domingo, 28 de fevereiro de 2010

Água e vendavais - Solução


613 g
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Os 3 leitores que mais se tenham aproximado terão 24h para escrever para premiosdepassatempos@iol.pt, indicando morada e tendo em conta o seguinte:

O 1.º classificado deverá, também, dizer qual dos livros prefere: O Monte dos Vendavais (há apenas 1 exemplar, manuseado) ou o Como a Água que Corre, de Marguerite Yourcenar (há 2 exs., novos, Ed. VISÃO).
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A classificação (se não me enganei nas contas...) é a seguinte:

1.ª - Sofia .. 616 g => erro = 3 g
2.º - Gonçalo Mil-Homens .. 583 g => erro = 30 g
3.º - Suzana .. 648 g => erro = 35 g

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Escutar o Primeiro-Ministro

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Por J.L. Saldanha Sanches

A TRANQUILIDADE com que o legislador previu um regime especial para as escutas ao primeiro-ministro era de muito mau agouro. Parecia prever que seria normal ter primeiros-ministros que iriam estar, mais tarde ou mais cedo, embrulhados nas malhas de uma qualquer escuta.

O pior é que acertou. Mas se perguntarmos quem é que deve escutar o primeiro-ministro a resposta só pode ser uma: ninguém.

Se chegamos ao ponto em que os amigos mais próximos do primeiro se envolvem em crapulosos casos de polícia levando a que sejam escutados e arrastando para a rede do controlo judicial altas figuras do Estado, então, tudo está perdido.

Dir-se-á que em Portugal vigora a separação de poderes e o princípio da igualdade perante a lei. Que nada impede que o primeiro-ministro seja investigado como qualquer cidadão.

Mas tudo isso são tretas. O sistema não suporta, sem danos sérios, esse tipo de investigação.

Quando um magistrado tem de começar a pensar se uma decisão sua não irá provocar uma crise política, se essa crise política vai ou não pôr em risco o crédito da República, se haverá alguém que o possa substituir, então vamos ter uma má decisão.

“Hard cases made bad law”. E casos como estes são de uma dificuldade infinita, quando colocam na esfera judicial decisões inteiramente políticas.

Solução?

Os partidos têm de ter de vergonha e ter cuidado com quem colocam nos postos cimeiros.

Não temos ainda em Portugal o sistema de vetting ou de investigação para quem vai assumir altos cargos. Mas nos partidos políticos sabe-se tudo de toda agente. De onde se veio e o que é que se fez. Que esqueletos é que podem sair dos armários.

Ao que parece estamos tão mal que coisas que em tempos normais seriam impeditivas já não o são. Mas se assim é não venham depois queixar-se das consequências.

Nem esperem que a justiça vá resolver bem esses casos. Por excesso ou por defeito ela vai exibir todas as suas fraquezas.

A justiça pode servir perfeitamente para meter na cadeia um ou outro presidente da câmara particularmente relapso (geralmente, nem isso consegue), mas não para decidir quem vai ficar em S. Bento. Está para além das suas forças (mesmo, se por qualquer milagre, ela conseguisse ser muito melhor que o sistema político que a criou) esse tipo de decisões que, na verdade, não lhe podem caber. Por mais que se diga que a Constituição prevê, garante ou determina.

Se não, olhemos para a Itália: escorraçados os Craxis, entram os Berlusconis. A impotência da justiça cria o descrédito da política e da justiça.

A solução está por isso antes da justiça e dentro dos partidos: quem nos vão propor, quem é que vamos escolher. Quando os aparelhos partidários estão tão apodrecidos que já não conseguem distinguir entre quem podem e quem não podem colocar em certos lugares, não há regime legal de escutas que nos valha.
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NB: O silêncio conivente e envergonhado de Manuel Alegre a respeito da Face Oculta é de uma grande eloquência. Ficamos a saber qual é o PS cujo apoio ele pretende.

«Expresso» de 27 Fev 10 – www.saldanhasanches.pt

Pé ante pé

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Por João Duque

ENTÃO, isto são maneiras, António? (*) Chega-se aqui, pé ante pé, sem mais, e já não se fala aos amigos, homem? Mesmo duques têm coração! Ora venha de lá um abraço!

Sabe que esta de "entrar de mansinho" sem querer dar nas vistas fez-me lembrar a dos gregos que, sub-repticiamente, aumentaram a dívida sem que se desse por ela!

Já em Julho de 2003 uma revista da especialidade dava conta de que a Goldman Sachs havia proposto ao Governo grego umas operações financeiras que lhe permitiriam aliviar o pesado saldo da dívida emitida, e assim facilitar a adesão ao euro.

A Grécia tinha iniciado um programa de emissão de dívida em dólares e ienes. Mas como os impostos são cobrados em euros, o melhor seria converter estas dívidas para ficar a dever e a pagar juros em euros.

Tudo isto era tecnicamente certo, desde que os valores trocados entre as partes fossem os justos. Porém, ao que parece, a Goldman Sachs terá passado para os gregos mais 1000 milhões de euros do que deveria, com a garantia de que estes lhe devolveriam o capital (e juros, naturalmente) ao longo dos anos futuros. Todo este financiamento teria então sido feito sem que as autoridades europeias tivessem notado, ou os nacionais se apercebessem.

Na prática, o Governo grego aumentou a dívida total, mas se usou o empréstimo adicional para reduzir a dívida explícita, terá feito um verdadeiro "milagre"!

Para memória, deve acrescentar-se que, ao que parece, toda esta operação (através de um designado cross-currency swap) foi feita de modo bastante generoso para o intermediário...

O curioso é que esta operação foi do conhecimento público, não querendo as autoridades europeias preocupar-se com ela e tendo até sido realizada dentro da legalidade contabilística europeia.

Com as normas de reporte de contabilidade pública, muitas destas operações feitas fora de mercado deixavam os Estados e os seus súbditos completamente fora das jogadas...

Querem mais? O Eurostat até dava a receita! Na suas guidelines contabilísticas ensinava como se fazia: um Estado emitia dívida em euros. Depois convertia-a em dólares usando um destes swaps com uma taxa de câmbio fora de mercado.

A seguir avaliava a dívida a uma taxa de mercado e já estava! Desaparecia parte da dívida! Magia?

Não! Alguém estava a financiar a diferença que, obviamente, não aparecia, mas que persistia. Nada se criava, nem se destruía. Apenas se transformava...

A partir de Março de 2008, as regras mudaram e o reporting exige uma atitude diferente. Mas agora é que se descobre...

Claro que o Estado português não tem, aparentemente, este tipo de swaps. Mas tem outros.

Que saiba, em Dezembro de 2008 os swaps de taxa de juro em que o Estado português era contraparte já ascendia a 42 mil milhões de euros, um terço da dívida pública, e muitas comissões de intermediação.

«Expresso» de 20 de Fevereiro de 2010
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(*) NOTA (CMR): Julgo que o António a que João Duque se refere é António Almeida, que publicou uma crónica mesmo ao lado da dele - na mesma página do «Expresso-Economia»

Passatempo Calimero - Solução

A foto foi afixada no Sorumbático em 6 Nov 09 (ver aqui) e, como se diz no post, foi tirada na véspera. A resposta certa é, pois, 5 Nov 09.
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27 Fev 10: finalmente, alguém colocou ali pilaretes...

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

PASSOU QUINZE arrastados e pesados dias sem nada ter a dizer sobre as chocantes revelações de que o país tomou conhecimento com as escutas do processo Face Oculta. Quando, finalmente, falou, Manuel Alegre fez um discurso redondo. A criticar «a promiscuidade entre a Justiça, a política e a comunicação social» e a lamentar que «se esteja a viver uma crise política em vez de se procurar resolver as dificuldades» do país ou que não haja «segredo de Justiça quando a Justiça não funciona». Politicamente condicionado, partidariamente manietado, Alegre procurou dar duas no cravo e uma na ferradura, fugindo aos problemas de fundo que o caso Face Oculta coloca – a este estilo de exercício do poder de Sócrates, ao PS como partido democrático e a si próprio como referência dos socialistas.

Não o choca o despudor da manipulação desmedida e controleira feita pela rede de figuras próximas do primeiro-ministro sobre empresários e meios de comunicação social? A desqualificação e a ausência de ética política dos boys colocados em postos decisores, com ordenados e mordomias escandalosos? A falta de vergonha de utilizar, comprovadamente, empresas públicas e com participações do Estado para beneficiar os meios de informação amigos e asfixiar financeiramente os órgãos de comunicação desalinhados? Pelos vistos, choca pouco.

Este estilo Chávez não lhe causa um sobressalto democrático? Não abala as suas convicções em defesa do livre pensamento e expressão de ideias? Não lhe provoca um assomo de revolta contra o controleirismo? Pelos vistos, não.

Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não. Se, até em ditadura, isso já era uma certeza, em democracia não é possível silenciar todos os que os discordam ou informam com liberdade e independência – por muitos boys e aparelhos de poder que se tenham ao serviço e à disposição.

É pena que Manuel Alegre não junte a sua voz aos que se demarcam desta vocação manipuladora e com tiques totalitários. Que não esteja do lado dos que resistem e dizem não. O seu passado cívico e político exigia-o. E a sua candidatura a Presidente da República não sairia tão manifestamente diminuída pelos seus silêncios, omissões e cumplicidades com estas práticas antidemocráticas.

«SOL» de 26 Fev 10

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Eu tive um sonho (*)

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Por Cecílio Gomes da Silva

(Engenheiro Silvicultor)

TRAUMATIZADO pelo estado de desertificação das serras do interior da Ilha da Madeira, muito especialmente da região a Norte do Funchal e que constitui as bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para o Funchal, dando-lhe aquela fisiografia de perfeito anfiteatro, aliado a recordações da infância passada junto à margem de uma das mais torrenciais dessas ribeiras – a de Santa Luzia – o mundo dos meus sonhos é frequentemente tomado por pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira. Tive um sonho.

