis, maquinário e equipamentos de informação, ficou literalmente arrasada pela crise", afirmou ainda Yosano».
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«"O Japão será incapaz de superá-la sozinho. As fronteiras não existem na economia. Nossa economia arrancará de novo ao mesmo tempo que os outros países", acrescentou o ministro, para quem "reconstruir a economia é uma questão de responsabilidade frente aos outros países". Este foi o terceiro trimestre consecutivo de crescimento econômico negativo no Japão».
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«Este retrocesso do PIB da segunda economia mundial e primeira da Ásia é o mais forte desde a queda de 13,1% em ritmo anual registrada no primeiro trimestre de 1974, em plena crise do petróleo. Os economistas esperavam por uma contração de 11,6% a ritmo anual, e de 3% em relação ao trimestre anterior, segundo uma pesquisa realizada pelo jornal Nikkei com 22 especialistas».
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«O Japão se encontra oficialmente em recessão desde o terceiro trimestre de 2008, quando sua economia retrocedeu 0,6% em relação trimestre precedente, depois de uma contração de 0,9% no segundo trimestre. Segundo a imprensa japonesa, o governo prepara um novo pacote de estímulo econômico para combater essa situação. O primeiro-ministro, Taro Aso, deve encarregar nesta segunda-feira o Partido Liberal Democrata (LDP) o início dos trabalhos para apresentar em abril um orçamento adicional ao Parlamento, com o objetivo de financiar o terceiro plano de reaquecimento desde o fim de 2008, informaram o jornal Yomiuri Shimbun e o canal de TV público NHK. Alguns integrantes do governo defendem uma ajuda substancial, que poderia chegar a 109 bilhões de dólares».
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«"Devemos atuar de forma contundente. Devemos fazer algo drástico", declarou Yoshihide Suga, muito ligado ao premier. O pacote definiria o financiamento de grandes projetos públicos como a reconstrução de aeroportos e outras infraestruturas, ao mesmo tempo que estimularia o desenvolvimento de empresas com projetos ecologicamente corretos. Como reflexo do anúncio desta segunda-feira, a Bolsa de Tóquio encerrou a sessão em baixa de 0,38%. O índice Nikkei 225 perdeu 29,23 pontos, a 7.750,17 unidades».
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Não subsistam dúvidas. Quer dizer, o Japão, esse pigmeu, imagine-se, copia o que o enorme País governado pelo Pinosócrates vem tentando fazer, singularmente com menos recursos financeiros, mas muito mais ousadia. Quem diria que esse minúsculo Golias seguiria, na medida das suas parcas possibilidades o potentado David do reino dos Descobrimentos.
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Por isso, parece-me de bom tom, no mínimo, que as Oposições cá do burgo dirijam as suas críticas para o Extremo Oriente e não apenas para este ciclópico cantinho. Há que avisar solene, mas energicamente, o Executivo de Tóquio dos riscos que corre com tal seguidismo, verdadeiro inqualificável. Sobretudo a Dr.ª Manuela Ferreira Leite, de quem se espera, face ao despautério nipónico, que o meta nos eixos. Os Japoneses merecem-no. Quem os avisa, amigo deles é.
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NOTA: Este post é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A Correspondência de Fradique Mendes» - IV - A MADAME S.

Paris, Fevereiro.

Minha Cara Amiga.

