sábado, 31 de janeiro de 2009

«O Tio Prodigioso» e outros títulos

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Quanto pesa o conjunto?
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Estes 5 livros serão oferecidos, pela ordem "de cima para baixo", aos leitores que mais se aproximarem da resposta certa até às 20h do próximo dia 2, segunda-feira.
Cada leitor poderá concorrer uma única vez.
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Actualização 1: o valor certo do peso (537 g) pode ser visto [aqui].
Assim, a classificação é a seguinte:
1.º Musicólogo (erro de 2g)
2.º Alex HAL (erro de 3g)
3.º Joana D. (erro de 7g)
4.º Lino (idem, mas mais tarde)
5.º Susana (erro de 18g)
Pede-se a todos que, nas próximas 48h, escrevam para sorumbatico@iol.pt indicando morada para envio.
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Actualização 2: em relação à 2ª parte do passatempo, ela foi ganha por Alex HAL.
A explicação do adjectivo está relacionada com o facto de "o tal tio", enquanto, entre duas "bocas", enterrava o sobrinho, declarava ao «Sol» ser info-analfabeto ("Nem sequer sei enviar e-mails"), confessava à «Sábado» que ganhara "centenas de milhares de contos na bolsa" e à TVI que era rico.
Que diabo! Se isso não é um tio prodigioso, não sei o que o será!

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Marchar, marchar

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Por Antunes Ferreira
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(…) UM HOMEM QUE TINHA PELO MENOS quatro filhos em três anos!... Era quase um partido! As palavras são de Gervásio Lobato, no seu «Lisboa em Camisa» de 1890. A tradição do anátema sobre os partidos políticos vem de longe, em Portugal. Poder-se-á dizer – e muito correctamente – que não é só no nosso País. Mas, como disse Clement Attle no Parlamento britânico, respondendo ao primeiro-ministro Churchill, «com o mal dos Alemães, não impedimos que nos bombardeiem». Ou seja, o ditado «com o mal dos outros podemos nós» nem é inédito, nem é original.
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O ditador de Santa Comba tinha ódio aos partidos – e afirmava do alto da cátedra de São Bento, que os Portugueses estavam completamente desiludidos com eles. E revoltados contra eles. Este é apenas um exemplo do que nos habituámos a ouvir dizer – e a dizer. Estar contra os partidos é estar contra a Democracia. Porque, por piores que sejam ou estejam, sem eles não existe.
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Veja-se: em 1851, o duque de Saldanha, esse mesmo, o da praça, fundou com mais uns quantos políticos o Partido Regenerador. O rotativismo da monarquia constitucional portuguesa tinha nele um dos pólos da política. O outro era o Partido Progressista. Consultem-se as actas da Câmara de então e ver-se-á o que cada um dizia do outro. E pode-se também ler o que os cidadãos diziam de ambos. Para quê mais referências?
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Neste momento de aperto – estamos certificados e diplomados neste particular – a tecla é repetidamente batida: os culpados disto tudo são os políticos e os partidos. Isto apesar de não nos termos, todos, apercebido do que é uma verdadeira crise. Ou, pior: os que dela têm consciência (e não são tão poucos assim) agem como se ela não existisse. Ou fingem.
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Será que no fingir é que está o gato? Sim, e a todos os níveis. Pessoa escreveu que «o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir a dor, a dor que deveras sente». Dando de barato que somos um país de poetas, por que bulas na política não haveria de cumprir-se esta sentença? Andamos todos a fingir? Sim, é assim. Os que fingem que sabem – e os que fingem que não sabem. Que raio de gente tínhamos de ser…
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Dentre os diversos casos que decorrem, uma vez mais se diz haver motivo para se acusar partidos e políticos. José Sócrates é um mentiroso total e permanente, e, agora, sabe-se, corrupto - afirma-se. Que põe em causa o PS, pelo menos. E o partido com sede no Rato é um ninho de víboras que escolheu para o chefiar um tal crápula – acusa-se.
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Manuela Ferreira Leite é uma inconveniente praticante que, de cada vez que abre a boca, dá tiros diversos nos próprios pés, mas igualmente no PSD – comenta-se. E, cós diabos, andavam a dormir os militantes laranjas quando a levaram a presidente do partido? – pergunta-se? A tese do Morfeu partidário é chefiada pelo antecessor da economista, o médico Luís Filipe Menezes – relembra-se.
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Mas parece que os dorminhocos são espécie que recheia os partidos. Com algumas, poucas excepções? No PCP? No BE? Nestes, o que se diz sobre os sonos e eventuais ressonares não sai a terreiro – constata-se. São, tão só, dois exemplos. Se confirmam a regra, ou não, é questão a avaliar oportunamente, com as devidas cautelas e de posse dos elementos comprovativos. A este propósito, cartas rogatórias are not welcome.
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Sendo assim, continuamos com o folhetim de Alcochete em velocidade acelerada. A pool position já foi há uns anitos. A bandeira axadrezada é que ainda não foi agitada. Nem se sabe quando será. Somos assim, contra os partidos. E contra os políticos. Marchar, marchar.