Adormecendo ao som do vento e da chuva fustigando o arvoredo do exemplar Bairro dos Olivais Sul onde resido, subia a escadaria do Pico das Pedras, sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade, fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu. Acompanhavam-me dois dos meus irmãos – memórias do tempo da Juventude – em que nós, depois do almoço, íamos a pé, subindo a Ribeira de Santa Luzia e trepando até à Alegria por alturas da Fundoa, até ao Pico das Pedras, Esteias e Pico Escalvado. Mas no sonho, a meio da escadaria de lascas de pedra, o vento fez-nos parar, obrigando-nos a agarrarmo-nos a uns pinheiros que ladeavam a pequena levada que corria ao lado da escadaria. Lembro-me que corria água em supetões, devido ao grande declive, como nesses velhos tempos. De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. O tempo passava e um ruído ensurdecedor, semelhante a uma trovoada, enchia todo o espaço. Quanto durou, é difícil calcular em sonhos. Repentinamente, como começou, tudo parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. De onde me encontrava via-os transformarem-se numa só torrente de lama, pedras e detritos de toda a ordem. A Ribeira de Santa Luzia, bloqueada por alturas da Ponte Nova – um elevado monturo de pedras, plantas, arames e toda a ordem de entulho fez de tampão ao reduzido canal formado pelas muralhas da Rua 31 de Janeiro e da Rua 5 de Outubro – galgou para um e outro lado em ondas alterosas vermelho acastanhadas, arrasando todos os quarteirões entre a Rua dos Ferreiros na margem direita e a Rua das Hortas na margem esquerda. As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé – único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. A Ribeira de João Gomes quase não saiu do seu leito até alturas do Campo da Barca; aí, porém, chocando com as águas vindas da Ribeira de Santa Luzia, soltou pela margem esquerda formando um vasto leito que ia desaguar no Campo Almirante Reis junto ao Forte de S. Tiago. A Ribeira de S. João, interrompida por alturas da Cabouqueira fez da Rua da Carreira o seu novo leito que, transbordando, tudo arrasou até à Avenida Arriaga. Um tumultuoso lençol espumante de lama ia dos pés do Infante D. Henrique à muralha do Forte de S. Tiago. O mar em fúria disputava a terra com as ribeiras. Recordo-me de ver três ilhas no meio daquele turbilhão imenso: o Palácio de S. Lourenço, A torre da Sé e a fortaleza de S. Tiago. Tudo o mais tinha desaparecido – só água lamacenta em turbilhões devastadores.

Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer. Acordado o resto da noite por tremenda insónia, resolvi arborizar toda a serra que forma as bacias dessas ribeiras. Continuei a sonhar, desta vez acordado. Quase materializei a imaginação; via-me por aquelas chapas nuas e erosionadas, com batalhões de homens, mulheres e máquinas, semeando urze e louro, plantando castanheiros, nogueiras, pau-branco e vinháticos; corrigindo as barrocas com pequenas barragens de correcção torrencial, canalizando talvegues, desobstruindo canais. E vi a serra verdejante; a água cristalina deslizar lentamente pelos relvados, saltitando pelos córregos enchendo levadas. Voltei a ouvir os cantares dolentes dos regantes pelos socalcos ubérrimos das vertentes. Foram dois sonhos. Nenhum deles era real; felizmente para o primeiro; infelizmente para o segundo.
Oxalá que nunca se diga que sou profeta. Mas as condições para a concretização do pesadelo existem em grau mais do que suficiente.

Os grandes aluviões são cíclicos na Madeira. Basta lembrar o da Ribeira da Madalena e mais recentemente o da Ribeira de Machico. Aqui, porém, já não é uma ribeira, mas três, qualquer delas com bacias hidrográficas mais amplas e totalmente desarborizadas. Os canais de dejecção praticamente não existem nestas ribeiras e os cones de dejecção etão a níveis mais elevados do que a baixa da cidade. As margens estão obstruídas por vegetação e nalguns troços estão cobertas por arames e trepadeiras. Agradável à vista mas preocupante se as águas as atingirem. Estão criadas todas as condições, a montante e a jusante para uma tragédia de dimensões imprevisíveis (só em sonhos).

Não sei como me classificaria Freud se ouvisse este sonho. Apenas posso afirmar sem necessidade de demonstrações matemáticas que 1 mais 1 são 2, com ou sem computador. O que me deprime, porém, é pensar que o segundo sonho é menos provável de acontecer do que o primeiro.

Dei o alarme – pensem nele.
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(*) Diário de Notícias do Funchal - 13 de Janeiro de 1985

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Misérias portuguesas

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Por Baptista-Bastos

ESTAMOS A PERDER a perspectiva e o sentido das coisas. Vivemos, dificultosamente, uns com os outros, e olhamo-nos com agressiva desconfiança. As mais altas instituições mentem-nos, omitem, afirmam uma certeza e logo a desdizem; os representantes da justiça fornecem-nos a cavernosa ideia de uma identidade truncada, e abandonaram o conceito de mediadores da consciência social; o jornalismo, que devia ser, e já foi, uma referência em forma de caução, é a miséria que por aí se vê. Mais cedo do que tarde terá de proceder a um mea culpa; mas nem assim arredará as gravíssimas responsabilidades que lhe cabem no desrespeito geral.

Viver em conjunto precisa de conflito, de polémica, de emoção. E da construção de um elo plural, com valores que desenvolvam o sentimento de pertença e de diferença. Todos estes padrões têm sido desprezados, com proficiência, por políticos manifestamente de segunda ordem e por jornalistas de adiantada mediocridade, agigantado ego e gramática fugaz.

O escabroso espectáculo no Parlamento, fornecido por Mário Crespo, José Manuel Fernandes e Felícia Cabrita, tidos como apreciáveis jornalistas (enfim: a estimativa não é generalizada, bem pelo contrário) desacreditou, ainda mais, o já azarento ambiente em que vive a Imprensa. Todos eles atingiram o grau mais elevado do grotesco, ao mesmo tempo que demonstraram quão frágeis e esburacados foram os seus argumentos. Afinal, existe mesmo liberdade de expressão e de informação, e esta sofre as mesmas ameaças e perigos existentes nas sociedades modernas. A vitimização pode ser sedutora, mas resulta sempre numa transparência que os factos tornam obrigatória.

A presença dos três sujeitos chegou a ser aflitiva por declaradamente arrogante, e apenas revelou o verdete que alimentam por José Sócrates. É pouco. É nada. O ódio não se confessa, mas nota-se, e marca o desejo inconsciente de destruir do outro. Haja Freud!

Não sei se a sociedade portuguesa dispõe, imediatamente, de forças capazes de remover o lamaçal em que foi submergindo. A alternância entre uma vida assente na desistência, e uma vida liberta de imposições, depende da necessidade e do anseio de construirmos novos laços sociais. Os exemplos que vêm de cima não são de molde a criar adeptos. Não confiamos em quase nada e em quase ninguém. Começamos a desconfiar de nós próprios. O indivíduo tem de ter em conta o olhar dos outros, mesmo que negativo: é o que assegura a nossa singularidade. E mesmo isso está a diluir-se, ante a configuração permanente da mentira política, o desprezo pela verdade e a duvidosa dimensão ética de certos jornalistas

«DN» de 24 Fev 10

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Natureza selvagem

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Por Rui Zink

TODO O PORTUGAL É BONITO, mas nada se compara à beleza dramática da Madeira e dos Açores. Em compensação, os Açores são nove ilhas espartilhadas e a Madeira tem o Alberto João. E, antes da Europa e do avião barato, sofreram um isolamento que os levou a emigrar em massa: da Madeira para a Venezuela e África do Sul, dos Açores para a América.

A tragédia de anteontem lembra-me outra que abriu a década: a queda da ponte de Entre-os-Rios. Também então, ainda em choque, se começou a tentar “apurar responsabilidades”. Muito gostamos nós disso. Evidentemente, passados anos, nenhuma “responsabilidade” foi “apurada”. Apenas houve um ministro que se demitiu, admitamos que por pudor. Hoje, ao que consta, “está na construção civil”, como tantos ex-colegas, onde mercê da sua “experiência” ganha concursos para “obras públicas”.

Pois no apurar das responsabilidades na Madeira há já duas teorias:
1) faltava um “radar meteorológico”, 2) houve construção desordenada. As duas não se excluem, nem têm de estar certas. Até porque não é humanamente possível prever tudo. Mas infelizmente estamos escaldados; já temos tradição de a construção, mais do que “civil” ou “pública”, ser muitas vezes “selvagem”. Já nem vou falar do IP5, tragédia anunciada desde o início pelas incongruências do traçado, apenas lembrar “azares” recentes: a falésia no Algarve, o desabamento na CREL, o magnificamente abafado “acidente” entre viaturas oficiais a 120 à hora na Avenida da Liberdade.

Num país obcecado pelo “fazer”, pelo “fazer obra”, pelo “desenvolvimento”, convém lembrar que cá se fazem, cá se pagam. O problema é que, obviamente, quem “paga” não é geralmente quem “faz”. Mais do que “apurar responsabilidades”, convinha começar por apurar, afinar, o nosso sentido de responsabilidade. O país melhorava. Mas eu bem sei o difícil que é combater a nossa natureza selvagem….

«Metro» de 22 Fev 10

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Situação

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Por João Paulo Guerra

Já viram o que dá mexer num negócio de sucatas em Portugal?

QUASE CAI O GOVERNO, rolam umas tantas cabeças, desvendam-se mais uns quantos ‘boys' e respectivas sinecuras, atinge-se a credibilidade de um dos maiores potentados económicos e financeiros do país na questão central da participação do Estado, chega-se ao financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, aos pagamentos por baixo do balcão e para cima do ‘offshore', atinge-se mesmo um dos fundamentos essenciais da democracia, a liberdade de expressão e de imprensa. E tudo isto assente em escutas telefónicas a suspeitos negócios de sucatas. Pode então tirar-se uma conclusão perturbante: a democracia tem os pés na sucata, assim como cada vez mais democratas têm as mãos nas massas. Ou será que a democracia foi para a sucata?

Já o Eduardo Guerra Carneiro escrevia, em 1970, que "Isto anda tudo ligado". Mas talvez nem o bom do Eduardo vislumbrasse ao longe quão imbricada se tornaria - quatro décadas e um regime depois - a sociedade portuguesa, toda ela tecida na base de interesses, poder e dinheiro, de tal maneira que puxando por um fio se desenrola toda uma teia.

E depois, como é velho timbre de uma sociedade farisaica, enrola-se o novelo que vai para o fundo do baú e acabou-se a conversa. "Está tudo bem assim e não podia ser de outra maneira", pregava o velho Botas ou, como se dizia na versão refundida do salazarismo: "Reina a ordem em todo o país". A quantidade de autos, inquéritos, demandas, buscas, escutas, relatórios, devassas, sindicâncias, processos que vão, improcedentes, para o fundo dos arquivos mortos constitui um lastro de tal peso que, um dia, a situação vai ao fundo. Não tem nada que saber: será quando os actuais situacionistas começarem a mudar de ares.

