segunda-feira, 30 de março de 2009

Uma agulha no palheiro

Por Nuno Crato
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A REVISTA “NATURE” desta semana revela uma história de sucesso: a procura e recolha de fragmentos de um meteoro caído há poucos meses no deserto do Sudão. Falámos já aqui, em 11 de Outubro passado, sobre a descoberta e queda desse meteoro, que recebeu o nome pouco atraente de 2008TC3.

A história é excepcional desde a primeira hora. Dia 6 de Outubro, às 6h 39min (TUC), um telescópio no Arizona detectou um ponto muito ténue movendo-se contra o fundo estelar. A detecção de um corpo tão pequeno e que reflectia tão pouca luz equivaleu, como depois explicaram os astrónomos, à descoberta de um homem vestido de negro, viajando pelo espaço para lá da Lua.

Verificou-se que o objecto iria atingir a Terra dentro de 20 horas. O alarme foi lançado e, 16 horas depois, às 22h 28min, nas Canárias, consegui-se medir melhor a sua luminosidade e estimar o seu tamanho. Não havia motivos para alarme; tratava-se de um pedregulho que certamente se iria desfazer em contacto com a atmosfera.

O movimento do pequeno asteróide era tão rápido e os cálculos foram tão precisos que se conseguiu calcular com rigor a sua órbita. Soube-se que iria cair sobre o deserto do Sudão e espalhou-se a notícia, esperando que alguém observasse a queda. Às 2h 45min do dia seguinte o satélite Meteosat-8 registou nuvens quentes de poeira no local em que o objecto atingiu a atmosfera terrestre. Na mesma altura, um piloto da KLM voando sobre o Chade diminuiu a luminosidade da cabina e perscrutou o horizonte. Notou, à distância, alguns breves rastos luminosos. Uma fotografia feita uma hora depois registou ainda rastos de nuvens semelhantes aos deixados pelos jactos comerciais quando passam alto no céu.

Esta sequência de factos é, só por si, excepcional. Foi a primeira vez que a queda de um objecto interplanetário foi prevista e verificada. Foi um sucesso da ciência e da técnica que, ainda há poucos anos, seria impossível. A possibilidade de observar potenciais ameaças vindas do espaço — naturalmente objectos maiores que o pedregulho que desta vez nos atingiu — já não é apenas ficção.

A história, contudo, não termina aqui. Depois de encontrar uma agulha no palheiro celeste, o desafio seria encontrar fragmentos do pequeno asteróide sobre a Terra — uma agulha no palheiro do deserto.

O pequeno asteróide ou meteoróide, desfeito pelo atrito da atmosfera, transformou-se em pequenos blocos que geraram traços luminosos característicos de estrelas cadentes, os chamados meteoros. Os pedaços maiores devem ter gerado rastos muito intensos, por vezes chamados bolas de fogo. Tratando-se de um objecto de dimensões apreciáveis, muitos dos seus destroços deveriam ter sobrevivido e poderiam ser encontrados os correspondentes meteoritos sobre o solo.

Em Dezembro, Peter Jenniskens, um astrónomo do Instituto SETI, na Califórnia, foi ao Chade e ao Sudão e organizou, com a Universidade de Khartoum, uma pesquisa sistemática. Caminhando lado a lado, separados de 20 metros entre si, cinco dezenas de pessoas percorreram o deserto. Em três meses de pesquisa conseguiram recuperar cerca de 280 meteoritos.

É a primeira vez que se faz a conexão entre um objecto visualizado no espaço e os seus fragmentos sobre o solo. Tudo isto pode ter passado despercebido nos noticiários. Mas é uma notícia histórica.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 28 de Março de 2009 (adapt.)
NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

Dito & Feito

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Por José António Lima
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QUEM VIVE no pequeno mundo da comunicação social portuguesa pode dizer que não houve, ao longo dos últimos 30 anos de vida democrática, Governo como este de José Sócrates que dispensasse tantas energias a tentar condicionar jornalistas, directores e patrões dos media, que demonstrasse tão grande intolerância e irritação face a notícias incómodas e opiniões críticas. E que fizesse tudo isso de forma tão desabrida. Quer em público, pela voz dos principais responsáveis do Governo e do PS, falando de «campanhas negras» a propósito de investigações jornalísticas e judiciais ou apontando a dedo órgãos de comunicação não alinhados com o poder socialista, como a TVI ou o Público. Quer em privado, através de pressões intimidatórias e do condicionamento de empresas e instituições.
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Um verdadeiro case study. Que não tem paralelo nem com os governos de maioria absoluta de Cavaco Silva, onde algumas tentações maioritárias de controlo de informação não passavam de ensaios de aprendizes quando comparadas com a actual central de controleiros residente em S. Bento. Só o impagável Executivo de Santana Lopes, com os seus Ruis Gomes da Silva e outras excentricidades, se aproximou do furor controleiro deste Governo.
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Vejamos um caso recente e ilustrativo. No Congresso do PS, José Sócrates deu o mote contra o estilo de informação «de uma televisão». Arons de Carvalho descodificou de imediato, atacando e nomeando a TVI. Augusto Santos Silva corroborou os ataques ao pluralismo de informação da TVI. José Lello apareceu a seguir, a completar o trio: «Só me admiro da passividade da ERC. Como é possível haver um telejornal como o de sexta-feira da TVI?». Dez dias depois, a pressurosa ERC diz ter recebido «três reclamações por e-mail» (não seriam assinadas por Arons, Santos Silva e Lello?) e decide abrir um inquérito à «alegada violação de princípios éticos ou legais» por jornalistas da TVI.
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Não está mal, apesar do primarismo da encenação, como manobra de condicionamento do jornalismo independente e de amordaçamento das vozes inconvenientes. Já se sabia que este Governo de José Sócrates convive mal com qualquer órgão de comunicação social que ponha em causa os seus interesses, as suas práticas, as suas figuras. Se pudesse, nacionalizava ou intervencionava a TVI e alguns jornais, como fez com o BPN ou o BCP. O problema é que, em democracia, a liberdade de informação não é transaccionável nem está à venda.
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«Sol» de 28 de Março de 2008.

NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

domingo, 29 de março de 2009

Um dia para gente afável

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Por Nuno Brederode Santos
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ESCREVO NUM HOJE que será o ontem dos incautos que me lerem. Um hoje negregado pelo que já trouxe e inquietante por aquilo que trará. Não sei se ao mundo, ao país, à cidade ou à minha rua. Basta-me saber que a mim.
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Subi à vertical com a luz do sol. Também ela vinha em amarelo, mas esmaecido pelas pequenas hesitações do dealbar. Entreguei-me às abluções da doutrina e foi tudo quanto fiz para aguçar as capacidades mentais que já vão rombas. Nem o café redentor tomara ainda, quando saí para pôr marcos mentais no latifúndio lisboeta que guardo nas traseiras (os tais imponentes sessenta e sete metros quadrados que mais tonificam estes meus pulmões cansados do que qualquer catálogo turístico sobre a Amazónia). Mas poucos segundos de exposição ao libérrimo esplendor da natureza bastaram para reparar que vinha luz a mais do topo sudeste e logo compreender que me tinham arrancado e surripiado as glicínias (uns seres encantadores de pacífica modéstia que ali faziam uma pequena zona de sombra, no azul-lilás que o olhar aguado de Herr Fritzl acaba de tornar mal afamado).
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Há anos – já muitos, concedo – o sangue trazido às guelras ter-me-ia lançado nas aventuras de uma guerra pessoal. Teria ido várias vezes à esquadra (uma para participar; outra para depor, à hora em que o agente adequado para o efeito lá estivesse; e uma terceira para assinar o depoimento, caso não quisesse esperar pela dolorosa dactilografia monodigital do esforçado amanuense, que mais não era do que um polícia de giro sob castigo disciplinar). Anos depois, quando naquele recanto sucessivas e diferentes flores me tivessem sido roubadas e eu já nem guardasse memória das glicínias, seria chamado a depor na fase de instrução, perante gente que, vergada ao senso comum e ao excesso de trabalho, me faria perceber - e bem – como o meu zelo cidadão estava a prejudicar a justiça dos outros. Muito mais tarde, receberia enfim a explicação de que o processo contra incertos fora arquivado a guardar melhor prova.
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Hoje, já sou mais poltrão. Ou fiz recuar a fronteira do brio e da coragem. Foram-se as glicínias? Seja. Amanhã as hortênsias? Vá que não vá. Sou um país invadido que já só defende a capital: o limoeiro e as buganvílias. Aí serei uma fera, porque há sementes deles que já entraram em mim e cá ficaram. Tirarei licença de porte de arma, comprarei uma caçadeira, mandar-lhe-ei serrar os canos na rotunda do Relógio e sobretudo soltarei no jardim a fúria meridional do mini-mastim andaluz que enfrenta pardais em campo aberto. Em suma, exercerei, como cidadão, a legítima defesa da propriedade. Porque, ao contrário do que nos querem convencer, o crime contra a propriedade – não a contabilística, que preocupa os neoliberais, mas a de raiz, a da terra úbere, que comove os conservadores – é mil vezes pior e mais cobarde do que o crime contra a vida ou a integridade física. Neste, a vítima defende-se. Ou pelo menos tenta. E, se não consegue, ainda pode escolher como morrer: se na pedinchice do martírio, se na bravata do herói. No crime contra o património, não. Na propriedade, sobretudo fundiária, jaz um estar que é, todo ele, um enlevo de presença, silêncio e paz. A propriedade não se sabe defender. Não aguenta um golpe de lei, nem um golpe à margem dela. Os que a não possuem não imaginam o calvário a que estão poupados.
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Assim explicado o desencanto com que parti para a extraordinária aventura que o resto do dia devia propiciar, devo então explicar o que ele ainda trará de inquietante. É o apagão cívico. Uma hora mundial e ao que parece muito fraterna, em que se empenham sete municípios portugueses (fora os que agora se propõem voluntariamente seguir-lhes o exemplo) e o entusiasmo de alguns ambientalistas – tudo sob o entusiástico patrocínio de quatro multinacionais e a comovida vigilância da EDP e da REN. Por isso, das 20h30m às 21h30m, apagaremos as luzes: nas casas, nos escritórios, nos monumentos. Para irmanar ricos e pobres, aqueles juntam-se a estes durante sessenta minutos, no jovial sacrifício de uma auto-imposta Idade Média (o que é mais exequível e barato - mas sobretudo prudente - do que conceder uma hora de iluminação dos que a não têm).
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Diluídos no sofá, de telemóvel na mão esquerda, copo na mesa de apoio e comando na mão direita, até se pode ver (à luz de vela que o petróleo não haja poluído) um Portugal-Suécia - que Ban Kimoon e Madaíl terão certamente combinado estar subtraído às obrigações um tanto juvenis do prometido mundo verde.

