quarta-feira, 25 de junho de 2014

NA PRIMEIRA PESSOA - Ai a minha mãe!...



Por Antunes Ferreira

N
uma mata cerrada a diferença do dia para a noite são os animais; no resto tudo é escuridão graduada desde o cinzento carregado até ao preto tinta-da-china, mas sem tira-linhas. As árvores tapam o sol e tapam a lua, mais qual? De dia o silêncio assusta; de noite, os uivos, os grasnidos, os piares assustam também. Será que silêncio significa sossego? Bem pelo contrário. Os caludas em tom sussurrado atrofiam os homens fardados.
P

orém isto é quando os militares caminham em patrulha, na chamada bicha de pirilau ou estão alapados numa emboscada, à espera de quem caia nela – ou se safe. Aí o capim desempenha o seu próprio papel, actor mudo, sem caixa de ponto, mas importante. Porém quando segue uma coluna de camiões o caso é bem diverso. O barulho dos motores mata o psiu, alerta para longe da picada. E então, quando se constrói uma nova estrada pisando as marcas dos pés que por ali passaram, nem falar nisso. Buldózeres, cilindros, bidões de asfalto, serras mecânicas, pás, picaretas, martelos hidráulicos…

N
ão pode haver silêncio nestes transes. E quando se tem de dormir na picada, no meio da mata, ainda é mais complicado, nada de cigarros, o morrão é um excelente objectivo para eles, um olho aberto, o outro fechado, o brado da sentinela, quem vem lá? O vento no capim, o grito de um macaco, o zumbido de milhões de mosquitos são tudo motivo de suspeição: se são os sacanas estamos fodidos. Então pessoal, ninguém se deixa dormir sem a canhota à mão de semear. A segurança tem de ser tão eficaz quanto seja possível.

E
sta é a minha terceira coluna; vou, vamos, a caminho dos Dembos, dizem os conhecedores que é a pior zona do terrorismo(*) de Angola, mais precisamente para o Quibaxe para onde levamos material de guerra, alimentos e até gado vivo para abate. São 48 viaturas civis, interpoladas por outras militares: três “burros de mato”, os Unimog mais pequenos, dois maiores, dois jipes e na frente uma GMC da segunda guerra mundial, carregada de sacos cheios de areia e de pedras, com o fundo reforçado por placas de aço, bem como a cabina do condutor.

É
 o rebenta-minas, parido pelo desenrascanço português, que consiste num cilindro de metal com correntes grossas, daquelas das âncoras dos navios, penduradas, tudo soldado à frente da viatura pesadíssima na tentativa de prevenir qualquer rebentamento de bomba enterrada na terra do caminho, traiçoeira. Já vi uma não rebentada, lançada de avião, 300 quilos bem pesados, com um detonador acoplado que felizmente não… detonou. Resulta que, quando o camião se desloca, as correntes vão batendo no solo para detectar e rebentar as possíveis minas ali plantadas por eles, os turras. (*) 

C
ai a noite, caralho não conseguimos chegar ao fortim da fazenda Maria Fernanda, fartámo-nos do bate-cu nas “carroças”, de afastar uns abatises que por ali ficaram, de desenterrar camião atolado na lama vermelha, estamos feitos, temos de dormir na picada. Explicando melhor: eu comando as viaturas civis; o alferes miliciano atirador Pedro Martins, do Grafanil, comanda as militares e os soldados da escolta. Confabulamos, pigarreio e aviso a malta que passamos o breu ali mesmo. Monta-se a segurança e na medida do possível os camiões tentam formar um círculo à maneira das caravanas onde os brancos se defendem heroicamente dos sioux e outros peles vermelhas.

S
entado no estribo da Suzuki de 15 toneladas, rapo da ração de combate e melancólico abro a caixa de cartão. E logo o senhor Bravo, proprietário e condutor do camão me pergunta o que estou a fazer. Adriano Bravo é um tipo muito especial. Uma mina gamou-lhe a viatura que tinha e uma perna, a direita. Foi para o Alcoitão fazer a recuperação depois de lhe terem colocado uma artificial. E voltou a conduzir o novo camião, o Suzuki, porque esta é a minha vida e sou como os gatos, não tenho uma, tenho sete…