«DE» de 22 Fev 10

As desventuras de Alice

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Por Nuno Crato

A SEGUNDA PARTE de Alice no País das Maravilhas inclui algumas das mais famosas passagens e personagens de Lewis Carroll. Contém também alguns dos seus mais divertidos absurdos: as lições da tartaruga fingida, os disparates do chapeleiro louco e o julgamento final em que a rainha, desejosa de cortar a cabeça à jovem heroína profere a célebre frase: «Primeiro a sentença, depois o veredicto!»

Os dois livros de Alice revelam o humor de um matemático que brinca com a lógica e faz alusões veladas a temas científicos. A maioria das vezes, as alusões são indirectas, e muito se tem discutido sobre algumas passagens. Logo no capítulo 2, por exemplo, Alice parece enganar-se nas contas: «quatro vezes cinco é doze, e quatro vezes seis é treze, e quatro vezes sete — oh! Assim nunca mais chego a vinte!».

Teria o matemático Charles Dodgson, escrevendo sob o pseudónimo de Lewis Carroll, avançado estes números ao acaso? Há quem pense que não e verifique que as contas estão certas se as bases forem sendo incrementadas. Assim, se em vez de usarmos a base 10, como é habitual, usarmos a base 18, em que o número 18 se escreveria 10, então 12 significaria 18+2 e a primeira conta estaria certa. Igualmente, se usarmos a base 21, então 13 significaria 21+3 e a segunda conta também estaria certa. Subindo de três unidades a base à medida que se avança, o esquema vai funcionando até 19, mas a seguir não se alcança 20 (pois 4x13 não se escreve 20 na base 42). Estaria o escritor de Alice a pensar num esquema tão complicado? Apesar de haver quem o defenda, não é possível garanti-lo. Mas o leitor interessado poderá ler os argumentos de Francine Abeles publicados na Historia Mathematica de 1976 (3, 183–84).

O mesmo se passa, por exemplo, no capítulo 7, quando se sabia que se estava em Maio, mas se desconhecia o dia. O chapeleiro louco pergunta a Alice o dia do mês e esta responde «quatro». Ora 4 de Maio era o dia de aniversário de Alice Liddell, a menina que inspirou Dodgson a escrever estas aventuras. Não é certamente uma coincidência. Mas que dizer da exclamação do chapeleiro que comenta a data dizendo: «Errada por dois dias!»?

Acontece que 4 de Maio de 1862, data em que pela primeira vez a história foi contada e começada a escrever, o calendário oficial estava apenas dois dias e alguns minutos afastado do calendário lunar (a lua nova ocorrera dois dias antes de 1 de Maio). Um dos comentadores de Alice diz que o lunático chapeleiro se orientava pela Lua, daí a sua exclamação (A.L. Taylor, The White Knight, 1952). Será isto verdade? De novo não é possível sabê-lo, apesar de a teoria ser curiosa.

Pode-se ainda especular que o País das Maravilhas ficava situado perto do centro da Terra, local em que o calendário solar não é útil, mas o lunar sim, pois as fases da Lua seria também interpretáveis de um ponto central em que seria sempre dia.

Outro tópico divertido, ainda no capítulo 7, é a conversa do chapeleiro sobre o tempo e o relógio parado. É um tema caro ao autor de Alice. Anos antes de escrever estas aventuras tinha oferecido à irmã esta adivinha com que aqui deixamos o leitor: «O que é melhor, um relógio que esteja certo apenas uma vez por ano ou um que esteja certo duas vezes por dia?»

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 20 Fev 10

NOTA: No final desta crónica, é deixado um desafio aos leitores. Ao que primeiro der a resposta certa (e der a melhor justificação para ela), será atribuído um exemplar de Alice no País das Maravilhas, Ed. VISÃO.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Os situacionistas

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Por Helena Matos

NOS ANOS 60 passaram do liceu para as universidades. São do tempo em que ser senhor doutor valia alguma coisa e as famílias apostaram fortemente na sua formação, confiando que, apesar de cada ano lectivo corresponder a maior irreverência, no fim eles teriam o canudo. Para o futuro ficaram conhecidos como geração de 60. Em Portugal, a PIDE e a censura deram-lhes um enquadramento de resistência que vai para lá do que aconteceu aos seus congéneres nos países democráticos. Após 1975 cortaram o cabelo, apararam a barba e quando a tropa, já sem MFA, recolheu aos quartéis começaram a sentar-se no aparelho de Estado. Academicamente bem apetrechados e com o país a precisar de refazer-se das vagas de saneamentos, esta nova geração passou rapidamente da oposição para o poder. Alguns dos mais destacados elementos dessa geração vieram a tornar-se notáveis do PS. O que de algum modo fazia todo o sentido: tinham lutado contra o fascismo, o social-fascismo e outros ismos. Na democracia tiveram no PS o seu espaço natural e em Soares o líder que trataram como já não se tratam os reis.

Nem sempre as coisas correram bem mas havia a íntima convicção que nos grandes momentos eles escolheriam a liberdade tal como a tinham escolhido durante as crises académicas. Mas não é isso que está a acontecer. Agora estão calados. Calados como nunca estiveram com Guterres ou sequer Soares. Fazem o pino para justificar o injustificável ou passam discretos a ver se descobrem algo em que possam pegar naqueles que não estão dentro do seu círculo (ou triângulo, se se preferir o imaginário maçónico onde muitos acabaram após a fase juvenil do ateísmo).

Durante meses interroguei-me porque estaria isto a acontecer. Ainda esta semana me caiu no mail aquele PDF com o diploma da licenciatura de José Sócrates, datado de Agosto de 1996, mas de cujo papel timbrado fazem parte números de telefone que só passaram a existir no final de 1999. Quem mandava o mail perguntava: isto já é conhecido, não é? Claro que sim. Isso e tudo o que veio depois é sobejamente conhecido. Mas eles, tão ciosos das suas notas no Técnico, em Direito e em Letras, como no seu tempo se dizia, fazem agora de conta que não é nada com eles ou tornam-se peritos instantâneos em procedimentos jurídicos que levam invariavelmente a anulações e arquivamentos. Porque se calam? Não os move certamente o dinheiro, tanto mais que estão à beira de ser a última geração a gozar as reformas douradas do estado que essa geração dizia social.

A resposta encontrei-a ao ver na televisão as notícias sobre a ronda de contactos entre o secretário-geral do PS e as estruturas partidárias. Eles, os contestatários dos anos 60, são agora a Situação. Sem Sócrates, que obviamente não é um deles, acaba-se a Situação, esta coisa que ninguém sabe o que é mas que se arrasta. Esta coisa em que se mergulha na dúvida, no boato, nos casos e em que os detentores do poder não se afirmam pelo que oficialmente fazem mas sim por conseguirem passar a mensagem de que não existe alternativa às suas pessoas.

Não são de modo algum a primeira geração a ficar refém dum tempo político. “Falhámos a vida, menino” – é uma das frases finais de Os Maias. Mas no caso da geração de 60 não só não parece que esteja interessada em fazer balanços do seu legado – à excepção daquelas evocações que os transformam em heróis – como, por ironia, eles, que em jovens foram tão eficazes a combater o poder, revelam-se agora, à beira de se tornarem velhos, dispostos a quase tudo quando alguém os confronta com aquilo em que se tornaram. E note-se que eles não se tornaram poder que isso já o eram. O que Sócrates fez deles foi transformá-los na Situação.

in PÚBLICO e BLASFÉMIAS

Ciclovia da Av. Frei Miguel Contreiras, em Lisboa

Carros estacionados na ciclovia...

Justiça

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Por João Paulo Guerra

O PAÍS ESTÁ mergulhado em diversas ordens de crises. Uma crise política que ameaça de perto e descredibiliza o funcionamento das instituições.

Uma crise financeira, com componentes internacionais, muito agravada por um endividamento à beira do abismo e distorções crónicas dos sistemas de acumulação e distribuição da riqueza. Uma crise social com o desemprego e a desigualdade fora de controlo. Uma crise de valores, com o consumismo a bater todos os recordes em cima da nacional-pelintrice, o egoísmo a sobrepor-se a todos os comportamentos e mentalidades, um absoluto desprezo pela cultura e pelos valores do espírito humano. E crises parcelares crónicas em todos os ramos do funcionamento do Estado e da sociedade, na Educação, na Saúde, na Justiça.

Mas enquanto o país real quase que agoniza, em Matosinhos, num casulo de cristal, um colectivo de três juízes debruça-se profunda e doutamente sobre uma magna questão: que pena aplicar a um jovem que furtou num supermercado uma embalagem de amêndoas? O caso começou a ser julgado com dois arguidos e uma acusação que envolvia, para além do pacote de amêndoas, uma garrafa de uísque. Mas um dos arguidos e a garrafa caíram nas audiências de julgamento, restando um arguido, um pacote de amêndoas e um colectivo de três juízes. O que seria cómico se não fosse dramático. E o pior é que cada instância da Justiça terá para contar um caso caricato como o presente.

A máquina da administração da Justiça tem na respectiva secretaria de Estado, desde a formação do actual Governo, um dos mais experientes, conhecedores, dedicados e competentes causídicos do país, com a função específica de coordenar a correcção de leis penais refeitas há dois anos em cima do joelho. Senhor doutor: defenda o país e o povo da Justiça.

«DE» de 19 Fev 10

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

«O que é isto?» - "dica"

O Fim dos Dinossauros

Por Manuel João Ramos

JÁ ME TINHA esquecido deste texto publicado no Sol. Talvez agora esteja mais actual:

Lisboa e o fim dos dinossauros

Que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa tenha sido eleito por um em cada nove lisboetas não é normal. Que o seu grupo de vereadores tenha poder de planear e gerir projectos tão estruturais como a terceira travessia do Tejo, a frente ribeirinha, urbanizações e reabilitações de vastas áreas do território da cidade parece quase um golpe de Estado.

No íntimo, o cidadão português anseia por um ciclone que varra a classe política instalada, que uma tempestade solar curte-circuite o espectro partidário, que uma onda gigante leve os maçons para França, os opus dei para Itália, o compadrio para a Sicília e as cunhas para Espanha.

A bem dizer, a população portuguesa está-se nas tintas para o socialismo, borrifa-se para a social-democracia, marimba-se para a democracia cristã, considera o comunismo uma anedota e o bloquismo de esquerda uma variante de loja do canhoto.