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«DN» de 29 de Março de 2009

NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

sábado, 28 de março de 2009

Depois logo se vê

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Por Alice Vieira
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VIVEMOS NO PAÍS do logo-se-vê. Do pode-ser-que. Do em-princípio. Do se-tudo-correr-bem.
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A dificuldade que temos em tomar decisões já quase se tornou característica nacional. É qualquer coisa que deve estar nos genes.
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Diante de qualquer problema dizer “é assim, é assim, pronto, vamos a isso” - é frase que os portugueses nem sabem como se pronuncia.
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E essa capacidade de ser rápido e eficaz - tipo “o que tem de se fazer que se faça depressa” - reflecte-se nas coisas (aparentemente) banais do dia a dia.
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Por exemplo: já repararam na dificuldade que as pessoas têm em pôr fim a uma simples conversa telefónica?
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“Adeus, adeus, beijinhos, sim, eu depois ligo, tá bem, adeus, sim, não me esqueço, sim, em princípio eu vou, beijinhos, então vá, pronto, tudo bem, adeus, adeus, beijinhos, vá, tá bem, sim..”— são capazes de ficar naquilo horas seguidas!
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Será tão difícil tomar a decisão de desligar depois de um honesto “então adeus” ou qualquer outra variante do mesmo género?
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Uma amiga minha esteve quase um mês zangada comigo porque, segundo ela, eu lhe tinha desligado o telefone na cara, coisa que evidentemente ela não admitia a ninguém.
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Tudo porque eu pensava que receber três doses de “beijinhos, beijinhos” era mais do que suficiente para uma despedida calorosa q.b.
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Pelos vistos não era.
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Nunca é.
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Ontem fui embalada ao telemóvel pelas palavras de despedida de uma vizinha o tempo todo que durou a viagem de metro da Baixa-Chiado a S.Sebastião. Sempre que eu me preparava para clicar, lá voltava ela “adeus, até um dia destes, se puder ligo, sim, adeuzinho, boa tarde, adeus, adeus, obrigada, adeus”.
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Tomar decisões , nem que seja a banalidade de desligar um telefone, é trabalho demasiado hercúleo para os nossos pobres ombros.
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Por essas e por outras é que eu venho desde há muito tempo a divulgar por todos os meios ao meu alcance aquela extraordinária canção dos “Deolinda”, chamada “Movimento Perpétuo Associativo” em que, depois de um incitamento revolucionário às massas para que tome uma atitude (“agora sim, temos a força toda/ agora sim, há pernas para andar”) lá vem, em contraponto, o desfiar de todos os habituais impedimentos desta terra do logo-se-vê: “agora não, que é hora do almoço”, “agora não, que me dói a barriga”, “agora não, porque joga o Benfica”, “agora não, porque falta um impresso”, “agora não, que há engarrafamento”, etc, etc, etc…
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Há sempre uma justificação para prolongar todos os “agora não” do nosso fado.
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«JN» de 28 de Março de 2009
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sexta-feira, 27 de março de 2009

Clint Eastwood

Por António-Pedro Vasconcelos

HÁ DUAS ESPÉCIES de criadores: os que se destacam por uma estreia fulgurante na juventude e, depois, se apagam ou abandonam (Rimbaud, Bob Dylan, Godard), e os que fazem pacientemente a sua obra, aprendendo com a vida e com os mestres (Verlaine, Tolstoi, Billy Wilder). Os primeiros, geralmente, esgotam-se cedo, porque não conseguem manter-se à altura das suas promessas. Clint Eastwood (CE) tem a marca dos últimos.

Descoberto como ‘autor’ desde que assinou Imperdoável, CE nunca mais desiludiu, enquanto outros, os da geração do Vietname (Friedkin, Scorsese, Coppola) ficaram pelo caminho, porque, a partir de certa altura, não tinham mais nada a dizer. O que identifica um ‘autor’ é a impressão que temos, ao ver um novo filme, que ele está a construir uma obra em capítulos ou que vai aperfeiçoando a tela e afinando um estilo e um olhar. Os grandes ‘autores’ ajudam-nos a interpretar o mundo à nossa volta e a perceber quem somos, ao mesmo tempo que criam uma galeria de personagens que passam a fazer parte da nossa vida.

No espaço de poucas semanas, pudemos ver os dois últimos filmes de CE: depois de uma das suas obras-primas (A Troca), em que ele era apenas realizador, estreou-se Gran Torino, o filme em que ele faz o que diz ser a sua última aparição. Ao contrário do que acontece com o romance, a pintura ou a música, criações individuais, um filme é um objecto em cuja composição participam vários elementos e onde a capacidade de ‘emendar a mão’ a meio do processo é limitada. Gran Torino tem a marca inconfundível de CE (a descrição da América profunda, uma América que é, ao mesmo tempo, o país da liberdade e da intolerância, um melting pot de raças e culturas e um país com uma forte matriz maniqueísta, a primeira democracia do mundo e um continente marcado pela violência), mas falha aqui e ali: a conversão do personagem de Kowalski, um misantropo racista que descobre a solidariedade e a tolerância, não é consistente; CE dá-nos uma imagem folclórica dos vizinhos hmongs e passa com desenvoltura sobre algumas inverosimilhanças – o gang ataca a casa de Thao e a irmã, quando foi Kowalski que os provocou –, mas não deixa de ser um filme com a impressão digital de CE – uma pedra mais na construção da sua obra.

Truffaut escreveu um dia, e eu assino por baixo, que preferia um filme menos bom de um ‘autor’ a um filme brilhante de um técnico sem alma. Por mais hábil que seja, um filme de Ridley Scott, p. e., nunca nos enriquece tanto como um filme, mesmo imperfeito, de CE. Gran Torino é uma peça mais no retrato que CE vem fazendo do seu país, um país onde ele gostaria que os americanos aprendessem a rever-se como num espelho. Os filmes de CE são pedras que ele vai retirando, uma a uma, de um muro espesso de incompreensão e ódio, para com elas construir uma ponte de compaixão e tolerância.

«Sol» de 21 de Março de 2009

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Envelhecer

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Por Maria Filomena Mónica
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ANTEONTEM, fiz sessenta e cinco anos, ou seja, como se diz no jargão oficial, passei a ser «uma pessoa idosa». Eu teria preferido o termo «velha», mas mesmo este me soa estranho, porque tão pouco me sinto velha no sentido em que a minha bisavó e trisavó o eram. Em Dezembro de 1991, tinha quarenta e oito anos, dei uma entrevista à revista «Marie Claire». Lendo-a hoje o que me surpreende é o optimismo. É verdade que já então descobrira não ser imortal, mas, à época, declarava que ter cinquenta anos era a melhor coisa do mundo.
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A minha posição actual é mais complexa. Se há coisas boas no envelhecimento, as más ultrapassam-nas de longe. Começo pelas primeiras. À cabeça, a evidência de dispor de mais dinheiro, um benefício atenuado pelo facto de o prazer de fazer compras ter desaparecido. Dantes, qualquer roupa me servia. Agora, só encontro trajos desenhados para anoréxicas. Uma vez que é na cintura que a idade mais partidas nos prega, comprar um par de calças tornou-se numa tarefa morosa e aborrecida.
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Depois dos sessenta anos, raro é o dia em que não temos uma maleita. E não estou a falar de doenças graves, mas de pequenas aflições, uma subida da tensão arterial, uma dor de cabeça, uma lombalgia. Outro aspecto sobre qual a idade tem efeitos devastadores diz respeito às tecnologias. Levei anos a aprender a mudar um fusível, a lidar com uma panela de pressão e a programar um micro-ondas. Ainda consegui passar da máquina de escrever para o computador, mas a minha evolução parou aqui. Por saber que o tempo gasto a ler instruções não compensaria a utilidade ou o prazer que deles retirava, já não dei o salto para o telemóvel, muito menos para o iPod. Tendo em conta o que Henry James chamou «a imaginação para o desastre», podia passar horas a enumerar as desgraças que antevejo, mas não quero assustar os leitores. Basta dizer-lhes que o grande pânico é o de ficarmos sozinhos ou, pior ainda, o de passarmos a ser dependentes. Envelhecer é saber isto.
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Novembro de 2007
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Crise nos fogos – e no tempo