- O espanhol chama-se Dom Ramon Covarubia, mora na Passage Saulnier, 12, e como é aragonês, e portanto sóbrio, creio que com dez francos por lição se contentará amplamente. Mas se seu filho já sabe o castelhano necessário para entender os Romanceros, o D. Quixote, alguns dos «Picarescos», vinte páginas de Quevedo, duas comédias de Lope de Vega, um ou outro romance de Galdós, que é tudo quanto basta ler na literatura de Espanha, - para que deseja a minha sensata amiga que ele pronuncie esse castelhano que sabe com o acento, o sabor, e o sal dum madrileno nascido nas veras pedras da Calle-Mayor? Vai assim o doce Raul desperdiçar o tempo, que a Sociedade lhe marcou para adquirir ideias e noções (e a Sociedade a um rapaz da sua fortuna, do seu nome e da sua beleza, apenas concede, para esse abastecimento intelectual, sete anos, dos onze aos dezoito) - em quê? No luxo de apurar até a um requinte superfino, e supérfluo, o mero instrumento de adquirir noções e ideias. Porque as línguas, minha boa amiga, são apenas instrumentos do saber - c omo instrumentos de lavoura. Consumir energia e vida na aprendizagem de as pronunciar tão genuína e puramente, que pareça que se nasceu dentro de cada uma delas, e que, por meio de cada uma, se pediu o primeiro pão e água da vida - é fazer como o lavrador, que em vez de se contentar, para cavar a terra, com um ferro simples encabado num pau simples, se aplicasse, durante os meses em que a horta tem de ser trabalhada, a embutir emblemas no ferro e esculpir flores e folhagens ao comprido do Pau. Com um hortelão assim, tão miudamente ocupado em alindar e requintar a enxada, como estariam agora, minha senhora, os seus pomares da Touraine?
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Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra: - todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na língua verdadeiramente reside a nacionalidade; - e quem for possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa, vai gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o especial e exclusivo encanto da fala materna, com as suas influências afectivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do carácter. Por isso o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo. Rue de Rivoli, Calle d’Alcalá, Regent Street, Willelm Strasse - que lhe importa? Todas são ruas, de pedra ou de macadame. Em todas a fala ambiente lhe oferece um elemento natural e congénere, onde o seu espírito se move livremente, espontaneamente, sem hesitações, sem atritos. E como pelo Verbo, que é o instrumento essencial da fusão humana, se pode fundir com todas - em todas sente e aceita uma Pátria.
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Por outro lado, o esforço contínuo de um homem para se exprimir, com genuína e exacta propriedade de construção e de acento, em idiomas estranhos - isto é, o esforço para se confundir com gentes estranhas no que elas têm de essencialmente característico, o Verbo - apaga nele toda a individualidade nativa. Ao fim de anos esse habilidoso, que chegou a falar absolutamente bem outras línguas além da sua, perdeu toda a originalidade de espírito - porque as suas ideias, forçosamente, devem ter a natureza, incaracterística e neutra, que lhes permita serem indiferentemente adaptadas às línguas mais opostas em carácter e génio. Devem, de facto, ser como aqueles «corpos de pobre» de que tão tristemente fala o povo - «que cabem bem na roupa de toda a gente».
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Além disso, o propósito de pronunciar com perfeição línguas estrangeiras, constitui uma lamentável sabujice para com o estrangeiro. Há ai, diante dele, como o desejo servil de não sermos nós mesmos, de nos fundirmos nele, no que ele tem de mais seu, de mais próprio, o Vocábulo. Ora isto é uma abdicação de dignidade nacional. Não, minha senhora! Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros! Mesmo porque aos estrangeiros o poliglota só inspira desconfiança, como ser que não tem raíes, nem lar estável - ser que rola através das nacionalidades alheias, sucessivamente se disfarça nelas, e tenta uma instalação de vida em todas, porque não é tolerado por nenhuma. Com efeito, se a minha amiga percorrer a Gazeta dos Tribunais, verá que o perfeito poliglotismo é um instrumento de alta escroquerie.
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E aqui está como, levado pelo diletantismo das ideias, em vez dum endereço eu lhe forneço um tratado!... Que a minha garrulice ao menos a faça sorrir, pensar, e poupar ao nosso Raul o trabalho medonho de pronunciar Viva la Gracia! e Benditos sean tus ojos! exactissimamente como se vivesse a uma esquina da Puerta del Sol, corn uma capa de bandas de veludo, chupando o cigarro de Lazarillo. Isto todavia não impede que se utilizem os serviços de D. Ramon. Ele, além de Zorrilista, é guitarrista; e pode substituir as lições na língua de Quevedo, por lições na guitarra de Alma viva. O seu lindo Raul ganhará ainda assim uma nova faculdade de exprimir - a faculdade de exprimir emoções por meio de cordas de arame. E este dom é excelente! Convém mais na mocidade, e mesmo na velhice, saber, por meio das quatro cordas duma viola, desafogar a alma das coisas confusas e sem nome que nela tumultuam, do que poder, através das estalagens do Alundo, reclamar com perfeição o pão e o queijo - em sueco, holandês, grego, búlgaro e polaco.
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E será realmente indispensável mesmo para prover, através do Mundo, estas necessidades vitais de estômago e alma - o trilhar, durante anos, pela mão dura dos mestres, «os descampados e atoleiros das gramáticas e pronúncias», como dizia o velho Milton? Eu tive uma admirável tia que falava unicamente o português (ou antes o minhoto) e que percorreu toda a Europa com desafogo e conforto. Essa senhora, risonha mas dispéptica, comia simplesmente ovos - que só conhecia e só compreendia sob o seu nome nacional e vernáculo de ovos. Para ela huevos, oeufs, eggs, das ei, eram sons da Natureza bruta, pouco diferençáveis do coaxar das rãs, ou dum estalar de madeira.
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Pois quando em Londres, em Berlim, em Paris, em Moscovo, desejava os seus ovos - esta expedita senhora reclamava o fâmulo do Hotel, cravava nele os olhos agudos e bem explicados, agachava-se gravemente sobre o tapete, imitava com o rebolar lento das saias tufadas uma galinha no choco, e gritava qui-qui-ri-qui! có-có-ri-qui! có-ró-có-có. Nunca, em cidade ou religião inteligente do Universo, minha tia deixou de comer os seus ovos - e superiormente frescos!
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Beijo as suas mãos, benévola amiga. - FRADIQUE.