Ninguém, a não ser os clientes da partidocracia em que se tornou a cangalhada herdada da revolução de 1974, se revê sinceramente no sistema político montado, em que a ordem é produzida em Bruxelas, o sustento é assegurado por grupos financeiros e a mira da felicidade é acaparada pela peste do futebol. O resultado confrangedor deste estado de coisas da res publica lusitana é um intransponível abismo cavado entre eleitores e eleitos, que se espelha na quase total ausência de participação cívica na vida política, e no desamor colectivo pelos conceitos de comunidade e de civilidade.

A Lisboa é um caso agudo desta derrocada cultural. Em grande parte, tal é devido à existência de um mastodonte político-administrativo chamado CML

A CML deveria ser, pura e simplesmente, suprimida e em seu lugar deveriam ser criadas cinco câmaras que pudessem gerir eficazmente os vários núcleos urbanos que compõem a cidade.

Estas câmaras, com as dos concelhos limítrofes, deveriam compor um conselho municipal com funções de gestão e planificação estratégica, que absorvessem funções da CCDR e do Governo Civil. A miríade de freguesias deveria ser destituída, segundo o princípio de que uma junta de freguesia urbana não deveria administrar uma população menor que 5 mil habitantes e maior que 20 mil. A Assembleia Municipal deveria ser, correspondentemente, reformada de modo a funcionar como parlamento regional.

Seria mais lógico e mais prudente que os munícipes votassem em agrupamentos cívico-partidários, que representassem e defendessem interesses específicos à freguesia, ao núcleo urbano, à cidade e à região.

Depois de tal terramoto, justificar-se-ia a criação de um museu dedicado à evocação da memória dos tempos jurássicos da democracia portuguesa. Seria o local indicado para contemplar as foices, martelos, setas, punhos e flores, bolas e estrelas partidárias.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Biombos

Por João Paulo Guerra

O PSD CONSIDERA que o desafio de uma parte do PS para que a oposição apresente uma moção de censura ao Governo constitui um verdadeiro biombo.

Mas a verdade é que a declaração do PSD consubstancia por seu lado um autêntico tabique. E é assim, por detrás de anteparos e guarda-ventos, que se faz política em Portugal: longe das vistas dos cidadãos, às escondidas. Aliás, o repto do PS para que a oposição censure o Governo será posterior à declaração do PSD sobre a irresponsabilidade de mudar de Governo em plena crise. Ou seja, quando o PS avançou com o biombo, já o PSD tinha mandado instalar o tabique.

O partido do Governo tem passado todos estes meses da legislatura a dramatizar as ameaças de demissão e de eleições antecipadas, porque sabe que o PSD tem ainda mais medo de eleições que o próprio PS. Tivesse o PS confiança na vitória com maioria absoluta, ou tivesse o PSD uma liderança que lhe desse confiança no triunfo eleitoral, e ninguém andava a lançar ameaças sobre o assunto: na altura devida, quem quer que fosse armava e lançava a "bomba atómica" e pronto. Mas a política portuguesa, de tão dissimulada, sonsa e paliativa, fez da "bomba atómica" uma simples pistola de fulminantes: é mais o susto que outra coisa. Nas palavras, raios e coriscos; nos actos, pólvora seca e flor-de-enxofre.

E compreende-se que assim seja. O que separa os partidos da alternância, mais o contra-peso "centrista", não são propriamente grandes opções políticas, nem sequer grandes escrúpulos éticos, mas simples questões de poder e protagonismo. Quem decide, quem faz, com que fins, em que calendário, em proveito de que clientelas. São, digamos assim, as diferenças entre biombos e tabiques, cortinados e bambinelas, tapumes e taipais.

«DE» de 17 Fev 10

A desgraça e a patifaria

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Por Baptista-Bastos

COMO PODE o Governo sair-se desta confusão, e como pode o PS ressarcir-se das amolgadelas que tem sofrido com insistente crueldade? Chega a ser uma falta de compaixão as sovas monumentais que ambos apanham, sem tréguas nem sossego. A situação política portuguesa é pouco decorosa. Sócrates não sai por ego, orgulho e vaidade, igualmente incomensuráveis. Mas também tem os votos a seu favor. A última sondagem, há poucos dias, é-lhe expressamente favorável. Ninguém se atreve a correr com ele, na situação em que a pátria se encontra. Quando Capoulas Santos e António Costa, lisos, formais e lacónicos, colocaram a questão singela "Porque não apresentam uma moção de confiança?", toda a oposição gelou de cobardia. E depois do adeus?

A oposição está refém das circunstâncias e Sócrates, cativo de si próprio. O pobre Alberto Jardim, com a sua forma selecta e os termos preciosos que lhe são comuns, propôs a delirante hipótese de todos os partidos formarem uma espécie de patuleia, chutarem o Governo e tomarem o poder de assalto. Nada a fazer.

Entretanto, o PSD, sentindo entrar-lhe pelas narinas o vago perfume do mando, prepara-se para assumir o seu destino de alternante. Prepara-se mal. Os últimos episódios denotam que ninguém se entende na agremiação. E que nenhuma convenção ou sinédrio melhorará as enfermidades. Pedro Passos Coelho foi o primeiro no sinal de partida. Tinha a difícil tarefa de enfrentar, pelo menos, um candidato da dr.ª Manuela; afinal, emergiu outro. A história da rasteira que o dr. Rangel passou ao dr. Aguiar pertence aos anais dos atentados públicos contra a decência. Esta divisão não "enriquece" o debate: provoca mais ressentimentos do que aqueles que vicejam no PSD. E fornece a Passos Coelho a forte possibilidade de ser o próximo presidente do partido. Acresce, em seu favor, o facto de Pacheco Pereira, homem fatal, ter apoiado publicamente o dr. Rangel, o que fez afugentar, espavoridos, todos aqueles propensos a favorecer o vencedor das "europeias". Pacheco dá azar, segundo a imensa maioria dos psd's, a qual o acusa de ser o organizador da estratégia que conduziu a dr.ª Manuela e o PSD à mais negra desgraça.

Perante estes imbróglios, tudo parece indicar que Pedro Passos Coelho tem o caminho facilitado. Mas, atenção aos sábios!, José Sócrates está vivo, embora duramente espancado. E não é para graças, independentemente dos defeitos de formação que se lhe apontam. Os problemas de personalidade parecem não afectar os eleitores. A ter em conta as tais sondagens de há dias, que submetem à esclarecida consideração da praça os paradoxos do nosso viver.

«DN» de 17 Fev 10

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Liberdade

Por João Paulo Guerra

Alguém se recordará de algum governo do Portugal democrático que não tenha afrontado a liberdade de expressão e tentado controlar a liberdade de imprensa?

OS PORTUGUESES saíram de meio século de censura - com esse ou outro nome - e a seguir valia tudo, até se criar a figura das comissões ad hoc. A nacionalização de praticamente todos os meios de comunicação foi o ponto mais alto da concentração dos meios, um campo de concentração para a liberdade de imprensa. Mas os que contestavam a concentração não deixavam de a aproveitar a partir dos cadeirões do poder. Depois vieram as privatizações e as coisas passaram a fiar mais fino. Como escrevera o dr. Francisco Balsemão em 1971, "Se uma revista pertence a um grupo açucareiro, nela não se escreverá que o açúcar engorda". E porque o grupo açucareiro puxava para um lado e o grupo dos adoçantes puxava para outro - para usar exemplos inocentes - um deles comprou o outro e recomeçou a concentração.

E o poder político lá se foi mexendo em novo cenário empresarial. Nos meios públicos diz-se que chegou a haver, em certa fase, ministros escalados para as horas de fecho de jornais e telejornais. E mesmo em certos meios privados, o poder político não se privou de garantias para meter a colherada dourada nos conteúdos. E as formas de pressão e intimidação diversificaram-se. Passaram a chover providências, processos e outras novidades judiciais. Claro que as leis são para cumprir.

Mas a alegação de que a lei não está a ser cumprida tem em geral o segundo sentido de intimidar o mensageiro e, se possível, cortar-lhe a cabeça.

Os políticos portugueses têm-se dado muito mal com a liberdade de expressão e de imprensa. O problema é deles. Embora o risco seja de quem a exerce.

«DE» de 15 Fev 10

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Passatempo - Solução


Pág. 179
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Dado que foi possível arranjar mais um prémio, os dois leitores que mais se tenham aproximado do valor indicado deverão, nas próximas 24h, escrever para premiosdepassatempos@iol.pt indicando morada.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

As maravilhas de Alice

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Por Nuno Crato

SE LEWIS CARROLL não tivesse escrito as duas aventuras de Alice, não seria conhecido por esse pseudónimo, mas sim pelo seu verdadeiro nome: Charles Lutwidge Dodgson (pronunciado dód-san). E se não tivesse escrito esses dois livros e vários outros de histórias maravilhosas, não seria conhecido como escritor, mas talvez como fotógrafo — Dodgson foi um dos primeiros a encarar a fotografia como uma arte e não como um mero registo de imagens; os seus retratos ainda hoje são pungentes, em especial as suas imagens de crianças em poses melancólicas. E se não tivesse sido nem escritor nem fotógrafo seria certamente conhecido como um dos vultos da época na sua disciplina: a matemática.

Todo o humor absurdo que perpassa por Alice no País das Maravilhas e pelas suas outras obras de ficção é um humor que muitos matemáticos reconhecem como seu. Os seus trocadilhos e as suas pequenas brincadeiras revelam uma preocupação com o significado das palavras e expressões e a construção de contradições derivadas de ambiguidades. É um uso da lógica e da matemática que ainda hoje surpreende os leitores.

Quem esteja um pouco mais desperto para a leitura de temas científicos verá também deliciosas referências a tópicos eruditos de matemática, lógica e astronomia. Logo no princípio, quando Alice cai pelo buraco do coelho e pergunta a si própria quantas milhas terá caído, quando pensa que se aproxima do centro da Terra e procura recordar-se da dimensão do planeta, ela está a protagonizar uma metáfora científica muito discutida na época vitoriana — na realidade, uma metáfora que vem da antiguidade clássica.

Perto do século VIII a.C., o poeta grego Hesíodo tinha imaginado uma bigorna a cair dos céus e escrito que ela demoraria nove dias a atingir a Terra. Deixando-a cair da Terra para os infernos, ela demoraria também nove dias a cair no fundo do universo. O tema foi retomado na era romana pelo historiador e ensaísta grego Plutarco (46–120). Sabendo que a Terra é esférica, Plutarco perguntou o que aconteceria a um corpo que caísse por um buraco que levasse a uma Terra oca: pararia no centro? O problema ocupou muitos filósofos e homens de ciência. Galileu foi o primeiro a solucioná-lo correctamente. Imaginou um túnel que atravessasse a Terra de um lado ao outro, passando pelo seu centro. Um objecto largado à superfície desceria aceleradamente pelo túnel até alcançar o centro. Nessa altura, continuaria a sua viagem, mas em velocidade decrescente, até alcançar o outro extremo do planeta. Nesse momento estancaria e, deixado livremente, voltaria a cair pelo túnel, acelerando, passando pelo centro da Terra, desacelerando e voltando ao ponto de partida. Deixado a si próprio, esse corpo oscilaria indefinidamente, entre um extremo e outro do planeta.