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Por Antunes Ferreira
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VOLTARAM OS FOGOS – antes do habitual tempo deles. Tudo está mudado e dizem os meteorogistas que as modificações climatéricas têm muito a ver com isso. Por mim, apesar de umas quantas, poucas, dúvidas, acho que têm razão. Num contexto sazonal cada vez mais incongruente, se o que se convencionou serem as estações do ano está subvertido, os incêndios não podiam escapar. E, pelos vistos, não escapam.
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Era regra – mesmo até no domínio das providências governamentais de combate às chamas – haver uma data para o flagelo motivar homens e meios. Mas o homem põe e Deus dispõe, afirma o Povo, baseado na sábia e milenar ciência do dia-a-dia. Não acredito na actuação calamitosa de uma qualquer divindade. Se é que não sabiam – costumo dizer que fui católico, mas curei-me. Deste modo estou.
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Mal seria para a Humanidade que assim fosse. Catástrofes determinadas do alto – sempre me pergunto por que bulas os deuses, sejam eles quais forem, tenham a cor que tenham, o feitio que desejem, a figuração que melhor achem, vivem sempre nas alturas – podiam ser então perfeitamente evitadas através de método dialogal que tivesse sido inventado para o efeito. Uma espécie de linha vermelha entre o pessoal cá de baixo e o lá de cima.
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Já não falo nas discussões que hoje se tornaram triviais, à volta de uma mesa, as mais das vezes suficientemente grande dada a sua finalidade, para contemplar todas as partes interessadas, sem faltas de uma qualquer delas, ou abandonos despropositados. Umas e outros passíveis de justificação? Não senhor. Isto do astro ser mais ou menos ameaçador e, sobretudo, concretizar volta não volta essas suas más disposições, não comporta atestado médico justificativo. Não deve? Não pode.
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Porém, esta aspiração que, a concretizar-se, deveria constar de apólice se seguro contra todos – absolutamente todos – os riscos, o que faria levantar as gentes, neste planeta cada vez menos azul por mor da poluição, para, em uníssono aplaudir o cometimento. Há um bom par de séculos, houve um tal Senhor Morus que se permitiu escrever umas coisas sobre a Utopia. Por mal dos nossos pecados – os meus devem ser muitíssimos – os homens aferram-se ao livro e foi um ar que deu às boas intenções. E à sua transmudação em realidade.
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Restou-nos, assim, marcar uma data para se preparar o combate aos fogos. É óbvio que, antes disso, tornava-se conveniente avisar os soldados e os restantes habitantes sobre a prevenção. Se esta fosse séria e a sério, muitas perdas em vidas e em fazenda poderiam ser evitadas. Apenas uma anotação, de passagem. Nunca fui grande adepto da expressão, que se tornou calina, soldados da paz. Mas, é apenas um gosto pessoal que me permito. Adiante.
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O busilis da questão é que a data se me afigura cada vez mais incerta e prostituída. A abertura da época dos incêncios não é, nunca foi, nem será, semelhante à época da abertura da caça, perdoe-se-me a comparação torpe. Uma coisa é matar chamas, outra bem diferente é abater animais. Nisto, estamos conversados. Os seguidores do Santo Huberto podem reclamar e apostrofar o escriba que eu sou. Não me preocupo; tenho as costas largas.
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Avaliam-se, até essa dead line, os destacamentos de detecção, os de intervenção, as viaturas, os meios aéreos, as comunicações, os procedimentos das autoridades, a coordenação de tudo isto e o mais necessário. Isto é: avaliavam-se. O clima baralhou tudo, incluindo as deslocações das aves migratórias, vejam lá. As andorinhas, as cegonhas, os gansos e outros pássaros andam... despassarados. Um despautério do meteoro.
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Daí que os fogos cheguem, como já estão a chegar, fora das horas previstas, temporãos e desaustinados. Não deveria ser assim. Regras são regras e por consequência devem ser cumpridas. Só que o tempo está-se nas tintas para elas. Daí o Peneda Gerez, Braga, Viana do Castelo, Viseu, Montalegre, Melgaço, Sever do Vouga e mais uns quantos. Preocupações e perdas, por antecipação. A prevenção, portanto, tem de ser, ela sim, regra de cumprimento, imperativa e indiscutível. Raio de crise – até nas chamas...
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quinta-feira, 26 de março de 2009

A Quadratura do Circo – Impostos indirectos

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Por Pedro Barroso
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EM GUERRA CHAMAM-LHE “danos colaterais”. Em gíria de conversa de café, seriam “acidentes de percurso”. Em amor, talvez fossem “escapadelas parvas”. Em saúde, o médico diria “efeitos secundários”. Se fossem na infância, seriam “palermices sem sentido”. Se ocorressem num percurso, seriam “perdas de tempo”.
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Vou chamar-lhes talvez sociológica, talvez psicológica, talvez politicamente “impostos indirectos”. Ou, em comentário/cognome prosaico e imediatista – “já não há paciência”!
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São, com efeito, marcas indirectas de um viver português sem qualidade, nem civilidade e que, de algum modo, configuram uma boçalidade, um desnorte, um grotesco gritar urgente por mais cidadania, mais eficácia na coisa pública, mais elevação e mais urbanidade no viver português. E que nos fazem perguntar: que povo é este?
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Há coisas inacreditáveis neste quotidiano português que nos recordam, a cada momento, que estamos num país que parou na cultura, na probidade e na honra de si mesmo, nas mais desnorteantes flutuações e oscilações no critério, na arbitrariedade de decisões, na demora instituída na justiça, na perda de sentido estético, na ausência de interpretação inteligente das disposições normativas, na confusão do essencial com o acessório, culminando, até, no mais simples, estúpido e alarve vandalismo.
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De que ninguém nos consegue ressarcir. Imposto indirecto, portanto, por vivermos em Portugal. E do qual, infelizmente, nenhuma Repartição de Finanças nos passa recibo.
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Quando nos demoram uns minutos para fazer uma empresa, e um mês por uma segunda via dum código da segurança social que nos impede qualquer movimento efectivo dessa empresa.
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Quando se põem os professores a preencher 5 páginas de formulários e não sei quantos gráficos para classificar alunos que, afinal, são obrigados a passar de ano, porque essa é a politica governamental.
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Quando nos exasperamos pelo tempo que perdemos para tratar de tudo o que não é construção nem produção, mas apenas perífrases burocráticas de empenamento lógico da nossa vida.
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Quando uma decisão judicial nos dá razão, mas não nos devolve nem o tempo perdido, nem os prejuízos registados.
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Quando nos exigem o recibo antes da cobrança ou pagamento, e nós, humildes, obedecemos… e é se queremos receber.
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Quando todas as construções públicas derrapam no orçamento e no tempo, mas isso é considerado normal.
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Quando a sensação de corrupção se generaliza e vulgariza e encolhemos os ombros porque, afinal, sempre foi assim.
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Quando vivemos na fímbria duma insegurança que não tem caução, nem responsáveis, nem vigilantes e nela morremos ou ficamos estropiados para sempre.
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Quando somos assaltados no carro ou em casa e não nos descobrem mais o que foi roubado, nem se ralam muito em perseguir os assaltantes e sentimos que somos uns chatos que apenas incomodamos as forças da lei porque estamos aflitos.
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Quando habitamos uma casa no campo ou na montanha e nos pegam fogo em redor e perdemos tudo o que amealhamos uma vida.
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Quando nos riscam um carro e já só uma pintura nova poderá resolver o problema. Ou furam um pneu, e idem idem.
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Quando nos perdem um processo, um documento, um requerimento e lamentam, mas nada se pode fazer, senão recomeçar tudo de novo.
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Quando nos marcam uma cirurgia aos olhos para daqui a quatro anos e, entretanto, ou cegamos, ou vamos a Barcelona, se tivermos capital para isso.
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Quando os artistas vão à televisão e actuam à borla, e isso é considerado natural e ainda devem agradecer terem-se lembrado deles, porque isso é “promocional”.
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Quando lidamos com a estupidez embotada de um qualquer decreto camarário que exige e impede ao mesmo tempo uma actividade, obra, acesso, muro, manifestação.
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Quando a publicidade enganosa não tem culpa nem constitui crime.
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Quando a democracia é teoricamente participada, mas ouvimos e vemos sempre a opinião dos mesmos, nos mesmos sítios, defendendo os mesmos interesses, com a cupidez de sempre, lançando as mesmas promessas, para voltarem aos mesmos lugares.
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Desculpem amigos, mas cansei.
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Há milhares de situações que todos viveram já, ou podem facilmente imaginar para completarem este puzzle de enormidades cívicas e políticas, ou meras desgraças do nosso quotidiano viver.
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Pensem só, se puderem, no quanto tempo, riqueza, energia e produção teríamos se não tivéssemos que habitar este país de aflitiva indigência comportamental e maus costumes, onde nem os malandros são inteligentes, nem os políticos são competentes, nem os novos banqueiros são diferentes.
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A alarvidade de um riscador de carros, um incendiário, um professor caramba, um cantor de bacalhau e alho, um vândalo de cemitérios, um atendedor de guichet incompetente, um agente da PSP que apreende livros de arte, uma política da ASAE que quer acabar com a sardinha assada, ou até um ladrão que adormece no local de assalto, fala bem da qualidade da massa cinzenta de um país.
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Fomos invadidos pela estupidez. Pela cupidez mais sórdida e afinal mais parva do planeta na fraude bancária. Pela reacção de desconfiança mais grosseira e tosca face a tudo o que não conhecemos. Até na própria alarvidade e vandalismo os nossos marginais tornaram-se demasiado bimbos para discernirem o acto ilícito útil do inútil.
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E nós, vitimas - que perdemos um dia inteiro para tratar de um papel escusado, ou vemos tudo queimado à nossa volta, ou ficamos a olhar perplexos para o nosso carro completamente riscado por um imbecil troglodita - lá vamos pagando o imposto indirecto imenso de viver aqui.
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Senhores ladrões, marginais, bimbos, tolinhos, incultos, funcionários embirrativos e sacanas em geral do meu país: queiram evoluir! Tenham vergonha da péssima imagem que estão a dar à nossa terra!
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Alves dos Reis, volta, por favor. Tudo perdoado.
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Um outro "falso jogo"