D
eixe-se de merdas, você vai comer connosco e dê a puta da ração ao preto que vai sentado no cimo da carga. Guerra extraordinária, em que os homens de um lado e do outro disparam com tudo o que têm à mão e, raio de prática, vão-se insultando enquanto atiram. Vai na tua terra soldado cabrão, vai meter no cu do Salazar na cona da puta da tua mãe, berram do capim. Vai levar na peida macaco, se te apanho corto-te os colhões, nunca mais tens filhos mesmo depois de morto. E assim.   
A

banco com os condutores, comemos postas de pescada do Cabo deliciosamente fritas,  lombo de porco assado já vindo de casa, batatinhas cozidas na hora, reinam os fogareiros de petróleo, guardadas as chamas por tabiques de contraplacado já trazidas de Luanda para o efeito. E tudo regado com um vinho de estalo, da colheita do Crispim que é de Viseu e rebatido com uma bagaceira do mesmo dono. Um banquete na picada, uma quase orgia nocturna, umas anedotas picantes, sabem aquela do padre e da freira? Não sabem, eu conto. E ri-se baixinho, mas ri-se. No entanto, porra, faltam as fêmeas.

N
o dia seguinte retomamos a marcha. Mais uma horitas e estamos a chegar se não houver merda. O Moreira da bazuca benze-se, pelo sim, pelo não. Há! O pessoal dum Unimog ia mas mais ou menos descontraído, já tinham passado o rebenta-minas e o camião civil onde eu ia e outro, um White curiosamente branco e, de repente, buuuummm!!! Mina controlada à distância por cordão de disparo, com certeza. Paneleiros!!!! Assassinos!!! Filhos de uma carrada de putas!!!!!!!!

P
ara espanto de todos, depois de tiros a esmo para a mata ou para o ar, não se vê ninguém, ficaram apenas três feridos. O maqueiro Lingrinhas já começou a tratar deles e, de supetão, ó Henrique! Na mata não se diz a patente, não ande por aí o Mata-alferes. Corro. Esparramado no chão, envolto em ligaduras, adesivos, pensos individuais do combatente está o Periquito, alentejano de Évora Monte, 22 anos, solteiro mas com dois filhos e um coto a jorrar sangue por troca com a perna esquerda.  O Lingrinhas faz-lhe um garrote com um cinturão bem apertado, mas… Henrique, o gajo morre-nos. Quim liga o rádio pede o heli para o evacuar! Foda-se Henrique, o cabrão não quer funcionar!

N
ão sei se alguma vez alguém morreu nos vossos braços. Eu sei. Eu sei o que custa, porque, garrotado, cheio de morfina, o Periquito engalfinhou a sua mão na minha, enquanto, sentado ao lado dele, eu o amparava, passando-lhe o meu braço sobre os ombros dele. E o sangue a empapar as ligaduras. E ele a gemer, ai a minha mãe!!... ai a minha mãe!... ai a minha mãe… Ai a minhaaa… Os olhos já vidrados. Por mais anos que viva nunca me esquecerei. Ai! O helicóptero aterra meia hora depois, foi rápido, mas não chegou a tempo. Metem-no lá numa padiola. E foi um cadáver que transportou de volta a Luanda.

P
orém, a estória vivida não fica aqui. O Zagalo, vizinho do Periquito em Évora, quando para ali se deslocaram por terem sido mobilizados abre-se comigo já no quartel: meu alferes há duas merdas estranhas; a primeira é que o moço estava amigado com uma gaiata a quem tirara os tampos quando ela tinha 16 anos; daí o casal de filhos, a miúda com oito anos e o puto com seis, logo ele tinha podido meter o amparo de família e passar à peluda, mas não fez ninguém sabe porquê, ele nunca se confessou à malta. A  segunda ainda me mete mais macaquinhos no sótão: a mãe dele já tinha falecido vai para três anos.

(*) Terminologia usada então…

quinta-feira, 19 de junho de 2014

NA PRIMEIRA PESSOA -Um pirolito igual ao nosso

Nesta rubrica escrevo, a partir de hoje, estórias
que se baseiam em episódios vividos por mim
nas mais diversas circunstâncias, desde as familiares
 até às profissionais, tentando assim repartir
com os leitores deste blogue experiências que fiz
durante a minha vida e que, na generalidade, e
 se o tempo retroagisse, voltaria a viver.
Espero que gostem. 
Por Antunes Ferreira

Fui mobilizado para Angola em 1966, depois de já ter sido promovido a alferes miliciano. Os acasos da vida aqui não entraram pois outros factores me forçaram a embarcar no “Uíge” com mais dois mil bicos fardados que foram encontrar a bordo uns quantos mais e quantas - e outros, entre as nove e as onze, mais acolhedores do que os restantes membros da tripulação. Estes últimos, poucos, tentaram de imediato fazer ralações, ups, relações mais próximas com os memb…, ups, a malta castrense. Vidas.