A geração sanduíche

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Por Maria Filomena Mónica
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CELEBRA-SE HOJE [Set 2007] o Dia Mundial da Pessoas com Doença de Alzheimer, a enfermidade mais tenebrosa que conheço. É por saber que cada vez mais gente dela virá a sofrer que penso valer a pena reflectir sobre o assunto. Recordemos alguns factos. Há duzentos anos, morria-se entre os 30 e os 40 anos e, no caso das mulheres, muito antes, uma vez que uma percentagem elevada de grávidas não aguentava os partos. Existia um ciclo estabelecido: mortos os antecessores, os casais dedicavam-se à educação dos filhos.
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É esta situação que tem vindo a alterar-se. Actualmente, os indivíduos com cinquenta anos têm de cuidar, em simultâneo, de pais em processo de fragilidade acelerada e de adolescentes atravessando turbilhões emocionais. No caso das mulheres, a tentativa de conciliar ambas as tarefas – para não falar do trabalho - pode ser destrutiva, uma vez que o sentido do dever lhes dilacera o coração. Dado que o mundo não vai mudar, só vejo um remédio: envolver os homens, os quais, deixados a si, pretenderão sempre libertar-se de compromissos dolorosos. Finalmente, quando imersas em tragédias deste tipo, as mulheres têm de admitir que cuidar de si é legítimo: um ser emocionalmente arruinado não ajuda quem quer que seja. Ao fazê-lo, a «geração sanduíche» não está a ser egoísta, mas a tentar sobreviver.
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Eis que, no meio disto, apareceu uma comissão oficial anunciando que o governo tem como meta o prolongamento das nossas vidas. Além de constituir uma patetice – trata-se certamente de uma extrapolação das estatísticas – devo alertar o engº Sócrates para o facto de ninguém lhe ter encomendado o recado. É por saber que a Medicina moderna consegue milagres indesejáveis que já redigi um «testamento em vida». Doravante, ninguém me poderá ligar, sem o meu assentimento, a um ventilador, nem alimentar-me através de um tubo naso-gástrico. No que me diz respeito, desejo morrer em paz.
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Setembro de 2007