TAL COMO sucede com o jogo-do-galo, este também é um 'falso jogo' pois permite boas hipóteses de o manobrar para ganhar.
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Cada jogador escolhe uma linha, e retira (dessa linha) o número de pauzinhos que quiser.
Na 1ª linha pode retirar 1, 2, 3, 4 ou todos; na 2ª linha pode retirar 1, 2 ou todos; na 3ª linha só pode retirar o que lá está.
Vão jogando alternadamente, e o que for forçado a retirar o último perde.
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Se alguém jogar comigo sendo eu o segundo a jogar, ganho de certeza, a menos que o meu adversário tenha feito, logo de início, uma determinada jogada (e só essa).
Inversamente, se me deixarem ser o primeiro a jogar, eu faço essa jogada e ganho de certeza.
Que jogada-secreta é essa?

quarta-feira, 25 de março de 2009

A pátria cheia de sono

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Por Baptista Bastos
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As obras no hemiciclo da Assembleia da República trouxeram algumas alegrias aos mais cépticos dos cidadãos. Entre campainhas em surdina, computadores e assentos mais confortáveis, a grande novidade consiste na aplicação de uma luz vigilante. Vigilante de quê e de quem?, perguntará, ousadamente curioso, o pio leitor. Da tranquila sonolência que costuma embalar os destemidos deputados, e devolver-lhes sonhos do passado e bem-aventuranças do presente.
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A LUZ É UMA LUZ CIVILIZADA, embora crua e inclemente. Como as televisões e as imagens da imprensa no-lo informam, os encantadores parlamentares, digerem, dificultosamente, os almoços e deixam-se levar nos braços de Morfeu. É o momento da calma. Ninguém ouve ninguém, e ninguém está interessado em ouvir tristes realidades e objurgatórias incutidas e já conhecidas no breviário do Parlamento. A luz, a nova luz, acaso quiséssemos utilizar uma metáfora deselegante e fácil, constrange os representantes da nação a não pregarem olho. Nem um módico bocejo. Podem não prestar a mais escassa atenção ao que dizem os outros; mas salvam as aparências: estão de pálpebra aberta. Se cederem à soneira e o olho se lhes cerrar, logo a luz, ofensiva e retumbante, ataca os prevaricadores.
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Enquanto estas nobres decisões vão fazer caminho, e a sesta dos deputados está em perigo iminente, vem o Público e assevera: "Portugueses são os que dormem pior por causa da crise." Infere-se, pois, da severa notícia, que a crise não afecta, minimamente, os parlamentares, e, salvo o devido respeito, a soneca (agora ameaçada) era a doce compensação da crudelíssima chatice de terem de ali estar - investidos da espantosa glória de representar um povo cheio de sono. Cheio de sono e sem dinheiro para comprar sedativos.
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"Gestores" fazem bicha nos consultórios dos psiquiatras e dos psicólogos clínicos, para ser atendidos com a urgência que as suas angústias requerem e justificam. Um país a cair de sono e os seus dirigentes empresariais apossados de sombrios cismas. A súbita fragilidade mental dos "gestores" advém do facto de poderem ver os seus vencimentos drasticamente reduzidos? Não creio que se tivessem abandonado a tão embaraçosa emoção. Um "gestor" talvez veja, momentaneamente, a sua factura limitada. Mas tem sempre um emprego à sua espera. Enche os psiquiatras porque vive a imitação de uma importância que na realidade não tem. Vive por "objectivos"; pagam-lhe para os atingir: em troca cede à desumanização e a um cinismo que desconhece o facto moral. Como se tem visto.

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«DN» de 25 de Março de 2009

NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

terça-feira, 24 de março de 2009

Welcome Mr. Collins!

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Por Nuno Crato
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DOIS ACONTECIMENTOS encheram-me o dia. Um deles foi um ensaio de Harry Collins na revista “Nature”. O outro foi um anúncio a um simpósio internacional sobre o processo de escrutínio de artigos nas revistas científicas.
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Harry Collins foi uma das figuras mais proeminentes de uma vaga de filósofos e sociólogos pós-modernos que, nos anos 60, criticaram a “arrogância dos cientistas” e defenderam que a ciência era apenas uma “construção social” sujeita, como outra qualquer, ao erro e às limitações dos seres que a constróem, os humanos.
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A “desconstrução” do trabalho dos cientistas, procurando mostrar que as suas limitações, invejas e lutas intestinas determinavam as conclusões científicas, tornou-se uma moda. Gerações de sociólogos e educadores foram formados na ideia de que não há verdade em ciência e que as teorias científicas são apenas uma “narrativa”.
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É claro que se pode ter uma fé exagerada na objectividade da ciência. E sabe-se que muitos textos apologéticos da aventura científica simplificam o processo de descoberta, fazendo-o parecer infalível. Mas, mesmo sendo a ciência uma construção humana, ela tem um método de trabalho e um objecto que não lhe dão a mesma liberdade que a literatura ou a mitologia: a ciência choca-se com um mundo natural que não pode contornar. A mecânica de Aristóteles não consegue construir aeroplanos, mas a mecânica de Newton consegue colocar satélites em órbita.
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Harry Collins era um dos que discordavam desta posição. Em 1981 afirmava, por exemplo, que “o mundo natural desempenha um papel pequeno ou mesmo nulo na construção do conhecimento científico” (“Social Studies of Science” 3, p. 3). A ciência pouco mais seria do que uma narrativa que importaria “desconstruir”.
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Os tempos mudaram e é uma surpresa ler o seu novo ensaio na “Nature” (458, 30–31). Diz que o pós-modernismo foi longe demais e que a ideia de “uma sociedade que rejeita inteiramente os valores da ciência e do conhecimento especializado é uma ideia demasiado horrível”. Admite que os anti-pós-modernos, a que chama “guerreiros pela ciência”, podem ter tido razão. Acrescenta que os sociólogos da ciência criaram um mito muito negativo, o de que os cientistas não passam de seres “maquiavélicos mancomunados com o poder”. Finalmente, diz que é preciso dar ouvidos à ciência nas decisões sociais, pois é a ciência que tem as observações e as teorias mais bem informadas.
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Só tive pena que Collins não dissesse explicitamente: “desculpem-me, eu estava errado”. Mas disse-o implicitamente.
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O segundo acontecimento que me encheu o dia foi um anúncio para um simpósio em Orlando, na Flórida (KGCM2009), sobre o processo de publicação nas revistas científicas. O evento anuncia-se como uma discussão crítica do sistema de revisão pelos pares (“peer review”). Diz-se, no anúncio, que o “peer review” adoptado pelas revistas científicas é “uma charada não validada”, conduzindo a uma “escolha pouco melhor que a de uma roleta”.
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Este processo de validação dos artigos tem certamente defeitos, mas é o melhor que até hoje se construiu para minorar a propagação de erros. É um processo que está na base da credibilidade das publicações científicas.
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Mais abaixo, no mesmo anúncio, explica-se que todos os trabalhos submetidos para apresentação no simpósio, e subsequente publicação nas actas, serão seleccionados por um sistema rigoroso de... “peer review”.
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Welcome Mr. Collins!