 A viagem correu satisfatoriamente, só houve, logo à saída da barra um soldado da Mouraria que meteu noutro três centímetros duma ponta-e-mola e quem levantou o auto adivinhem? Só a modéstia natural me impede de dizer que fui eu… E durante ela que demorou 14 dias tentei descobrir os mistérios insondáveis do brídege, tarefa que me foi quase infrutífera dada a condição do animal – eu – não me entusiasmar assaz com jogos de cartas e, sobretudo, porque as partidas eram a dinheiro e isso nunca fiz, faço e farei (conheço que disse façarei, mas isso é outra estória. A bordo, todos os oficiais gabavam a minha sorte, o que parecia ser a ironia suprema que não era; ao contrário desses militares cuja família ficava no Puto, a Raquel esperava-me em Luanda.


Minha mulher decidira ir também à guerra, uma muito especial, levando o Miguel e o Paulo como acompanhantes, porém sem guitarra nem viola. De resto, ela, quando abre a boca (até hoje) faz chorar de emoção que a ouve? Nada, faz chorar sim as pedrinhas da calçada horrorizadas perante as notas e as semifusas de tal sorte que há quem lhe chame filha da pauta. O desembarque no porto de Luanda decorreu sem grandes sobressaltos, a maioria do pessoal de trombas e eu com sorriso achincalhante.

Não resisto qui a contar anedota que corria por entre guindastes, cadernais e outros. Um soldado, pisando tereno firma vê um menino preto a vender jornais. Pergunta, “olha lá catraio o jornal é de hoje?” E a resposta pronta do negrito: “não, patrão, é doje e quinhentos”. Adiante, siga a estória ultrapassado que foi este breve parênteses. O Serviço de Justiça, minha especialidade levou-me à CCS/QJ – RMA, sigla cabalístico-militar que trocada por palavras queria dizer Companhia de Comando e Serviços do Quartel- General da Região Militar de Angola.

Salto aqui o que foi a minha vida entre autos e processos até às colunas ao mato; mas, estas merecem uma explicação mais pormenorizada. A minha especialidade como acima disse era SAM – Serviço de Justiça. Descodifico: Serviço de Administração Militar. Daí que a minha arma habitual era uma BIC laranja. Mas, de Lisboa, o ministro do Exército, general Luz Cunha, mandara um despacho para o general comandante da RMA (sigla acima) decretando que tratando-se eu de um elemento subversivo e comunista devia como prémio fazer colunas ao mato e, se possível, as piores possíveis. As possibilidades de que o alferes miliciano A. Ferreira levar um tiro eram possivelmente as mais possíveis.

Fiz umas quantas, bastantes, a locais pouco recomendáveis, desde Zala até Nambuangongo, passando por Sazaire. Pedra do Feitiço e quejandos. Sem ter apanhado o tal tiro recomendado. Passou o tempo até que completei cinco anos fardado. Por mor da PIDE que então não era DGS lá passei à peluda, jargão castrense que quer dizer passar à disponibilidade, ou seja regressar à vida civil. Se voltasse a Lisboa tinha a vida mais complicada por obra da prestimosa organização policial/política que gostava muito de mim. Para melhor, muitíssimo.

Já desfardado, um dia, ou seja, uma noite decidimos a Raquel e eu entre lençóis tentar a fabricação de uma menina pois já estávamos abonados de dois rapazes. Porém, o parto resultou numa “cachopa” que se chamou… Luís Carlos, contra todas as previsões de familiares e amigos que juravam a pés juntos o sexo feminino para a nascitura que, finalmente, foi um nascituro portador de saúde e de pulmões; na vizinhança faziam-se apostas sobre os decibéis do puto.