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

César e a mulher de César






in «Vidas Paralelas» - Plutarco

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Viver em Portugal

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Por Baptista-Bastos
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ANDAMOS TODOS RESSABIADOS. Invejamo-nos, desprezamo-nos; se os outros não tiverem defeitos, inventamo-los; deixámos de ser transeuntes, cidadãos: trespassamo-nos com a indiferença, o ressentimento e o ódio. A notícia da prisão deste ou daquele, banqueiro ou vizinho, amigo ou inimigo, lança no nosso íntimo uma alegria obscena. Não vivemos - existimos no pequeno mundo de obcecações que nos cegam. Que nos aconteceu? Quem nos roubou a humanidade que permite a clarividência e a energia necessárias para suportar a adversidade, a mentira, a infâmia? Tudo nos conduz e nos empurra para um futuro ainda mais amargo, mais confuso e ambíguo do que este presente. E, no entanto, é preciso perceber que o comportamento individual pode responder às exigências dos grandes compromissos e das grandes fidelidades. Todos os dias as notícias são medonhas. Todos os dias tomamos consciência de novas verdades, de novas mentiras e de constantes tentações para a irresponsabilidade. Aquele vai embora e nem um breve aceno lhe concedemos. Aqueloutro foi despedido e a nossa impassibilidade é um muro gelado. Que fizemos de nós? Nós, que somos a nossa própria criação e a criação do outro. Foi esquecida a condição de todos, que considerava a condição de cada qual. As coisas revolutearam confusamente; mas as coisas não aconteceram por acaso. Não conseguimos manter intacto o que era fundamental. E estamos envolvidos numa perplexidade sem limites que provoca desassossegos desnecessários.
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Bom. Não gosto daquilo que o eng.º José Sócrates representa, dos caminhos ínvios para os quais conduziu a pátria e nos compeliu. Porém, ele é o resultado da nossa imaturidade e da nossa atonia cívica e ideológica. Sócrates não tem convicções. Nós, também não. Vogamos ao sabor das contingências. Sócrates, obcecado pelo seu destino individual, tripudiou sobre o nosso futuro comum. Não gosto dele porque nos fez admitir a política do irremediável. Porém, este caso do Freeport fez-me reflectir sobre a natureza da indignidade e os fundamentos da sordidez. Nos últimos três anos, o homem foi acusado de forjar uma licenciatura, de ser homossexual (uma acusação abjecta, com remetente conhecido) e, agora, de estar envolvido numa tecelagem de corrupção. A história escora-se numa trama obscura, mas o estilo caracteriza a procedência. Não pertenço à matilha. As desprezíveis fugas de informação parecem obedecer a um calendário político. Seria Sócrates muito tolo, e não o é, acaso se se deixasse enredar numa teia tão rudimentar e insensata quanto os noticiários no-lo revelam. Creio que esta ruideira não o afectará politicamente. Lembram-se da campanha contra Sá Carneiro? Viver em Portugal é perigosíssimo.

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«DN» de 28 de Janeiro de 2009

NOTA (CMR): Este post é apenas (e como habitualmente) uma extensão do que está afixado no Sorumbático. Para evitar duplicações, pede-se que os comentários sejam afixados lá e não aqui.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Quantas cabalas cabem num metro quadrado?

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Por João Miguel Tavares
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ACHO NOTÁVEL O TEMPO que em Portugal se perde a discutir o timing das notícias. Esta coisa do Freeport, estão a ver?, só existe porque estamos em ano de eleições. Apareceu em 2005. Agora aparece em 2009. Estão a ver, não estão? É mais uma cabala. Uma urdidura. Uma "campanha pessoal". É isso que José Sócrates não se tem cansado de pregar, logo secundado pelo ministro Augusto Santos Silva, que após as suas últimas intervenções merece passar a ser tratado pelo cognome de Platónico Augusto, tal é a forma como dia após dia o seu pensamento se vai confundindo com o do mestre.
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Pois deixem-me que vos diga: estou-me bem nas tintas para o timing das notícias. Comove-me muito pouco que estejamos em ano de eleições. O que eu quero mesmo saber é se as notícias são verdadeiras ou se são falsas. O que eu quero é saber se o primeiro-ministro deste país esteve envolvido em trafulhices imperdoáveis. O timing? Por amor de Deus. Não sei se alguém ainda deposita tanta fé na natureza humana ao ponto de esperar que todas as denúncias sejam desinteressadas, que a vingança nunca habite o coração de quem acusa, que tudo seja sempre feito em prados primaveris e que das bocas só saiam palavras com cheiro a alfazema. Gente dessa deve andar a ver os filmes errados. Há sempre interesses, há sempre golpes baixos, há sempre punhaladas nas costas. Só que, infelizmente, é assim que se costuma chegar à verdade.
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José Sócrates já escapou por entre os pingos da chuva na questão da sua licenciatura, que num país com maior amor à verdade e uma comunicação social mais agressiva poder-lhe-ia muito bem ter custado o lugar. Mas a gravidade do que agora está em causa não lhe permite assobiar para o ar e limitar-se a lançar suspeições manhosas do género "isto são só calúnias e ataques pessoais". Há, de facto, explicações a dar. O caso Freeport cheira muito mal, qualquer que seja o lado por onde se pegue. E mesmo que nesta terra seja tristemente comum o afilhado acabar assessor do padrinho e o primo do presidente da câmara fornecedor da junta de freguesia, ter familiares envolvidos em negócios onde interesses económicos se misturam com favores políticos é um passo em direcção ao abismo. Ainda que o tio e o filho do tio estejam tão ausentes de pecado como a Virgem Maria, a sua simples presença neste processo levanta questões a que Sócrates tem de responder.
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O eterno retorno à tese da cabala, um tique que sobretudo os socialistas têm desenvolvido até à exaustão, passou o prazo de validade. Sócrates que puxe pela sua esburacada memória e esclareça o que tem a esclarecer de uma vez. Mais teorias da conspiração é que não, por favor.
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«DN» de 27 de Janeiro de 2009