Passatempo-conjunto «Jacarandá» / «Sorumbático»

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Explicação (CMR): Por associação de ideias, a última parte do Retrato da Semana de 15 Fev 09 levou-me a sugerir ao seu autor a atribuição de um prémio (que será um exemplar deste livro) ao melhor comentário que venha a ser feito até às 20h do próximo dia 20, sexta-feira.
Embora a crónica também seja afixada no Sorumbático, os comentários a considerar serão os que forem deixados no Jacarandá.
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Actualização (21 Fev 09 / 10h40m): ouvidas duas pessoas que se ofereceram para as funções de júri, o resultado foi:
A. Viriato .. 2 pontos; Héliocoptero e Mg .. 1 ponto cada um.
O primeiro receberá o livro anunciado; os outros dois deverão ir [aqui] e indicar 2 ou 3 títulos que lhes interessem. Os três têm 48h para escreverem para sorumbatico@iol.pt indicando morada. Obrigado a todos/as!

Passatempo comemorativo do aniversário de Galileu

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Quanto pesa este par de livros?
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Como já se percebeu, este clássico de Carl Sagan será atribuído ao leitor que mais se aproximar da resposta correcta à pergunta colocada acima. Em alternativa, o vencedor poderá optar pelo livro de José Rodrigues Miguéis, que está por baixo e cujo título, para já, se ocultou (*).
Se o erro for igual ou inferior a 20 gramas receberá ambos os livros.
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Cada leitor poderá dar uma única resposta, e o passatempo terminará às 20h de 16 Fev 09, segunda-feira, a menos que a resposta exacta seja dada antes dessa hora. Em caso de empate, e como habitualmente sucede, vencerá o 1.º leitor a dar o melhor palpite.
(*) O motivo para a ocultação é o seguinte: nestes passatempos de "peso", é fácil ir à internet e encontrar, nas páginas das editoras, uma resposta - pelo menos - aproximada, para já não falar de quem tenha o livro e uma balança à mão. Ao incluir um outro livro (cujo título, para mais, se oculta) pretende-se limitar essa possível vantagem.
Actualização-1 (16 Fev 09/9h30m): A resposta já está programada para aparecer às 20h01m de hoje, [aqui].
Actualização-2 (16 Fev 09/20h15m): Como já devem ter constatado, o passatempo foi ganho por Luís Bonito, com o palpite de 510 gramas (erro de 2g). Dada a grande participação que o passatempo teve, foi decidido oferecer ainda um 2.º prémio (um livro-surpresa) a Jaime (erro de 8g). Preciso, agora, das moradas: contactar sorumbatico@iol.pt nas próximas 48h. Obrigado a todos/as!