A Raquel entendeu dar o primeiro banho ao recém-chegado com os outros dois a assistir, a fim de desde logo conjugarem o verbo amar e o espírito de família com o júnior. E logo, depois de o desflraldar, o Miguel cochichou para o Paulo: “olha, ele tem um pirolito igual ao nosso”… E se os augúrios tivessem acertado e fosse uma catraia?

sábado, 7 de junho de 2014

Passos e Montesquieu


“As leis conservam a sua credibilidade e valor não porque sejam justas, mas porque são leis.”
Charles-Louis de Secondat,  Barão de Montesquieu
Por Antunes Ferreira

Seja-me permitido recordar o que a maioria das pessoas sabe, mas que por vezes, bastantes até, esquece – ou quer esquecer-se. A Revolução Francesa mudou a França, mas também a Europa e até o Mundo. É ponto assente que os acontecimento que se verificaram no século XVIII durante dez anos (1789 – 1799) deram aos cidadãos os princípios políticos consubstanciados no lema que se tornou uma realidade na Terra: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. É o momento em também se consolida a teoria dos três poderes.

A teoria dos três poderes foi consagrada pelo pensador francês Montesquieu. Baseando-se na “Política”, de Aristóteles, e no “Segundo Tratado do Governo Civil”, de John Locke, Montesquieu escreveu a obra “O Espírito das Leis” (1748) em que traçou os parâmetros fundamentais da organização política liberal. Os três poderes eram o legislativo, o executivo e o judicial. E continuam a ser.

O filósofo iluminista foi o responsável por explicar, sistematizar e ampliar a divisão dos poderes que fora anteriormente estabelecida por Locke. Montesquieu acreditava também que, para afastar governos absolutistas e evitar a produção de leis tirânicas, seria fundamental estabelecer a autonomia e os limites de cada poder. As teorias defendidas por Montesquieu exerceram uma poderosa e profunda influência no pensamento político moderno. Elas inspiraram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada em 1789, durante a Revolução Francesa.

Neste país triste e desconchavado que é Portugal, a liberdade que nos foi trazida pelo 25 de Abril (ainda se recordam do que foi?) assentou imediatamente na teoria dos três poderes. Na vigência do “Estado Novo” ela tinha sido vilipendiada, arremedando-se através da Constituição corporativo-fascista de 1933, que contemplava os três poderes iguais, só que um, o executivo, mais igual do que os outros. A mente rebuscada de Oliveira Salazar fora encontrar este artifício para o regime autoritário em que ele era o chefe.

Por cá, mas já no ano corrente, 2014, um novo e jovem chefe do Executivo(?) resolveu fazer uma nova revolução e elaborar uma nova teoria política. Ele defendeu, enquanto poder legislativo, que deveria “dar conselhos” ao poder judicial, já que este (ou pelo menos uma parte deste, ou seja o Tribunal Constitucional) se andava a comportar mal. Os juízes do Palácio Ratton tornaram-se assim, uma nova “força de bloqueio” expressão que Cavaco Silva já utilizara nos fins dos anos 90. Na altura, Cavaco ficou conhecido pela frase calina “deixem-me trabalhar!”.

Nesta semana PC (Passos Coelho) declarou que o Tribunal Constitucional - a quem pedira a “aclaração” dos três artigos do Orçamento para este ano que os juízes tinham declarado inconstitucionais, pedido a que o TC torceu a orelha - com esta sentença punha em risco o final do “programa do ajustamento estrutural” que o seu (des)Governo vinha executando servilmente perante a famigerada troika. Quer isto dizer que o tribunal da rua do Século, em suma, não o deixava trabalhar. Mas o mais gritante foi o que disse quanto ao “recrutamento” dos juízes do TC, pois afirmou que tinha de haver uma peneira mais fina para eles serem escolhidos.

Estará Passos contra a Revolução Francesa? Estará Coelho contra Montesquieu? E por arrastamento, dado que são da mesma cor política, a laranja, estará Cavaco contra a Revolução Francesa? Estará Silva contra Montesquieu? E ainda nessa enxurrada alaranjada estará Assunção contra a Revolução Francesa? Estará Esteves contra Montesquieu? Penso que não, mas as atitudes do (des)Governo português em termos financeiros e económicos pode indiciar que nem não nem sim. Como diria o nosso Eça – nim.
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Suas teorias exerceram profunda influência no pensamento político moderno. Elas inspiram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada em 1789, du Do Espírito das Leis (em francês: De l'esprit des lois), publicado em 1748, é o livro no qual Montesquieu elabora conceitos sobre formas de governo e exercícios da autoridade política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política. Suas teorias exerceram profunda influência no pensamento político moderno. Elas inspiram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada em 1789, durante a Revolução Francesa.rante a Revolução Francesa.