Galileu estava certo, desprezando o atrito do ar e o movimento da Terra. O problema voltou a ser discutido por Newton e Euler, e continua a ser discutido nos dias de hoje como exercício de mecânica e de cálculo. Feitas as contas, Alice demoraria 42 minutos a atingir o centro da Terra e outro tanto a reaparecer nos antípodas — nas “antipatias”, segundo a brincadeira de Lewis Carroll.

As referências científicas atravessam todas as aventuras de Alice. Nada como lê-las, pensá-las e revisitá-las. Voltaremos a fazê-lo.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 12 Fev 10

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

O ANUNCIADO fim próximo do desacreditado poder de José Sócrates veio animar a corrida à liderança do PSD. Paulo Rangel e Aguiar-Branco aí estão para disputar votos com Passos Coelho. Este assumiu há muito a sua candidatura, tem o apoio maioritário do aparelho do PSD (ainda que o voto dos militantes em directas esteja menos sujeito a caciques do que se pensa) e até escreveu um livro, com o título Mudar, que pretende ser o seu programa político. O esforço literário de Passos Coelho é louvável, mas o esforço político é frustrante. São 269 páginas de generalidades e banalidades, de ideias pela rama sobre Justiça, Educação, Energia, Regionalização ou reforma do Sistema Político. Em que o pensamento do autor fica sempre a meio da ponte, indefinido, admitindo quase tudo e o seu contrário. Uma decepção.

O melhor do livro, no entanto, está guardado para o fim. As três páginas finais são dedicadas ao ‘Doutor Chu’, Stephen Chu, prémio Nobel da Física e secretário da Energia da Administração Obama. Que se propunha aumentar os impostos e taxas sobre os combustíveis para reduzir o consumo excessivo de gasolina dos americanos. E que, chegado ao Governo, perante a impossibilidade de pôr em prática tal promessa, desistiu da ideia com uma frase que impressionou vivamente Passos Coelho: «Neste momento, deixem-me ser franco, isso não é politicamente realizável».

O candidato a líder do PSD adoptou tal frase, que repete, como seu lema político e sublinha mesmo, a concluir, que «em nenhum momento deste livro me saiu da cabeça a consciência das dificuldades como as que enfrentou o respeitável Doutor Chu». Não é fácil decidir o que mais admirar. Se a espantosa ingenuidade política do respeitável Doutor Chu. Se a assombrosa franqueza do seu não menos respeitável pupilo português, Passos Coelho.

Se Sócrates começou logo, mal formou Governo, a fazer o contrário do que prometera, subindo os impostos, Passos Coelho avisa desde já que as suas propostas e promessas são extremamente condicionais e politicamente voláteis. Não são para levar muito a sério, como diria o respeitável Doutor Chu.

«SOL» de 12 Fev 10

Almanach Bertrand de 1922

Duques e cenas tristes

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Por João Duque

MEU CARO António de Almeida,
Que esta o vá encontrar de melhor saúde são os meus mais sinceros desejos.

Por cá tudo na mesma: cada vez menos duques, cada vez mais cenas tristes...

Ainda andamos às voltas com o Orçamento e com a novidade de que o programa de obras públicas foi, ou melhor, vai ser revisto, em particular o TGV. Porém, desde que reli o recente estudo sobre a Alta Velocidade (AV) que a RAVE publicou em Setembro passado, que acho que a medida recentemente anunciada não faz qualquer sentido. Vejamos. Nos estudos iniciais, a RAVE projectava um tráfego de 1,8 milhões passageiros, para o início de exploração da linha de AV entre Lisboa e Madrid, processados no troço entre Lisboa e o Caia. Mais tarde provou-se que, para a obtenção de um VAL positivo do investimento, o número mínimo de passageiros neste percurso no primeiro ano de operação da linha era de 6,7 milhões passageiros (só 3,6 vezes mais). Claro que agora a previsão da RAVE é a de uma procura de 6,7 milhões em 2015...

Antes, já se valorizava uma hora poupada por um passageiro numa deslocação entre Lisboa e o Caia em 11,93 euros. Agora, o novo estudo assenta num valor/ hora poupada em viagem na casa dos 26 euros... Antes, a previsão do Valor Actual Líquido do investimento, já depois de se considerarem todos os efeitos económicos e sociais directos e indirectos do projecto, era negativo e da ordem dos -1.097,3 milhões de euros. Agora já é positivo e da ordem dos 383 milhões... Antes, dizia-se que o projecto seria ruinoso para qualquer operador que tentasse explorar a linha, uma vez que a diferença entre as receitas recebidas e os pagamentos realizados era negativa e da ordem dos 6372 milhões de euros. Agora diz-se que com a "... separação entre a operação e a gestão das infra-estruturas verifica-se que um operador independente obteria uma rentabilidade financeira positiva".

Claro que hoje a TIR cresceu! Passou de negativa para os +5,75%, muito embora tenham esquecido que o Estado ainda exige uma taxa real de 4% e uma taxa de inflação de 2% que se deve colocar sobre aquela... (Pst! Dá mais de 6%, cuidado!...). Mas a delícia final é a estimativa feita no novo estudo para a receita fiscal. Então não é que "este estudo concluiu que, ao fim de 30 anos, a receita fiscal do Estado tenha, em termos acumulados, aumentado 63,6 mil milhões de euros"? Agarrem-me o ministro das Finanças e não o deixem beliscar um centímetro, arrancar uma cavilha que seja ao TGV! Estava eu e as agências de rating preocupados com o saldo da dívida pública portuguesa! É simples! Só o TGV paga metade da dívida pública directa actual, e a coisa é de tal ordem que quase nem é preciso pôr o país a fazer mais nada! Já reparou, António, como será bom? Pomos uns banquinhos ao longo da linha e ficamos a ver passar os comboios! Se tivessem um pouco mais de coragem, estou certo de que ainda seriam capazes de fazer melhor...

Receba um abraço deste seu amigo que lhe deseja rápidas melhoras, um Duque à disposição.

«Expresso» de 6 Fev 10

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O Joio e o Trigo

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Por Maria Filomena Mónica

NÃO VOU COMENTAR os artigos que os Prof. Doutores José Alberto de Azeredo Lopes e Maria Estrela Serrano, doutorados pela Universidade Católica do Porto e pelo ISCTE, escreveram, a propósito do anunciado encerramento do programa de Marcelo Rebelo de Sousa e do texto que, sobre tal assunto, aqui publiquei. O leitor teve acesso directo ao que povoa aquelas cabeças.

Para o caso de não se ter apercebido suficientemente do que se tratava, esclareço: a coberto da defesa do «pluralismo ideológico», a ERC pretende intervir na programação da TV estatal, de forma a favorecer o governo do dia. Apesar dos seus doutoramentos – abstenho-me de dizer o que quer que seja sobre a qualidade das instituições que os concederam – não penso que estes indivíduos tenham o prestígio suficiente para estar à frente de uma entidade que exige uma cultura geral invulgar, uma elevada capacidade intelectual e uma independência política à prova de bala.

Ao escrever o meu artigo – já o segundo, visto, em tempos, o ter feito quando Marcelo foi saneado da TVI - nunca pensei que estava a tocar num ninho de víboras, mas foi isso que aconteceu. Ao longo das várias décadas em que tenho vindo a público a fim de expor as minhas opiniões, jamais recebi telefonemas como os que, desta vez, me chegaram. Excluindo a hipótese de os jornalistas que me contactaram estarem todos bêbados, alguém – e não estou a acusar a ERC, porque não tenho provas – andou pelas redacções a espalhar boatos. Não julguem que me intimidam. Na presunção de que existirão sempre órgãos que possam exibir vozes dissidentes, continuarei a dizer o que penso.

Por ter ficado deprimida com o incidente, dei comigo a reflectir sobre se haveria algum organismo, em Portugal, pelo qual nutrisse o mínimo de respeito. Descobri o Tribunal de Contas, uma instituição que, segundo me é dado julgar, tem exercido competentemente o seu papel de vigilante das contas do Estado. Antes que me perguntem se alguma ligação familiar existe entre mim e Guilherme Oliveira Martins, respondo, desde já, pela negativa. Encontrei-o nalguns colóquios, durante os quais trocámos, quando muito, uma dezena de palavras. Quem o tenha visto na TV, poderá concluir que tão pouco é pelo seu carisma que o vou louvar. Faço-o pela isenção que tem demonstrado no exercício do cargo.

É verdade que, às vezes, a função faz o homem, mas este também faz a função. Quando foi nomeado Presidente do Tribunal de Contas, Guilherme de Oliveira Martins, que descende de um historiador que escreveu livros tão geniais quanto Portugal Contemporâneo e outros tão medíocres quanto A Vida de Nun´Álvares, foi olhado com desconfiança, por, em vários momentos, ter sido ministro de governos dirigidos por António Guterres. A presunção era a de que, estando próximo dos socialistas, não exerceria o cargo com independência. Até eu o imaginei.

Enganava-me. Basta ver o que, no relatório sobre 2008, se publica. O Tribunal de Contas não valida – o que é grave – o défice apresentado na Conta Geral do Estado. Não contente com isso, afirma que a contabilização das receitas do Estado não cumpre os requisitos legais; que a Segurança Social cometeu «erros significativos» na classificação das receitas e das despesas; que a contribuição de serviço rodoviário criada para financiar as Estradas de Portugal não foi devidamente orçamentada; que existem deficiências na afectação do IVA; que há falta de transparência na passagem de dinheiros do Fundo de Estabilização da Segurança Social por off-shores; que a Inspecção Geral de Finanças detectou irregularidades no crédito bonificado; que há incoerências no valor da receita cobrada por alienação de bens do Estado; que o aval do Estado ao empréstimo de 450 milhões de euros contraído pelo BPP junto de outros bancos não cumpriu os requisitos exigidos por lei e até que o governo autorizou indevidamente um subsídio de 9 milhões de euros à Fundação Ricardo Espírito Santo. Deste enredo, retiro duas conclusões: a primeira, a de que não importa tanto a forma como se é nomeado, mas quem se escolhe para a função; a segunda, a de que o Tribunal de Contas é a única oposição que existe em Portugal.