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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 21 de Março de 2009
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segunda-feira, 23 de março de 2009

Problema dos casais - Resolução algébrica

Para ver e discutir o problema, ver [aqui]
(Clicar na imagem para a ampliar)

Mortalidade Rodoviária: A Magia dos Números

Por Manuel João Ramos
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COMUNICADO DA ACA-M

LISBOA, 2006:

A 27 de Abril, uma menina de nove anos foi atropelada por um taxista quando atravessava a Av. de Ceuta. Foi projectada contra um pilarete e teve morte imediata.

A 12 de Novembro, um casal arrumava a bagageira do seu carro na Rua Cidade da Beira, Olivais Sul, quando um veículo comercial os atingiu mortalmente, perante os olhares das suas duas filhas, que escaparam sem ferimentos.

Um e outro caso foram amplamente noticiados pela comunicação social.

O atropelamento da vítima da Av. Ceuta não surge, até hoje, na Base de Dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR). Por seu lado, as duas vítimas dos Olivais só foram incluídas nesta Base de Dados em 2008. Nenhuma destas três vítimas da estrada foi, portanto, contabilizada nas estatísticas referentes ao ano de 2006.

Estas omissões não têm nada que ver com o problema grave que é a não inclusão nas estatísticas oficiais das vítimas da estrada que não morrem imediatamente ou nas primeiras 24 horas, vindo a falecer posteriormente em consequência dos ferimentos recebidos.

Não têm também nada que ver com as variadas situações em que vítimas mortais surgem nas estatísticas como feridos graves porque os socorristas não estão habilitados a fazer declarações de óbito, porque os hospitais não estão obrigados a informar as polícias ou a ANSR, e porque os agentes policiais não vão aos hospitais verificar o óbito após a retirada do corpo após o acidente de viação.

Os casos relatados são exemplos – gritantes porque muito mediatizados, e misteriosos porque nunca explicados ao público – de filtragens, por parte da ANSR (e da sua antecessora, a DGV) das bases de dados policiais.

Temos portanto três tipos de omissão nas estatísticas da mortalidade rodoviária: 1) decorrentes da não contabilização dos mortos a trinta dias, ao contrário do que acontece no resto da Europa; 2) não verificação de óbitos por ausência de médico no local e por não confirmação posterior; 3) falta de confronto, ou confronto tardio, entre diferentes bases de dados.

Quando recebeu em 2008 o Prémio europeu de segurança rodoviária, o governo português tinha pleno conhecimento de que os números que tem apresentado ao país e ao mundo são errados. Aceitou ilegitimamente o prémio porque privilegia a propaganda do anúncio da redução contínua da sinistralidade rodoviária ao confronto com a realidade.

Segundo o Instituto de Medicina Legal, o número de vítimas mortais da estrada é 40% superior às estatísticas apresentadas pelo governo. O não reconhecimento público deste morticínio só aproveita ao MAI, que assim não tem de se maçar a resolvê-lo. Os custos, esses, são pagos pelas famílias das vítimas e por todos nós, contribuintes e concidadãos.

O Governo prometeu que iria passar a contabilizar as vítimas mortais em 2010. Esperemos que sim. Entretanto, não devemos esquecer o seguinte:

Em 2001, o governo português, em vez de começar a fazer nessa altura o registo das vítimas a trinta dias, optou por alterar a forma de cálculo da taxa de agravamento para efeitos de comparação pelo Eurostat, reduzindo, através desta manobra de secretaria, o número calculado destas vítimas para metade (de 1.30 para 1.14). Mas a melhoria do socorro às vítimas da estrada tem levado a que a estabilização dos feridos muito graves prolongue os seus sinais vitais para além da chegada ao hospital, fazendo que o número de vítimas a trinta dias tenha aumentado em vez de diminuir:

- segundo o Instituto de Medicina Legal, estas representam 1.40 a nível nacional;

- segundo a Brigada de Investigação Criminal da PSP, estas representam 1.70 em Lisboa (compreende-se: o socorro é, claro, mais eficiente na capital do que em muitas zonas do país).

Prova, afinal, que não é boa ideia brincar à magia com os números da sinistralidade rodoviária.

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domingo, 22 de março de 2009

Dito & Feito

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Por José António Lima
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JOSÉ SÓCRATES reagiu com pouca ponderação e ainda menor inteligência à manifestação da CGTP da passada semana. «O número não me impressiona», disparou o primeiro-ministro quando confrontado com a mobilização de 200 mil manifestantes nas ruas de Lisboa. Ora, 200 mil é muito manifestante (e, pior, muito eleitor). É um número que não só impressiona como causa, até, alguma estranheza. Quem os contou? Com 20 em cada fileira, contabilizaram 10 mil fileiras, uma a uma? Foi apenas a CGTP que os contou? E os dados da organização passam a verdade oficial em todos os jornais e televisões? E como estavam mais do que os 120 mil professores de Novembro se pareciam menos? Mistérios.
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Sócrates, no entanto, não se prendeu com os números, pois estava mais interessado em lamentar que estas manifestações «sejam sempre instrumentalizadas pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda». Não está mal como argumento para quem, logo a seguir, foi celebrar as virtudes do PS e do seu Governo com sindicalistas da UGT...
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Mas a reacção sanguínea e imponderada do irritadiço José Sócrates à manifestação (que fizera dele o principal alvo, em coloridos cartazes e divertidas caricaturas) foi quanto bastou para suscitar reprimendas de peso.
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Manuel Alegre veio exigir «coragem para se saber de que lado se está do ponto de vista das lutas sociais», «coragem para corrigir políticas e comportamentos que contradizem o que foi prometido».
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Mário Soares não se coibiu de constatar que a manifestação da CGTP «impressionou pelo seu volume e pela indignação que foi demonstrada pelas pessoas, foi um sinal de grande descontentamento». E deixou um aviso a Sócrates: «Faria bem em dialogar e ouvir, em vez de entrar em polémicas sobre uma manifestação».
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Alegre e Soares – a mesma luta. Quem diria? António Costa preconizava, há dias, como estratégia para as legislativas, que «o ideal era uma coligação entre o PS e o Manuel Alegre». O melhor é começarem já a pensar em mais outra coligação. Com Mário Soares. Será uma espécie de reedição da velha Frente Popular, à moda do PS.

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«Sol» de 21 de Março de 2009

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No palco da cidade

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Por Nuno Brederode Santos
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TRÊS ELEIÇÕES de dimensão nacional: eis o que nos espera para o ano em curso.
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Num primeiro relance, o que é, logo à partida, preocupante são uns cadernos eleitorais, ao que se lê, enxameados de mortos e ausentes e, por isso, geradores de taxas de abstenção certamente enganosas e provavelmente alarmistas, que ocultam a exacta medida do fenómeno. Nos processos mais recentes e já com os resultados oficialmente proclamados, todos pudemos assistir à vozearia dos observadores, mas a coisa não durou mais do que o decoro exigia. Intenções dos vencedores, estados de alma dos vencidos, tácticas de sobrevivência e novidades nas políticas, nos cargos e nas nomeações, tudo isto fez o ruído maior que abafou o eco dos queixumes em torno da abstenção. Aqui reside – se é que não jaz – o principal. Porque o resto, que desespera uns tantos e galvaniza outros, apenas exprime a vontade popular. São os resultados e é para o seu apuramento que as eleições se fazem. Os ainda muitos que, como eu, não tiveram eleições livres até (praticamente) aos trinta anos, dificilmente se cansam do direito de votar – desde que já como direito o vissem no tempo em que não podiam exercê-lo. Confiemos que, não por essa experiência passada, mas por zelo, interesse e aposta no futuro, os mais jovens procedam igualmente. No que a mim envolve – porque não quero envolver ninguém nestas frivolidades que amamento - até diria que não aceito ser privado do lado vivaz e lúdico que as eleições também comportam e que os trinta e três anos decorridos não fizeram, nem farão, adormecer.
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Mas esta bem-aventurança não vem só. Traz consigo ónus e espinhos que já todos vamos conhecendo. Três campanhas que antevemos ruidosas e obsessivamente mediatizadas, apostadas em manobras ínvias (de diversão ou dilatórias), palavras irrevogáveis e gestos rancorosos, farão o caldo de cultura para que se abra a úlcera no mais pacato e fleumático cidadão (ele próprio já chocalhado por convicções, anseios e interesses, cuja conciliação raramente é linear). Sirvam de exemplo as já marcadas europeias. Os exércitos, de esquerda e de direita, a que eufemisticamente chamamos eurocépticos – e que mais necessitariam da campanha para explicar a Europa por que querem que nos batamos em Bruxelas – fazem abertamente a pedagogia segundo a qual a utilidade dessas eleições é protestar contra as políticas internas e prefaciar vitórias nas que se seguem. Os exércitos ditos pró-europeus estão cem por cento empenhados numa estimulante e mútua carnificina, o que obviamente também só por razões internas se explica. Enfim, a Europa propriamente dita – seja ela projecto, contingência ou circunstância – será, provavelmente e se a tanto lhe chegar a sorte, um pretexto. Não para comícios, que até são um meio digno que rareia, mas para a arruaça comicieira. E para uns ajustes de contas de viela escura, com navalhas a calar razões. Mas como nada disto é nosso apanágio - se é que há um apanágio nosso - sacudam-se ombros e destrave-se o calendário.
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De caminho, tocava a fanfarra se resolvêssemos o problema do Provedor de Justiça, um cargo honrado por quantos nele se sentaram. Nascimento Rodrigues incluído. Pena foi o desvario, de atitude e linguagem, com que reagiu ao inexplicável atraso da sua substituição. Sobre isso, mantenho o que já aqui escrevi. É compreensível que haja consultas ou contactos informais entre partidos que assegurem a maioria qualificada necessária. E é óbvio que um deles é sempre o partido que governa, mesmo se o cargo pressupõe independência até do órgão que o elege. Mas este expediente prático, que visa também proteger o elegendo de uma desnecessária exposição pública, não é mais do que isso: um expediente. Ao primeiro sinal de dificuldade consistente, deve a questão ser colocada no seu terreno, que é a Assembleia, onde a Constituição não contempla titulares e reservistas. E onde uma hipotética pretensão do partido no poder em impor um comissário (que não vi, em nenhum dos nomes divulgados) terá de fazer-se à vista da cidade. Mas onde também nenhum partido de oposição poderá reclamar um especial estatuto, majorador da medida dos seus votos. O recato pode ser bom conselheiro, o sigilo raramente o é. E quando o recato falha, mais vale passar logo ao palco público, onde ninguém escapa às suas responsabilidades, do que insistir nas sombras. Que tapam a luz, não a geram.