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Vá pelos seus dedos

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Por Nuno Crato

JÁ VERIFICOU SE O SEU DEDO INDICADOR é mais pequeno que o anelar? Se assim for, é provável que o leitor seja uma pessoa mais aventureira e disposta a correr riscos do que se acontecer o contrário. Não acredita? Julga que estamos a ler a sina na palma da mão? Eu também não acreditava, até que reparei num artigo acabado de sair na revista da Academia de Ciências dos Estados Unidos (PNAS). Trata-se uma revista séria e muito bem cotada. E o artigo em questão (doi: 10.1073/pnas.0810907106), assinado por três investigadores de Cambridge, é um modelo de análise estatística, de rigor e de simplicidade.
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John M. Coates, assim se chama o líder do estudo, é um cientista que tem estudado a correlação entre essa medida fisiológica, aparentemente banal, e a assertividade, a predisposição para o risco, a aptidão desportiva e outras características humanas. O seu trabalho insere-se numa linha de investigação que tem cerca de 30 anos e que tem vindo a acumular indícios sobre a conexão entre o comprimento desses dois dedos e as características hormonais dos indivíduos, sobretudo os indivíduos do sexo masculino.
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A relação entre o comprimento do indicador e o do anelar, é conhecida como o rácio entre o segundo e o quarto dedos (2D:4D — “second-to-fourth finger ratio”). Costuma ser medida na mão direita, desde o topo de cada dedo até ao correspondente vinco de base, na palma da mão. Sabe-se que, em regra, um dedo anelar mais comprido, portanto um rácio mais pequeno, indica que o indivíduo teve um desenvolvimento fetal mais afectado por agentes andróginos, o que o predispõe a um nível mais elevado de hormonas masculinas. É evidente que esta medida, 2D:4D, é apenas um indicador desse nível hormonal, mas é um indicador muito prático, uma vez que é relativamente fácil medi-lo. Neste trabalho, por exemplo, bastaram aos investigadores fotocópias das mãos dos indivíduos.
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Há alguns meses, John Coates e os seus colegas tinham estudado os níveis de testosterona nos agentes da bolsa de Londres e tinham verificado que o sucesso nas transacções aumentava esses níveis, tornando os corretores excessivamente audaciosos. Os fracassos, pelo contrário, estimulavam a circulação de cortisol, que pode causar uma prudência exagerada. Com o novo estudo, os investigadores de Cambridge, procuraram ver se havia alguma associação entre o sucesso dos corretores da bolsa de Londres e o rácio dos seus dedos.
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Estudaram agora 44 indivíduos, escolhidos por serem os que fazem transacções de alta frequência, ou seja, transacções que são decididas em segundos, mantidas durante pouco tempo, habitualmente uns minutos, e depois desfeitas. Nestas transações rápidas, compram-se activos financeiros, habitualmente os chamados “futuros”, isto é, direitos sobre preços futuros de mercadorias. Esses activos são imediatamente vendidos, mal os preços evoluam favoravelmente. É um tipo de transacções em que não há tempo para fazer análises cuidadas e em que a capacidade de decidir rapidamente e arriscar elevadas quantias é absolutamente crucial.
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Como medida do sucesso dos indivíduos, os investigadores usaram os lucros que eles obtiveram. Os resultados foram estatisticamente significativos. A capacidade de cada corretor para gerar lucros e o tempo que este aguenta uma vida activa nesta profissão estão negativamente correlacionados com o rácio 2D:4D. Há quem diga que são más notícias: haverá alturas em que a gestão dos mercados financeiros se baseia mais na adrenalina do que na racionalidade.