«i» de 1 Fev 10

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Problema

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Por João Paulo Guerra

O problema das escutas é que as escutas são várias ordens de problemas.
UM PROBLEMA de privacidade devassada, a que se recorre por tudo e por nada e fora de controlo judicial razoável, e que raramente se contém nos seus limites judiciais, em particular em casos mediáticos. E também porque o conteúdo das escutas pode gerar situações em que o direito à informação se sobrepõe à privacidade, o que poderá ser motivo de problemas para os escutados.

Em geral os visados pela divulgação de escutas sobrepõem o segredo de justiça à própria justiça. E assim, em vez de se discutir e esclarecer se o Governo teve ou não teve um plano para o controlo dos media, ou se os árbitros de futebol foram ou não presenteados com cabazes de "fruta", por quem e com que fim, passa a discutir-se como é que as escutas aparecem transcritas nos jornais ou em exibição no Youtube. Cada discussão tem a sua razão de ser e o seu lugar. Mas nenhuma pode ou deve anular a outra. E responder sobre o conteúdo de uma questão alegando vício na forma é escamotear os problemas.

E há mais. A divulgação de certas escutas, ou de outros meios, que depois por artifícios legais não servem como elemento de prova, suscitam diversas perplexidades. Se não servem como elemento de prova, quem as fez, com que autorização e com que fim? Porque se é verdade que há escutas a mais e fora de controlo, também é certo que há muita porcaria que vem à superfície nas escutas sobre a qual o quadro legal passa uma esponja.

A tudo isto, o poder prefere discutir de onde e como é que fugiu determinada escuta em concreto, procurando que tudo acabe com a decapitação do mensageiro. Em geral não é possível saber. Mas sempre se deixa de falar na letra para trautear apenas a música do costume.

«DE» de 11 Fev 10

Obrigado, Marcianos!

Por João Duque

Fui, com curiosidade, ler o Orçamento do Estado para 2010 focado, exclusivamente, nas Parcerias Público-Privadas (PPP). O que vi levou-me do inferno ao céu...

O PRESENTE ORÇAMENTO de Estado para 2010 começa por dar nota de uma avaliação que o Estado faz da sua experiência em PPP. Citando: "A experiência adquirida tem vindo a demonstrar que a contratação através de PPP envolve níveis de complexidade consideráveis, designadamente no que diz respeito a uma adequada repartição dos riscos envolvidos e quantificação de encargos, ao apuramento do comparador do sector público e, de um modo geral, à avaliação da eficiência que deve estar associada à opção por esta modalidade de contratação." Isto é em bom português: "a coisa é complexa e nem tenho bem a certeza de que seja um bom ou um mau negócio..."

Mais adiante acrescenta-se: "É imperioso desenvolver, consolidar e aperfeiçoar os princípios gerais de eficiência e economia subjacentes às PPP, orientados especialmente para assegurar o rigor e a exacta ponderação dos custos e benefícios das opções tomadas, tendo em conta a criação de encargos de médio ou longo prazo que lhes são inerentes e que poderão perdurar por várias gerações." Mais uma vez, em linguagem de gente: "como estas decisões têm implicações sérias para os meus filhos, o melhor é ver bem em que alhada nos estamos a meter... Sabe bem ganhar eleições, mas daqui a 10 anos ninguém quer pagar os lugares agora conquistados no Parlamento..."

Ora, como não sabemos o que isto pode significar porque o Gabinete de Acompanhamento do Sector Empresarial do Estado, das Parcerias Público-Privadas e das Concessões não permite ao Governo esse conhecimento, toma-se a medida adequada da Administração Pública Portuguesa: mantendo o organismo em causa que não fez, cria-se um novo para fazer. Normalmente, na orla privada da economia, encerram-se os organismos que não cumprem os objectivos...

Depois passei à análise dos números e verifiquei, com espanto, que o valor actual líquido (VAL) dos encargos líquidos para o Estado com as PPP para os próximos 40 anos era apenas de 8.521,4 milhões de euros... Uma ninharia para tanto debate e ‘frisson'... A coisa ficava ainda mais leve quando confrontei com os mesmos cálculos realizados sobre o Orçamento de estado para 2008 e 2009. Nesses orçamentos, e fazendo um cálculo semelhante, o VAL dos ditos encargos líquidos para o Estado com as PPP era em Dezembro de 2007, 17.792,2 milhões de euros e em Dezembro de 2008, 23.260,8 milhões de euros.

Isto é, a grande bolha que parecia empolar-se tinha rebentado e o problema nem parecia agora tão relevante... Mas eis que fui ver as rubricas que compunham os ditos encargos líquidos anunciados. E foi aí que percebi: o quadro com os encargos apresentado no Orçamento de 2010 não é comparável com o dos anos anteriores. Sumiram-se os encargos com as Concessões e Subconcessões Rodoviárias!

Provavelmente não vamos pagá-las! Irão ser pagas pelos extra-terrestres. Obrigado, Marcianos!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Tradução portuguesa de João Palma-Ferreira

Texto original de J.D.Salinger

Liberdade, eis a questão

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Por Baptista-Bastos

A QUESTÃO É ESTA: há liberdade de imprensa em Portugal? É ociosa, a pergunta, para quem, como eu, vem do tempo em que se escrevia baixinho, tão baixinho que perdêramos muitas das palavras, por mudez e falta de uso. Já me não surpreende a desvergonha de alguns daqueles que têm desfilado nas televisões a proclamar que vivemos numa asfixia. Mas indigna-me o silêncio calculado dos que se não erguem a protestar contra a ambiguidade do assunto.

O alvo, naturalmente, é e tem sido José Sócrates. O homem mente compulsivamente, denegou os testamentos da esquerda, bandeou-se com a direita procedendo às mais graves traições, não possui bússola ideológica, ignora o que são convicções, é destituído de compleição de estadista e cultiva uma mediocridade feliz dissimulada numa incontinência retórica que, amiúde, o emparelha com um vendedor de feira.

Depois disto e com o desenrolar de acontecimentos que o perseguem, porque por ele próprio provocados -, chega-se a este melancólico resultado: José Sócrates é tolo, ingénuo ou extremamente sinistro. As escutas esclarecem não só os contornos desses defeitos como no-lo dizem da desastrosa escolha das suas companhias e das relações perigosas que tem sustentado. Enfim: Sócrates não tem amigos; tem instantes de amizade.

Os documentos agora revelados e alguns esparsos factos ocorridos alinham-se como consequências uns dos outros, e apontam para o primeiro-ministro, sublinhando os defeitos por mim acima indicados com amena benevolência. Se havia um plano tenebroso para controlar a comunicação social; se a censura está instalada no cerne da sociedade portuguesa, é bom que se crie a tal Comissão Parlamentar de Inquérito, a fim de se averiguar a extensão e a natureza do crime - como será urgente que os jornalistas vítimas do fluxo censório venham à praça queixar-se das suas desventuras.

Há algo de torpe neste alvoroço. Um ex-ministro, agora protestador grave e atroz, foi, na sombria década cavaquista, controleiro da RTP. E um dos agora acusadores da falta de liberdade era o zeloso varejeiro do noticiário. Não cauciono, de forma alguma, tentativas de domínio da imprensa pelo poder político. Mas não colaboro neste imbróglio, que tem estimulado a perda do sentido das coisas e a adulteração da verdade histórica. A reabilitação de falsos fantasmas apenas serve para se ocultar a medonha dimensão do que ocorreu na década de 80. Os saneamentos, a extinção de títulos, a substituição de direcções de jornais e a remoção de jornalistas incómodos por comissários flutuantes eram o pão nosso de cada dia. Já se esqueceram?