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«DN» de 22 de Março de 2009.

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sábado, 21 de março de 2009

O que a televisão tem para oferecer

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Por Maria Filomena Mónica
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HÁ QUINZE ANOS os portugueses passaram a usufruir de canais privados de televisão. Até ao dia 6 de Outubro de 1992 apenas existia a RTP, cujo dono era o Estado. Antes de eu prosseguir, vale a pena recordar o que nos era oferecido: telejornais politicamente controlados, séries medíocres e programas pseudo-intelectuais. De longe em longe, tínhamos acesso a um produto de qualidade, comprado, por acaso, numa dessas feiras onde os altos funcionários da RTP gostam de se pavonear.
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Foi então que surgiu a SIC – com um estilo novo e vibrante – e a TVI – oscilando entre o báculo do bispo e a privada ganância. A RTP tentou reagir, produzindo concursos imbecis, a TVI abraçou-se ao «Big Brother» e a SIC perdeu o vigor inicial. Hoje, temos quatro canais, lutando igualmente por audiências, o que acaba por os tornar indiferenciados. Por melhor que seja uma ideia, nenhum se arrisca a colocar no ar um programa se não tiver a certeza de que lhe assegura o máximo de lucro. E, no entanto, se me perguntarem se critico o Estado por ter aberto o espaço hertziano à iniciativa privada, a minha resposta é negativa. Considero que tudo é melhor do que uma televisão controlada pelo poder político.
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Não há contudo país na Europa em que o desprezo pelos telespectadores seja tão claro. À degradação moral, acresce a falta de cumprimento das leis sobre a publicidade. No último mês de Agosto [2007], a RTP, a SIC e a TVI emitiram um conjunto de 68.646 peças publicitárias, o que equivale a uma média diária de 4 horas por canal, praticamente o tempo médio (3 horas e meia) que os portugueses dedicam por dia à televisão. Num país tradicionalmente miserável, a televisão transformou-se no refúgio de quem, nos tempos livres, não tem outra solução que não seja a de permanecer em casa. É por isso que aquilo que exibe – telenovelas mais publicidade mais concursos - me escandaliza. Nem todos podem, como eu, desligar o aparelho e encomendar DVD's à Amazon. Aliás, não é legítimo que o Estado me obrigue a pagar um bem que não uso. Um dia destes, ainda o ponho em tribunal.

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Outubro de 2007

A tuberculose continua a matar

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Por Antunes Ferreira
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EM 2006, A TUBERCULOSE matou 4.500 pessoas por dia. Foi considerada uma ameaça mundial. Ou seja, um milhão e quinhentas mil vidas humanas ceifadas só nesse ano. Os números são assustadores. Quando se pensava que 2010 seria o canto de finados para a doença, ela voltou a atacar. Em 1993, face ao recrudescimento acentuado, a OMS lançou um brado de alerta. Mas, desde então para cá, as coisas não têm melhorado. O famigerado bacilo de Koch não estava a caminho da derrota, bem pelo contrário. O Nobel da Medicina atribuído em 1905 a Robert Koch fora inteiramente justificado. Mas insuficiente para travar a criminosa acção da bactéria.
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Jorge Sampaio, que é o Enviado Especial das Nações Unidas para a Luta contra a Tuberculose, veio a público alertar para este gravíssimo problema. O antigo Presidente da República advogou a imperiosa necessidade da concertação de esforços a nível mundial na investigação e desenvolvimento do flagelo, sem o que nenhum país terá as ferramentas adequadas para combater uma epidemia de tuberculose mais fatal caso haja uma rápida propagação das variedades multirresistente ou ultra-resistente.
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Ora – e é Sampaio a sublinhá-lo - a doença “alimenta-se da pobreza e da desigualdade”. Por isso a sua incidência está a piorar à “medida que a complacência e a falta de financiamento alimentam a doença e a difusão da resistência aos medicamentos”. Mas, pior: a tuberculose multirresistente, uma forma que resiste aos dois principais medicamentos anti-bacilares, “está a sofrer um agravamento e surgem todos os anos cerca de 500 mil novos casos multirresistentes”. Por tudo isso, “não é possível ficarmos de braços cruzados”, é preciso sensibilizar opiniões públicas para que “exerçam pressão junto dos decisores em matéria de saúde pública”.
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Longe pareciam ir os tempos em que a elegante prostituta Marguerite Gautier se deixou conquistar pelo amor de Armand Duval, um ainda jovem estudante de Direito. Alexandre Dumas Filho criou os dois como protagonistas da sua “A Dama das Camélias”. É mais do que sabida a história trágica e romântica. A cortesã afastou-se do seu apaixonado, a instâncias do pai deste. Armand vingar-se-ia humilhando-o publicamente. Tuberculosa e endividada, Marguerite foi abandonada pelos amantes e falsos amigos. Somente depois da sua morte, Armand descobriu o sacrifício que ela fizera.
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De resto, não foi apenas Dumas que aproveitou o tema da tísica, por vezes galopante. O Romantismo utilizou-a como estandarte. Nessa altura, ficaria conhecida como 0 “mal do século”. Nomes como Lorde Byron, Edgard Allan Pöe, Sylvia Plath, ou Thomas Mann enfileiram na galeria, a que pertenceu também o brasileiro Manuel Bandeira e, até e mais recentemente, a nossa Agustina Bessa-Luis. E não nos podemos esquecer da Mimi, heroína da “Bohème” da autoria de Puccini, ou da Violeta da “Traviata” de Verdi, aliás uma ópera que tem por base o romance de Dumas Filho. Era, também, a “doença do amor”.
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Esses tempos já deram o que tinham a dar. Tudo isto ficou para a História, desde as obras literárias até às musicais. Hoje, as coisas são muito mais preocupantes. O bacilo cultiva-se e desenvolve-se nas zonas e regiões mais degradadas, em que a higiene e a pobreza são palavras duras, mas que, na generalidade infeliz, são, no mínimo, ignoradas. É na estrumeira da vida que a “peste branca” estabelece o seu reino.
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A “doença do peito” ou, ainda, a “tísica pulmonar” (denominações populares) que, como disse e é do conhecimento de muito boa gente, tem vindo a proliferar de forma altamente preocupante. Os esforços para que seja erradicada parecem, cada dia que passa, mais incapazes de travar essa sua marcha impressionante. E, evidentemente, cada vez mais perigosa. Pela infecção, mas também pela proliferação e pela disseminação.
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Neste infeliz Mundo que é o nosso, as preocupações da Humanidade que somos todos nós – e fomos, e seremos – estão mais voltadas para assuntos com maior publicidade ou com exposição pública mais gritante. Discutimos os mísseis nucleares, os terrorismos sob a invocação de um deus qualquer, os homens-bomba e sabe-se lá o que mais – o que é bom - mas esquecemo-nos dos que morrem quotidianamente com os pulmões desfeitos.
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Será este o tempo de travar essas correrias atrás dos escândalos sexuais, dos crimes de colarinho branco, da corrupção, da ignomínia? Pois por certo que não. Nunca. A dignidade humana impõe a todos nós que o façamos, com maior ou menor empenhamento, mas dizendo presente. É o mínimo que, enquanto seres humanos, nos compete – e que temos de cumprir, sob pena de nos demitirmos de homens.
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Na verdade, tem de ser, sem margem para dúvidas, o tempo de cuidar de flagelos doentios. O cancro, a Sida, a hepatite B… e a tuberculose. Esta nossa sociedade, já de si infectada, tem de levar avante um combate contra essas verdadeiras maldições para evitar que elas proliferem. E, um destes dias, acabem connosco. O que, se calhar, até merecemos. Infelizmente.
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sexta-feira, 20 de março de 2009