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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 24 de Janeiro de 2009

domingo, 25 de janeiro de 2009

O PRIMEIRO PROTESTO

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Por Nuno Brederode Santos
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MANTENHO O QUE DISSE aos meus amigos aziagos: quem quiser que eu cumpra os lutos tem de deixar que eu faça a festa. E foi assim que passei entre amigos celebrantes a noite da vitória de Obama. Sem esquecer nunca que os interesses que ele irá acautelar são os dos seus, e não os meus. Quando isso se manifestasse, eu logo o notaria. Não me levando a condená-lo, exigir-me-ia pelo menos uma demarcação. Pois é o que aqui faço hoje, formulando o meu primeiro mas veemente protesto. Já vislumbro o gelo na Casa Branca, o embaraço do ministro Luís Amado e o desconforto dos meus vários amigos diplomatas. Mas eu sou a coluna de Sansão. A honradez - e outros valores éticos sortidos - fala mais alto. E também ninguém me cala.
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Obama encarnou a mais litúrgica das candidaturas. Chegou a toda a América e chegou ao mundo inteiro detonando os sonhos, usando palavras mágicas e gestos simbólicos. Evocou Jefferson, Kennedy e Luther King. Mas sobretudo grudou-se à memória de Abraham Lincoln, fazendo do Memorial mais do que é a Casa Branca e jurando a missão na Bíblia que fora dele. Como é possível que tenha escolhido - ou pior: deixado que escolhessem por ele - um Cadillac para limusina oficial do Presidente?
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Isto parece de somenos, mas não é. Compreendo que a escolha teria de recair sobre uma viatura de fabrico nacional - e daí logo adviria o primeiro desencanto. A indústria automóvel americana tem décadas de atraso sobre a europeia (e até já sobre a japonesa). Porque, se a necessidade aguça o engenho, a desnecessidade embota-o. A gasolina barata, a destruição que a II Guerra causou na Europa e a progressão dos mercados cativos no pós-guerra, permitiram que, ainda muitos anos depois, os americanos chamassem automóvel a um chasso: duas toneladas de aço pousadas sobre um "chassis" que não evoluía, mais uma roda em cada canto; lá dentro, dois bancos corridos, dois pedais e uma telefonia. Os cinquentões tardios ainda se lembram dos táxis da nossa infância: Chevrolet, Dodge, Oldsmobile e Pontiac. Uma galeria de carros indistintos, talvez com as excepções - que o foram para o bem e para o mal - dos Studebaker e Nash. As "banheiras" que, mil e uma vezes restauradas, ainda se vêem em Cuba. Dentro deles, eu sentia-me num escafandro, tão alta e exígua era a área envidraçada. Nas curvas, eles adornavam e as crianças riam muito, porque deslizavam violentamente sobre a napa dos estofos.
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Desses construtores impunes, sobressaíam o Cadillac (da General Motors) e o Lincoln (da Ford) - porque o Imperial da Chrysler ficou sempre um furo abaixo - concorrentes directos no luxo para as classes "superiores". O Caddy vendia mais: espalhafatoso, por vezes kitsch, ele encandeava com cromados e rabos de peixe os "gangsters" em fim de carreira e os surfistas da ascensão social meteórica. O Lincoln apostava numa sobriedade altiva, num culto mais antigo, mais europeu. E isto mantém-se, mesmo se os bilionários de herança e tarimba própria preferem importar os Premium europeus.
Ora o carro da Presidência, creio que até "W" Bush, era o Lincoln. O que até me dava jeito, porque o recebi como um red-neck, grunho, pífio e permeável às evangelizações de vão de escada. (Depois, essa visão complicou-se, porque a vida complica sempre o mundo da inteligência). A escolha de um armário deitado, com cinco metros e meio, concebido a custo zero em neurónios de designer, mas sabendo tudo sobre bombardeamentos e emboscadas, parecia-me a mais adequada ao personagem. Agora o mesmo já não vale para Obama. Um motor a óleos pesados, com quase sete litros, debitando uma potência exígua, bebe 34 de gasóleo para puxar pelas toneladas da blindagem, não conseguindo violar os nossos limites de velocidade e fazendo o 0 a 100 em quase 16 segundos (que me permitiriam sempre dar a volta e regressar a casa), tudo isto é impróprio de quem me for simpático. Que tem luxos, dizem eles. Mas, há 34 anos, já os tinha a famosa Chaimite do major Dinis de Almeida. Mas o pior de tudo é ele trocar o nome de Lincoln pelo do Sieur de Cadillac, um aventureiro instalador de feitorias na longínqua "América francesa". A Besta, como lhe chamam, devia ser a escolha de um plantador do Sul, mas não a de um neto dos escravos.
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Indignei-me, como já se percebeu. E rendo sentida homenagem aos cinzentos boicotadores da felicidade alheia: quinze dias são volvidos e já ele está a trair o voto que nem lhe dei. Eles viram bem: toda a ilusão traz a desilusão no seu ventre.
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«DN» de 25 de Janeiro de 2009