«DN» de 10 Fev 10

«A Quadratura do Circo» - Lisboa é linda e está feia

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Por Pedro Barroso

AS OBRAS são eternas. A programação é pouca, quase descuidada.
Fecha-se um pavimento e festeja-se e, aparentemente, termina-se; para afinal, depois, se descobrir já não ser assim. Aí, três meses depois, tem de se tornar a expor as tripas de fora e, num intestinal exibir de canos e tubos, esburacar de novo para fechar nunca se sabe quando. Porque, afinal, faltava o plano de pormenor, a planta do metro, o acordo com o gás. E o orçamento escorregou.
Lisboa está feia porque se alonga num Terreiro de Paço eternamente manco e sem fim à vista. Cais das colunas lindo e limpinho, mas sem sequência marginal. Calcetamento de bom gosto mas que vai dar à velha estação para Cacilhas. Vai ser difícil compor aquele puzzle.
Meu Deus, acabem Lisboa de uma vez por todas. Parece que nunca está acabada.
Componham os canos e todas as tripas obscenas da cidade. Reparem as águas, os esgotos, e o gás, e as calçadas, e os buracos das chuvas. E ponham as netcabos todas, e as fibras ópticas todas, já por conta de tudo o que há-de vir. Programem!
E mais. Mantenham vigilância, que diabo! Eu não sou funcionário da Câmara e vejo todos os dias coisinhas por fazer que eram, sei lá, uma hora de trabalho, no máximo duas. Um instante, e ficavam bem.
Será que não há piquetes de ronda a ver o mesmo que todos nós vemos? Ou não há dinheiro para executar coisas tão simples? Ou o que falta é a mera organização e coordenação dos serviços?
Lisboa está feia porque uma estúpida lei de inquilinato, ou arrendamento, ou lá o que foi, permitiu que senhorios morressem à fome antes de poderem actualizar rendas de vinte e trinta escudos. Os prédios, obviamente, caíram, estão feios, a rachar, ou ruirão com mais um próximo Inverno ou dois. E as suas fachadas feias poderão ser telegénicas, mas integram um filme triste de torpor, tristeza e pobreza colectiva de que dificilmente nos podemos orgulhar.
Lisboa está feia porque os velhos símbolos geracionais não são preservados como memória.
O velho cinema Paris, ali à Estrela, onde eu ia fingir que tinha dezassete anos e ver filmes para adultos - pedaços avulsos de nudez, passados na lente envelhecida de uma censura descuidada - é um insulto por onde não passou ainda a vergonha da cidade.
Catedral dos sentidos me foste, velho e abandonado teatro de emoções e calafrios.
Que será feito dos outros?
O Ideal, no Loreto; o Rex; o Condes, hoje Rock; o Olímpia, hoje, tanto quanto percebo, saída traseira do La Feria; o Bélgica; o Cinearte, hoje Barraca; o Jardim Cinema, hoje estúdio de televisão; o Chiado Terrasse, hoje Banco, salvo erro… o Restelo… o Cine Oriente…
E tantos outros que morreram às mãos da história transformada, por vício de up grade de economias em investimentos putativamente mais rentáveis.
Ai amigos, a idade já tem memoria demais, é o que é…
Já vi partirem o velho e inesquecível D Maria, onde vi o velho Assis Pacheco dar lições de representar. O Avenida, onde ainda lembro a Guida Maria, ainda criança, fazer o papel da sua vida. O Laura Alves, que deu em sapataria, e hoje nem sei quê. O Vasco Santana, onde cheguei a ajudar a Luzia, a Helena Feliz e o Luís Santos nas “Mãos de Abrãao Zacut”. O Monumental, onde actuei. E os velhíssimos Capitólio e Maria Vitoria e ABC, que por vezes lá renascem com umas valentes vassouradas, para logo mergulharem num vazio sem protecção, nem futuro desenhado com clareza… O Belém Clube, que está adormecido. E tantas salas e salinhas lindas velhas esfarrapadas que eram tertúlia e sonho e fantasia, mergulhadas no descalabro de uma cidade que perdeu respeito à sua história íntima.
Estão como o velho Olympia na minha terra, que, por ter os Castello Lopes entre os seus ilustres, teve direito ao privilégio de cinema a sério desde os idos de cinquenta. Hoje com sala às osgas e cadeiras às aranhas. Assuntos complicados, eu sei.
Pelo país fora encontraria motivo para aqui ficar fazendo livro e muro de lamentações. Conheci teatrinhos demais por esse Portugal afora, hoje tristes, mortos, abandonados.
Vergonha. Quando será que as verbas da Cultura, tão esbanjadas e magnânimas, por vezes em iniciativas de muito discutível utilidade, e algumas edilidades menos atentas compreendem que estes são espaços de memória colectiva, teatrinhos de bolso, testemunhos de uma época singular, mas onde se formou e germinou - discreta mas determinada - uma geração que, afinal, teve força e dessa vivência fabricou a Liberdade?
Mas regresso a Lisboa, onde fui menino.
A tal que está feia e é linda. E sendo linda, insiste em estar feia.
E não falo dos Jerónimos, Torre de Belém, Castelo, Igrejas ou Conventos. Não.
Falo de memórias de vida vivida que foram paradigma de gerações. Esses contemporâneos espaços, - incluindo o mais recente Quarteto, porque não? - são também eles arquivos de uma memória ameaçada que diz respeito a todos nós. São história recente, ainda em estado de lembrança viva. Apetece por isso perguntar.
Caramba, seria assim tão caro e difícil comprar e requalificar essas referências? Acabar as obras? Dar à cidade o descanso enriquecido de parques e jardins tratados? Oferecer-nos finalmente o usufruto benigno das prometidas esplanadas? E duma beira estuário tranquila, à maneira…grega… turca…portuguesa?
A doença prolongada dos tapumes e buracos é uma espécie de epidermólise bulhosa, que ataca as cidades incautas e distraídas, e devora a alma dos que lá queriam viver com felicidade.
Lisboa é linda, mas está feia, descuidada.
Porque a sua história era fácil de repor no sítio certo. E não está.
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Foto: Cinema Paris - in Lisboa S.O.S.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O nível do mar

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Por Nuno Crato

IMAGINE-SE NA PRAIA, olhando as ondas rolarem na areia e pensando que a maré subiu mais que o costume. Subiu mesmo? Como poderá sabê-lo? Vai colocar uma marca no local mais elevado onde o mar molhou a areia? Mas o mar avançou até esse ponto porque houve uma onda mais alta. E se amanhã o mar estiver completamente calmo, a maré poderá atingir um nível mais elevado e a onda mais alta ficar aquém da de hoje; ou não?

Medir o nível das águas não é fácil, pois é preciso filtrar o efeito das ondas. É preciso filtrar o ruído, como se diz em estatística. Para isso foram inventados marégrafos. O marégrafo marítimo mais antigo e ainda em funcionamento que no nosso país é o de Cascais. É um casinhoto em forma de guarita, junto à fortaleza, já quase na Marina. Pode ser visitado, mas é preciso falar com a Câmara, que organiza visitas guiadas ao seu interior.

Esse marégrafo, como outros do mesmo tipo, tem uma bóia colocada num poço em contacto com as águas da baía. O poço é um tubo que mergulha pelo mar, de forma que as ondas são amortecidas e o nível da bóia sofre pouco com o seu movimento. A bóia está suspensa por um cabo em contacto com um sistema mecânico. Esse sistema transmite o movimento a uma caneta que marca num papel a altura das águas. O papel roda sobre um tambor e vai registando as variações da maré. O resultado, apesar de oscilações pequenas das ondas, são registos suaves que mostram com grande precisão a altura das águas ao longo das horas, dos dias e dos anos. É complicado, mas todos estes registos permitem estimar os níveis médios das águas do mar e ver a sua evolução ao longo das décadas. As águas estão a subir ligeiramente, conclui-se.

Se esta conclusão necessita de registos históricos de instrumentos complexos, mais difícil ainda é extrapolar estas subidas de décadas para o horizonte de séculos e milénios. Será que a subida que estamos a observar é apenas o equivalente a uma onda mais alta que atingiu a areia e não revela nenhuma tendência séria?

O problema tem sido muito discutido, pois o aumento do nível das águas pode ser catastrófico — salga as águas subterrâneas, prejudica a agricultura, aumenta o nível de inundações provocadas pelas chuvas e acelera a destruição da costa. Mas é difícil extrapolar de uma subida em Cascais, ou noutro ponto costeiro, para uma subida global, provocada pelo volume de água nos oceanos. Esta depende da massa de gelos polares, que por sua vez deriva das temperaturas globais no planeta.

Esta semana chegaram dados novos. Não de Cascais, mas de Israel. A geóloga Dorit Sivan e a sua equipa estudaram uma série de achados arqueológicos costeiros e com eles estimaram os níveis do mar ao longo de 2500 anos. As suas estimativas apontam para variações muito mais amplas que as registadas nas últimas décadas. No período helenístico, estavam metro e meio abaixo do nível actual. Mas poucos séculos depois, no período romano, tinham subido ao nível de hoje. Baixaram em seguida e continuaram a baixar até que há cerca de 500 anos começaram a subir, por vezes com períodos de subida acelerada, ao ritmo de um centímetro por ano. Dorit Sivan conclui que a subida actual não tem nada de característico de que se possa inferir uma tendência à subida. Foi apenas uma onda mais alta que chegou à praia. Será?

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 6 Fev 10

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Jogo

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Por João Paulo Guerra

A política é um jogo e quem está na política joga, para ganhar ou perder, porque perder e ganhar tudo é política. E tal como qualquer jogo, a política mede-se pelos resultados.

SÓ QUE no mais recente jogo político a que o País tem assistido, os jogadores não arriscaram apenas a sua vitória ou derrota: arriscaram seriamente a derrota do País. Disse quem sabe que a instabilidade política foi um dos factores que conduziu ao disparo da taxa de juro da dívida do Estado, à queda da Bolsa em autêntica quinta-feira negra e à colocação de Portugal na condição de presa dos predadores. Ou seja, como disse o antigo ministro das Finanças Medina Carreira referindo-se a estes e outros factores, «andamos a brincar com coisas sérias».

E a verdade é que nesta crise política - ou neste episódio da imensa e interminável crise portuguesa - todos os políticos jogaram. Mas jogaram como jogam estes profissionais do poker que aparecem na televisão: jogam por prémios mas com o dinheiro de patrocinadores. Assim, qualquer um arrisca, vai a jogo, faz bluff ou paga para ver. Só que ninguém perguntou aos portugueses se estavam dispostos a patrocinar o arriscado poker do Governo e das oposições.

O jogo consistiu na extrema dramatização em redor de uma questão na qual se percebe melhor a razão do Governo, e em particular do ministro das Finanças, que os pretextos das oposições, com excepção do PSD que defende um dos seus quintais. Ou seja, no jogo político, para jogar contra o Governo até vale apostar no «regabofe». E da parte do Governo as regras do jogo admitem a irresponsabilidade de considerar a hipótese, ou nem que seja simplesmente a ameaça, de deixar cair o poder de um País à beira do abismo. Ou, pelo menos, à beira do Mar Egeu.

«DE» de 8 Fev 10

sábado, 6 de fevereiro de 2010

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

NO FINAL DE 2006, num almoço em S. Bento com a direcção do SOL, José Sócrates, acompanhado pelo seu staff de assessores e ministros mais próximos, explanou convictamente uma tese curiosa – a de que sabia como a direita dominava os órgãos de comunicação social em Portugal: controlando os patrões desses meios de informação.

A tese estava pouco fundamentada, faltaram mesmo ao primeiro-ministro argumentos para a sustentar. E o encontro em S. Bento com a direcção do SOL, que acabara de ser lançado nas bancas, foi o primeiro e último até hoje. Mas estes três anos e meio vieram comprovar que, mais do que uma diletante tese académica, as palavras de José Sócrates configuravam toda uma linha de orientação do poder governamental em relação à comunicação social: condicionar os patrões (através de satisfação de interesses, da promessa da expansão de negócios ou da ameaça de problemas), colocar jornalistas politicamente alinhados em postos decisores, calar espaços de informação com notícias incómodas, afastar de cena toda e qualquer voz crítica para com o poder em funções.

Não há memória de um Governo e de um primeiro-ministro, de Guterres a Cavaco, de Barroso a Soares, com semelhante pulsão controleira e persecutória da comunicação social. Mas a tese de Sócrates, além de infundada, radica numa ilusão: a de que é possível, numa sociedade democrática, controlar os meios de comunicação, silenciar o pensamento livre e discordante. Pode conseguir-se, temporariamente, a subserviência de vários e até suspender algumas opiniões desalinhadas – como, aliás, se tem visto. Não se consegue é calar tudo e todos, porque a liberdade de expressão e a independência jornalística sobrevivem sempre em democracia, fazem parte da própria democracia.

O episódio das críticas destemperadas ao jornalista Mário Crespo é apenas mais um e vem na senda, entre outros, do ataque transtornado que Sócrates fez ao Jornal de 6.ª de Manuela Moura Guedes.

Há, ainda assim, dois aspectos que impressionam nesta política controleira e antidemocrática. A atitude intolerante e obcecada do primeiro-ministro, que o leva a extremos coléricos de perder a cabeça em público, seja no Parlamento seja num restaurante. E a gente desqualificada e sem estatura moral que o rodeia e leva à prática essa política – as escutas do processo Face Oculta são um bom espelho da degradação a que se chegou.