Os infiltrados no PS

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Por Baptista-Bastos
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COM A GRAVIDADE que rodeia as terríveis acusações, o dr. Strecht Monteiro, militante socialista e ex-deputado, declarou, há dias, arquejante de indignação, que "há trânsfugas de Direita infiltrados no PS." Estremeceram os que o ouviram. Havia leves suspeitas, sussurros remotos, boatos inquietantes sobre o assunto. Embora parecesse pueril, o zunzum carecia de refutação. Mas o dr. Strecht limitou-se a repetir o que se escuta, sem omissões ou rasuras, mas, também, sem revelar nomes.
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"Não serão alguns traidores de Direita que querem levar o PS para a Direita? Será que há um movimento orientado, uma estratégia organizada por alguém?", perguntou, num raciocínio aterrador. "Pois, não sei", respondeu a si próprio.
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Olharam-se, uns aos outros, espavoridos de suspeita, os que escutavam a objurgatória do dr. Strecht. Qual daqueles seria infiltrado? A pureza ideológica, o método de pensamento, as companhias com que este e aquele andavam, que livros liam, se é que liam, quantas vezes faltavam às magnas reuniões dos núcleos, se pagavam ou não as quotas - eis o varejo a que todos procederam, sem nunca deixar de examinar, cuidadosamente, o camarada do lado e mesmo o outro.
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A atmosfera ficou mais densa e tornou-se quase irrespirável quando o dr. Strecht, incansável, sublinhou: "Se o PS deixar de ser poder, quero ver onde pararão os trânsfugas de Direita que estão infiltrados no PS." Houve um longo momento de silêncio. Respirações opressas, olhares de soslaio, inquietação contida para não dar muito nas vistas. Alguém, acaso para amenizar, recitou, baixinho, o poeta: "Entre os portugueses traidores houve às vezes." Ninguém ficou descansado, porque, na verdade, não se tinha em conta os factos. Todavia, o dr. Strecht suavizou a acusação: "Revejo-me no PS e lutarei para que se pugne pela sua matriz ideológica. Quem está mal é que tem de sair."
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O orador, vereador sem pelouro na Câmara de Santa Maria da Feira, e, ao que me dizem, homem de bem e socialista impoluto, fez estas afirmações num debate sobre "Crise e Serviços Públicos" promovido pelo Bloco de Esquerda. Nada de mal. As pessoas devem reflectir e agir na sua própria história, e não será ignorando as derivas do PS que se conquistará a moral de que os socialistas parecem necessitar.
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A teoria dos "infiltrados" não é nova. António Guterres foi disso acusado. Contava-se uma história, logo a seguir a Abril, na qual os protagonistas eram Marcelo Rebelo de Sousa, Adelino Amaro da Costa e o próprio Guterres, católicos com o mesmo confessor. O primeiro disse: "Vou para o PPD." O segundo: "Vou fundar o CDS." e Guterres: "Que maçada! Lá terei de ir para o PS."
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Mas é claro que nem tudo se resume à negação e ao absurdo.
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«DN» de 18 de Março de 2009
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quinta-feira, 19 de março de 2009

O Limite da Despesa

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Por JL Saldanha Sanches
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PAGAR A TEMPO E HORAS aos fornecedores do sector público – em vez do atraso de meses ou de anos – deveria ser a regra nas despesas públicas. A regra é o atraso. Agora o Estado está a pagar. O PSD exigia-o e muitas empresas não podiam suportar mais atrasos.
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Há um mas: esses pagamentos estão a demolir a única e perversa barreira que limitava a despesa pública. A disciplina financeira criada pelo desarranjo público.
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O atraso crónico dos pagamentos do Estado, municípios, regiões e actividades correlativas não é uma doença: era um sintoma e um limite. Tal como o desconforto físico limita os excessos, os atrasos no pagamento eram um sinal de alarme para o excesso da despesa sem previsão orçamental e o limite para essa mesma despesa. Já sabemos que o Estado paga sempre. Mas quando os atrasos se tornavam incomportáveis as empresas deixavam de fornecer.
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A política de pagar a tempo que o PSD reclamava e que o Governo acabou por adoptar está a acabar com esse limite: os municípios pedem um empréstimo especial para pagar as dívidas e pagam-nas. Libertos do fardo, voltam a gastar mais, a contrair novas dívidas e pedem outro empréstimo.
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Se olharmos para a conjuntura, é um mal menor. As dívidas do Estado podiam ser um golpe final em muitas empresas perto da ruína. Os pagamentos a milhares de fornecedores numa fase em que não há crédito são um estímulo de que economia bem precisa. O que não sabemos é de quanto vai ser a conta: quando ela chegar, porque acabará por chegar.
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Tal como não sabemos quando é que Bruxelas se vai voltar a preocupar com o défice público português e quando é que a banca internacional (o que dela resta) se vai voltar a preocupar com o défice da nossa balança de pagamentos. Não sabemos, nem podemos saber, porque se a nossa situação é muito má, a de outros países da EU é desesperada.
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Vista de Bruxelas as coisas parecem menos más e os vícios permanentes – o tal excesso de despesa da qual a dívida da administrativa é o sintoma – têm o ar de qualidades para os tempos de hoje. São uma espécie de estabilizadores automáticos dirigidos directamente às empresas em vez de passarem pela manutenção do rendimento disponível dos consumidores. Mas são uma zona incontrolável da despesa pública. À dívida do Estado central junta-se a dívida dos sectores periféricos mais a dívida oculta, mas presente, das empresas públicas nacionais e municipais.
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Os devoradores tradicionais dos orçamentos viram-se livres do estado de necessidade financeiro criado pelo esgotamento dos recursos e pelo aumento dos prazos de pagamento. O financiamento extraordinário do Estado permite pagar dívidas, mas as dívidas vão voltar a surgir porque o pagamento das antigas permite a contracção de novas.
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Em especial numa altura em que a única fonte de riqueza à vista é o Estado.
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Adenda: numa fase em que não crédito para ninguém, quem continua a desafiar a lei da gravidade financeira são os clubes de futebol. Os principais clubes, com o Benfica à frente, continuam a ter défices e a obter crédito para financiar os défices.

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«Expresso» de 14 de Março de 2009 -http://www.saldanhasanches.pt/
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terça-feira, 17 de março de 2009

Praticando! Praticando! Praticando!

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Por Nuno Crato
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HÁ EM NOVA IORQUE muitos locais famosos dedicados à música. Mas não há nenhum tão venerado e vetusto como Carnegie Hall. Construído em 1891, nele residiram algumas das companhias e orquestras mais famosas do mundo. Tocar nessa imponente sala de espectáculos é, ainda hoje, uma ambição de muitos grandes músicos.
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Conta-se que, um dia, quando Arthur Rubinstein se passeava pela Sétima Avenida, nas redondezas do teatro, foi abordado por um transeunte perdido, que lhe perguntou como se ia para Carnegie Hall. O grande pianista terá respondido “Praticando! Praticando! Praticando!”.
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O dito ficou famoso e tornou-se uma piada predilecta de alguns educadores norte-americanos. Apesar de desaconselhada por algumas correntes pedagógicas hoje antiquadas, que consideram a prática e a memorização como contraproducente, a importância da repetição organizada tem sido reforçada por muitos estudos modernos sobre o funcionamento da mente humana. Henry L. Roediger, um dos psicólogos norte-americanos que mais se têm dedicado à investigação do sucesso das práticas de estudo, esteve esta semana em Portugal e proferiu uma conferência sobre o tema na Universidade de Lisboa.
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Roediger reconhece a importância da prática de memorização repetida. Tem feito estudos experimentais sobre diferentes maneiras de memorizar o vocabulário de uma língua estrangeira e sobre temas de estudo mais complexos em sala de aula.
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Uma das conclusões mais interessantes dos seus estudos é que os conhecimentos ganham em ser recapitulados e reavivados, mesmo quando estão já memorizados ou assimilados. A ideia muito comum de que, uma vez estudados uns assuntos, o estudante deve progredir para outros, sem revisitar as matérias aprendidas, parece ser errónea.
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Alguns psicólogos, nomeadamente David Geary, que também esteve entre nós há algum tempo, corroboram esta ideia e falam em “sobreaprender”, dizendo que os estudantes não devem parar depois de terem assimilado o estritamente necessário de determinada matéria, mas devem prosseguir, estudando mais, de forma a reterem o máximo da própria matéria original.
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Outros psicólogos e estudiosos da cognição, como Nathaniel Lasry (“Science” 320, p. 1720), interpretam estes resultados no quadro das descobertas recentes sobre o carácter activo e adaptável (“labile”) da memória. Ao contrário do que por vezes se pensa, cada vez que um facto é relembrado, a memória transforma-se e reforça-se, recriando-se em novas versões.
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Mas a revelação mais interessante dos estudos apresentados por Roediger é o papel dos testes. Sendo importante que os estudantes sejam capazes de ter uma noção do seu estado de aprendizagem, parece que essa noção é geralmente limitada e dificilmente leva a que os estudantes reforcem o estudo no que mais necessitam.
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A avaliação organizada parece ser um factor determinante na consolidação dos conhecimentos. É importante que o estudante seja avaliado de forma repetida e espaçada. Ao testar os conhecimentos, procede-se a uma recuperação activa da memória, que reforça os conhecimentos. Como diz Roediger “o factor decisivo para a aprendizagem de longo prazo é a introdução de testes” (“Science” 319, p. 967, 2008).
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Estes trabalhos científicos fornecem novos argumentos aos modernos estudiosos de pedagogia. Reforçam o papel da instrução dirigida e põem em causa as velhas recomendações românticas de um estudo puramente autónomo, conduzido ao ritmo do aluno.