Galileu em ano de Darwin

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Por Nuno Crato
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COMEMORAM-SE ESTE ANO dois gigantes da ciência. Passam 200 anos sobre o nascimento de Charles Darwin e 400 sobre as primeiras observações telescópicas de Galileu. As comemorações de Darwin começaram agora em plena força, com uma extraordinária exposição na Gulbenkian e com outros eventos. As celebrações de Galileu começaram em Janeiro, com o lançamento do Ano Internacional da Astronomia, e vão ter maior desenvolvimento em Dezembro, pois foi nesse mês, em 1609, que o célebre físico apontou pela primeira vez um telescópio ao céu.
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As comemorações são sempre uma oportunidade para aprender mais. Vale a pena, claro, ler uma das reedições da “Origem das Espécies”. Mas quem tenha um estômago mais modesto talvez prefira começar por outras leituras. Sugerimos, como introdução breve e moderna, “A Origem das Espécies de Darwin”, um notável estudo de Janet Browe, traduzido para português pela Gradiva. Da mesma editora saiu também o interessante estudo “O Português que se Correspondeu com Darwin”, de Paulo R. Trincão, director da dinâmica Fábrica de Ciência Viva de Aveiro. Outras editoras planeiam outros lançamentos.
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Sobre Galileu esperam-se mais publicações, mais para meio do ano. Guilherme de Almeida, um conhecido professor de física do Colégio Militar, adiantou-se. Fez já sair um livro para jovens intitulado “Chamo-me Galileu Galilei”. Com belas ilustrações de Jorge Miguel e edição da Didáctica, é uma obra de 64 páginas, narrada imaginariamente pelo próprio Galileu. Ao contrário do que se poderia pensar pelo aspecto juvenil do livro, é um texto que leitores de todas as idades apreciarão. Tudo é simples, das palavras aos desenhos, mas tudo tem um rigor histórico e científico notável.
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Nesta semana e na próxima, o nome do cientista italiano vai ser falado, pois o seu nascimento teve lugar a 15 de Fevereiro. O seu aniversário teria lugar este domingo, portanto. Na realidade, esta data está marcada no calendário juliano, em vigor na altura. Guiamo-nos hoje pelo calendário gregoriano, que roubou 10 dias a quem vivia na altura. Assim, se quisermos comemorar a data talvez seja mais apropriado fazê-lo a 25 de Fevereiro.
Para evitar confusões, os historiadores convencionaram manter as datas antigas quando se referem a acontecimentos anteriores à mudança de calendário. A complicar as coisas, a mudança de calendário não ocorreu simultaneamente em todos os países. Isso significa que, por vezes, acontecimentos que parecem simultâneos de facto não o são.
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Um dos casos mais flagrantes é o da aparente coincidência da morte de Galileu com o nascimento de Newton, ambos registados em 1642. Galileu morreu em 8 de Janeiro de 1642, segundo o calendário gregoriano, que foi adoptado na península italiana em 1582. E Newton nasceu em 25 de Dezembro de 1642, segundo o calendário juliano na altura usado em Inglaterra e mantido nesse país até 1752.
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Se referirmos ambas as datas ao mesmo calendário temos surpresas. No calendário gregoriano, Newton nasceu dia 4 de Janeiro de 1643. No ano seguinte ao da morte de Galileu e 361 dias mais tarde! No calendário juliano, nasceu em 25 de Dezembro de 1642, como se disse, enquanto Galileu morreu em 29 de Dezembro, mas de 1641 — os mesmos 361 dias de diferença. Na base deste desfasamento está a diferença de dia adoptado para começo do ano. No calendário gregoriano é 1 de Janeiro, como se sabe. No caso juliano era 25 de Março. Nada é simples nos calendários.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 14 de Fevereiro de 2009.

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