«SOL» de 5 Fev 10

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Um homem sem remorsos

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Por Baptista-Bastos

TONY BLAIR, ex-primeiro-ministro de Inglaterra, "socialista", católico recém-converso, actual conselheiro de empresas e conferencista de temas vários, fez declarações inquietantes, a uma comissão de inquérito, sobre as suas responsabilidades na Guerra do Iraque. Há muito, perdera a dignidade; restava-lhe, acaso a tivesse, um mínimo de decência. "Faria tudo outra vez", disse, sem que a cara se lhe transformasse em sal podre. Ante o assombro dos inquiridores confessou: em nenhuma circunstância da sua vida, posterior à invasão de Bagdad, "houve arrependimento, nem desculpas, nem remorsos".

Sabe-se: a política deixou de ser pedagogia, para se converter em malícia, omissão e mentira. Neste caso, como em muitos outros, deixa atrás de si um caudal de morte, de destruição, de horror e de ressentimento. Quando da Cimeira dos Açores, em 2003, na qual Durão Barroso foi o mordomo jovial e adulador de Bush, de Blair e de Aznar, os dados estavam lançados e as informações adquiridas. O diplomata sueco Hans Blix, chefe da missão das Nações Unidas, procurara, em vão, durante 2002, as "armas de destruição maciça" de que Saddam teria posse. As advertências de Blix, para travar o inevitável, chegaram a ser excruciantes. Mas o monumental embuste fora montado com cínica minúcia e calculada eficácia. Os senhores da guerra e os seus catecúmenos berravam com tal amplidão que abafavam as vozes da sensatez e do acerto. A lista daqueles que, em Portugal, alinharam na infâmia, só não é patética porque excessivamente abominável.

Perante a tragédia no Iraque, com o lúgubre desfile de crimes contra a Humanidade, de sórdidos negócios de que o ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld é um dos beneficiários (está relacionado com empresas de construção, a actuar em Bagdad), pode alguém, e ainda por cima católico, como Blair, manifestar ausência de arrependimento, sendo um dos responsáveis da carnificina? A inversão de valores parece ter encontrado, no comportamento de muitos políticos, a verdadeira natureza dos seus objectivos. Desejam tornar conversíveis para a "normalidade" o que, ainda não há muito tempo, era entendido como desonestidade e vileza. Blair e seus cúmplices são culpados não somente do que acontece de medonho no Iraque como, também, de manipulação emocional e intelectual de milhões de pessoas.

As coisas vão perpassando, as afirmações de arrogância sucedem-se, a soberba das decisões chega a ser afrontosa porque resulta na miséria moral em que o mundo se afunda - e ninguém é apontado à execração, poucos combatem a hegemonia da desigualdade e da injustiça. Entretanto, os assassinos andam por aí.

«DN» de 3 Fev 10

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

iPad, iPod, iPude

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Por Nuno Crato

SOU UM “TECKIE” — um apaixonado pela tecnologia. Sempre fui. Aderi ao correio electrónico em 1988 e fiz a minha primeira página Web em 1992. Tenho um iPhone. E só não sei se vou comprar um iPad porque tenho já um Kindle. Fico contente sempre que a tecnologia me facilita a vida e tento que as minhas aulas lucrem com a introdução de novas técnicas.

Não sou o único, claro. O meu colega Harm-Jan Steenhuis, um holandês que agora lecciona numa universidade do Estado de Washington, é um dos muitos que gostam também de experimentar as novas tecnologias. Na passada semana, ele alcançou uma súbita e inesperada notoriedade. As suas experiências educativas apareceram difundidas por várias agências de noticiário científico e académico. A imprensa especializada reproduziu-as e a Harm-Jan começou a receber telefonemas de jornalistas. Tudo isso porque escreveu sobre as suas iniciativas recentes de introdução da tecnologia no ensino.

O artigo que publicou relata uma experiência de introdução de testes electrónicos e apareceu no International Journal of Operations Management Education (3–2, pp. 119–148). Harm-Jan e os seus colegas resolveram fazer semanalmente online curtos testes (“quizzes”), para revisão frequente da matéria e avaliação dos alunos. Fazer testes curtos e frequentes é uma técnica antiga — pretende-se que os estudantes vão acompanhando a matéria e percebam onde estão a falhar. A inovação consiste em automatizar esses testes, de forma a que os alunos possam obter imediatamente a correcção das respostas e a sua classificação.

Pouco tempo antes, Harm-Jan tinha experimentado outra técnica, a dos “clickers”, que são pequenos aparelhos individuais onde cada aluno aperta um botão para responder a uma pergunta. São usados em alguns grandes anfiteatros de universidades dos Estados Unidos. A meio da aula, o professor faz uma pergunta. Cada aluno aperta um botão do seu aparelho individual para responder. As respostas são transmitidas electricamente ou por via rádio a um computador que as interpreta. Instantaneamente, o professor fica a saber os alunos que responderam correctamente à pergunta e os que se enganaram. Pode usar os resultados para os classificar ou para perceber se está a ser seguido e onde estão as dificuldades dos alunos.

Harm-Jan Steenhuis e os seus colegas tiveram um grande sucesso com estas técnicas. Os estudantes aderiram, e parece que estavam mais activos nas aulas. No entanto, quando resolveram avaliar os resultados no que realmente interessa, que é a aprendizagem, verificaram que os alunos não tinham aprendido mais. Ficaram surpresos, pois conheciam muitos artigos publicados em revistas de educação que apregoavam bons resultados com as novas tecnologias — falavam da promoção de uma “aprendizagem activa”, de um “maior envolvimento dos estudantes no processo de aprendizagem”. Foram ver esses artigos e ficaram mais surpreendidos ainda. Os tais “bons resultados” referiam-se apenas ao entusiasmo dos alunos. Não a uma melhoria da sua aprendizagem.

Harm-Jan disse-me, cauteloso, “nem me passa pela cabeça criticar as novas tecnologias”. Respondi-lhe que não precisava de mo dizer. Sou bem capaz de ir comprar um iPad, um iPude e instrumentos de todas as letras do alfabeto, mas não vou pretender que os meus alunos vão aprender mais só por causa disso.

«Expresso - «Passeio Aleatório» de 30 Jan 10

NOTA: acerca dos student clickers, ver, por exemplo, [aqui]

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O Saneamento de Marcelo

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Por Maria Filomena Mónica

TENHO UM ÚNICO hobby na vida, discutir o serviço público de televisão com o António-Pedro Vasconcelos. No último fim-de-semana, não falhámos. Durante horas, debaixo da sombra tutelar de um amigo que morreu há já cinco anos, continuámos a conversa sobre as vantagens e desvantagens das televisões públicas e privadas. Educada pela BBC, sempre defendi o serviço público, ou antes, o que existia em Inglaterra durante os anos 1960 e 1970. Com a passagem do tempo, a minha posição (não a dele) foi-se alterando, ou melhor, alternando ao sabor das programações.

No ano passado, deixei pura e simplesmente de ligar a televisão, dedicando o tempo livre a consumir DVD´s produzidos pelo canal americano HBO. Depois de, em 1974, ter esperado que a televisão contribuísse para melhorar o meu país, tendo até aceite o convite do Vasco Pulido Valente, para fazer um documentário, «Nados e Criados Desiguais», e de, mais tarde, ter dedicado mais de dois anos da minha vida a escrever, para «O Jornal» e para «O Independente», crítica de televisão, considerei o meu esforço inútil. Arrumei o aparelho a um canto e nunca mais o abri. Com uma excepção, o programa dominical de Marcelo Rebelo de Sousa, de que sou uma telespectadora fanática. Desde há cinco anos que eu, que jamais deglutira uma refeição diante de um aparelho de televisão, janto um croissant acompanhado a vodka, enquanto ouço as suas «escolhas» dominicais. Nunca falhei, nem sequer quando incompreensivelmente o futebol alterou o seu horário.

Marcelo é um génio, um dos poucos de que a Nação se pode gabar, até porque consegue conciliar, numa só pessoa, as três funções que Lord Reith atribuiu, ao criá-la, à BBC: educar, informar e entreter. Alguns dos meus amigos, imagino que por ciúmes, tentaram, em inúmeras ocasiões, convencer-me de ser ele um homem irresponsável, traidor, maldoso, cruel, pernicioso, sinistro, masoquista, covarde, egocêntrico, sádico e infantil. Nada disto me influenciou. Gosto de o ouvir, ponto, parágrafo.

Não é a altura para aprofundar o que se está a passar, até porque ainda não sabemos o desfecho. Mas já podemos perceber que se trata de uma vingança do eng. Sócrates, o qual terá arranjado, dentro do PSD, uma fila de aliados. Marcelo não é amado dentro do seu partido, o que só lhe fica bem. Isto não me espanta, o que o faz é a passividade de um povo que aceita que uma instituição tão idiota quanto a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – a ERC – meta o bedelho, a coberto de regras absurdas, no quotidiano televisivo. Lá porque o Dr. António Vitorino decidiu ir ganhar dinheiro para um famoso escritório de advogados - o seu direito - temos de ficar privados de ouvir, ao Domingo, o Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa? O facto é tanto mais escandaloso quanto o seu programa é um sucesso de audiências.

Por que motivo a direcção da RTP não dá um coice nas «cotas» que a ERC criou? Se a RTP cancelar o programa do Marcelo, apelo à desobediência civil, sugerindo aos meus conterrâneos que deixem de pagar a licença que permite à instituição subsistir. O que está em risco – não tenham dúvidas – é a liberdade de expressão. Se posso escrever este artigo é porque sei que o governo não me pode tocar com um dedo e, mesmo que pudesse, digo-o sem vaidade, publicá-lo-ia à mesma. Porque não tenho alma de escrava.

Se a RTP quer ter, à força, um Marcelo de esquerda, que o arranje. Dirão que a esquerda não tem alguém com o calibre de Marcelo. Mas será que, da esquerda, desapareceram as cabeças pensantes? Como se imagina, não é nada disto que sucede. Depois da TVI ter feito o mesmo, o que, forçada pela ERC, a RTP deseja é libertar-se de uma voz incómoda. Se, após ter varrido as despensas do PS, a RTP não conseguir encontrar ninguém, ofereço-me para lhe resolver o problema. Uma coisa é certa: o Marcelo Rebelo de Sousa tem de ficar.

«i» de 25 Jan 10