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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 14 de Março de 2009

segunda-feira, 16 de março de 2009

889 gramas
Serão premiados os 4 leitores que mais se tenham aproximado da resposta certa e haverá um 5.º prémio, especial (um livrito da colecção Vampiro), para o que mais se tenha afastado dela!
Assim que os 5 nomes forem indicados (em actualização ao post), os vencedores terão 48h para contactarem sorumbatico@iol.pt, começando logo por indicar as suas moradas.

Dito & Feito

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Por José António Lima
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COMO É QUE Manuel Alegre se pode sentir de bem com a sua consciência ao manter-se num partido com o qual está em frontal divergência, exigindo «a revogação do Código laboral, a suspensão do modelo de avaliação dos professores, a abolição das taxas moderadoras, serviços públicos sem a lógica de parcerias público-privadas»? Afinal, o que lhe resta como base de acordo com o Governo e o PS: a distribuição de ‘Magalhães’ às criancinhas, os casamentos de homossexuais, a cor da bandeira do partido?
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E como é que Alegre pode afirmar que «não ia entrar na mercearia de disputar» o lugar de presidente do Parlamento a Jaime Gama, mas se dispõe a que um entendimento com Sócrates se traduza na colocação de uns tantos deputados alegristas em lugares elegíveis nas listas do PS? «Em reconhecimento do espaço próprio que eu represento», explica, para justificar essas contas de mercearia.
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COMO é que o PS diz, pela autorizada voz de António Costa, que o Bloco de Esquerda, força política com a qual Manuel Alegre tem andado festivamente de braço dado em fóruns e outras tertúlias anti-Governo, «é um partido oportunista que parasita a desgraça alheia e incapaz de assumir responsabilidades» e, ao mesmo tempo e pela voz do mesmo António Costa, nos quer convencer que «a casa de Manuel Alegre, a família dele é a família do PS»? De que lado ficam, então, os parasitas?
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E como é que José Sócrates estende a mão para um entendimento nas listas do PS a alguém que, a cada entrevista, arrasa todas as bandeiras políticas e, uma a uma, as reformas do seu Governo? Alguém que anda em alegre campanha com «oportunistas» e «parasitas da desgraça»?
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ALEGRE precisa do PS de Sócrates para o seu desígnio de ter uma votação histórica, como candidato unificador de toda a esquerda, nas presidenciais de 2011. E Sócrates precisa de Alegre para evitar um rombo eleitoral ainda maior à esquerda e manter acesa a trémula chama de uma nova maioria absoluta.
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Mas, ao ponto a que o confronto e as divergências chegaram, a insinuada promessa de uma união de facto entre ambos tresanda a hipocrisia política. E a uma negociata partidária sem princípios nem valores. Que não dignifica Alegre. Nem Sócrates. Nem o PS.
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«Sol» de 14 de Março de 2009
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.

domingo, 15 de março de 2009

Mistérios de Lisboa

A FOTO DE CIMA mostra dois veículos em infracção na esquina da Av. de Roma com a R. Frei Amador Arrais.
A foto de baixo mostra um funcionário da EMEL a "dar atenção" a um deles.
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A pergunta que toda a gente, por aquelas bandas, faz é a seguinte:
Porque é que os carros, carrinhas e camionetas (que, nessa esquina, estacionam em cima do passeio - chegando a estar lá às meias-dúzias de cada vez! ) nunca-por-nunca são verdadeiramente incomodados - nem pela EMEL, nem pela Polícia Municipal nem pela DT da PSP?!
Ou, sendo mais explícito: já alguém viu algum deles a ser rebocado ou sequer bloqueado?!
Se um dia alguém vir, está de parabéns: como o local é um dos abrangidos pelos fabulosos Prémios António Costa, tire uma foto da cena, e mande-a de imediato para medinaribeiro@iol.pt (com indicação de data e hora), e poderá ganhar, sem mais perguntas, um almoço de lagosta no Gambrinus - oferta renovada todos os meses, válida até às próximas eleições autárquicas!

Por estes pingos da crise

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Por Nuno Brederode Santos
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GOSTO DESTE SOL impúbere. Precoce, educado e tímido, sem fanatismos nem farroncas. 22 a 24º. Não há melhor. Até eu quero estar na rua, vasculhando em círculos lentos os que passam, as janelas alheias e o chão que piso. Em casa, as buganvílias já espreitam e os limões estão absolutamente imperiais. Filmo em mim a vida que faço e ainda dou aos outros, como brinde, a garantia de que o filme não é para exibir. Sinto que algo rumina, sem pressas, o que quer que possa haver na minha caixa craniana. É óptimo. E é o estado de espírito asado para olhar o pequeno mundo que me foi dado fruir.
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José Eduardo dos Santos veio a Lisboa em visita de Estado, porque (e quando) lhe e nos interessou. "Portugal tem relações diplomáticas e económicas com Angola e deve receber e conversar com os seus representantes" é o enunciado de princípio que o facto mereceu a Francisco Louçã e que eu aceito. Só que daí decorrem consequências, a não menor das quais é a normalidade protocolar: ressalvada a independência estatutária dos tribunais, o visitante celebra os três órgãos soberanos em que a (nossa) democracia assenta (Presidente, Assembleia e Governo). O bom senso não é macro nem é micro, não é fino nem é grosso. Ora, invocar um "festim neo-colonial", revelador dos "tiques da economia e da política portuguesas" e criticar o "deslumbramento", a "vertigem do negócio" e o "cinismo" de (ou seria "dos"?) empresários portugueses, para justificar a ausência de deputados no parlamento, não é razoável. Não se sacrifica um princípio político a contingências e rigorismos processais. Nem se sujeitam os nossos interesses à suspeição de maus benefícios alheios. O "festim" nem decorrera quando a decisão foi tomada. Se a oposição fosse de princípio, tudo se resolvia - ainda que, concedo, com prejuízo do espectáculo - com um comunicado ou um discurso a advogar o corte das tais relações. Sem necessidade do exibicionismo mediático, nem de esperar pela consumação da visita. Já tínhamos tido idêntico (e lamentável) episódio com o Rei de Espanha. É imaturo, é o "sol na eira e chuva no nabal" dos radicalismos puritanos, que fogem às responsabilidades do poder para - ao que julgam - consolidarem o seu crescimento eleitoral. Mas é sobretudo a incapacidade de entender que isso de só ter expressão de Estado na Assembleia da República tem custos, mas imputáveis ao eleitorado soberano. O Bloco tem de resolver primeiro o problema da sua implantação a todos os níveis do Estado - e não apenas no Parlamento - e só depois arrogar-se o exercício das subtilezas diplomáticas. Caso contrário, continuará a reagir de escopeta em riste contra pulgas no humor, carraças no remorso histórico e contratempos da agenda política. E a embaraçar-nos a todos. E a julgar que uma autocrítica tardia - como a feita com o caso do Rei de Espanha - virá resolver os problemas que agora pretendeu criar. E a deitar a perder o esforço, tão recente quanto insano, para demonstrar a todos nós que até tem ministro das finanças.
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Em Aveiro, um pai deixou o seu bebé, durante três horas, fechado no carro. Ao que parece, na ansiedade de acudir a uma reunião profissional, em tempos de emprego funambulesco. Esquecida, a criança morreu. Oiço as vozes dos vigilantes de primeiro instinto pedindo castigo severo para o monstro. Mas pode haver castigo mais severo do que o homem ter de viver com o que fez, muito antes do que lhe for feito em nome de todos nós? E logo oiço outros que, em nome desta razoabilíssima pergunta, não admitem que ele possa ser punido pela lei. Não se enjeita explicitamente a lei, mas sublinham-se todas as especificidades circunstanciais do episódio. E há psicólogos que proferem penetrantes considerações científicas sobre o caso. Por isso, ocorre sempre perguntar: mas nós não tínhamos, há trinta e tal anos, combinado que este agora seria um Estado de Direito, no qual as leis, uma vez por nós pactuadas, ganhariam sentido e vida própria e seriam aplicadas, no seu normativo geral e abstracto, aos casos concretos, por um juiz de Direito independente? Podemos, é claro, exprimir todas as opiniões: esse mesmo Estado também nos assegura essa liberdade. Mas apelos e abaixo-assinados é que já talvez não façam muito sentido.
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Agora volto à vidinha, que este belo dia ainda guarda 19 graus para me dar.
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«DN» de 15 de Março de 2009
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no 'Sorumbático' [aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.