sábado, 24 de janeiro de 2009

Passatempo «As Profecias do Bandarra» - Solução

88 gramas

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Obama e o Freeport

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Por Antunes Ferreira
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BARAK HUSSEIN OBAMA foi criticado pelo Hamas. Pelo que disse e fez no que concerne ao Médio Oriente. Recordo que mal se sentara na Casa Branca, o novo Presidente teve de repetir o juramento porque se enganara, ligeiramente embora, no que fizera aquando da investidura. O seu antagonista na corrida eleitoral, John McCain (regressado ao Senado) entrou também logo a matar - «é muito fácil dizer que vai fechar Guantanamo. O difícil é fazê-lo». Falava numa entrevista, tendo-se apressado a dizer que estava na disposição de ajudar Obama. Com amigos ou ajudantes destes…
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De Washington, um despacho da AFP de ontem dizia que «(…) ele declarou o fim da guerra contra o terrorismo do antecessor e começou a sanear a reputação dos Estados Unidos no exterior, ao ordenar o fecho da prisão de Guantanamo». Foi o grande destaque da imprensa americana».
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Mas a Agência diz mais: «O jornal Washington Post afirma que a ordem de Obama de fechar as instalações de Guantanamo no prazo de um ano, acabar com os interrogatórios com tortura e encerrar as prisões secretas da CIA no exterior envia uma mensagem forte ao Mundo e apresenta uma nova era pós 11 de Setembro».
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E muitos mais escolhos vão surgir-lhe no mar encapelado que é hoje o Mundo. Mais correctamente, já surgiram, estão a e surgirão. Ganhou as eleições, já sabia que ia ganhar uma enorme dor de cabeça, mas talvez não tivesse a verdadeira dimensão. É uma cefaleia múltipla, é uma hidra de sete cabeças que ninguém sabe até onde, quando e quanto vai renascer. Que o mesmo é dizer – proliferar à enésima potência.
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Tal como milhões e milhões e milhões de humanos espalhados pelo Orbe, emocionei-me com o discurso da tomada de posse, com o realce que deu à responsabilidade, coisa que anda tão em falta, infelizmente. O destaque dado pela comunicação social a nível mundial ao novo inquilino da White House parece-me pois e para já inteiramente merecido. Veremos como as coisas vão decorrer. Fica no ar o benefício da dúvida.
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Por cá, fiou mais fino. As manchetes de ontem explodiam sobre as «visitas» policiais a tudo que são instalações e casa de um tio do primeiro-ministro. E a televisão fez disso a abertura dos noticiários. As diligências verificaram-se a pedido das autoridades do Reino Unido e reportam-se ao chamado caso Freeport. Com as minudências mais completas, deram aos cidadãos motivos mais do que suficientes para lhes preencher as apetências. O pessoal continua a gostar de sangue.
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Bem pode Sócrates apelar para as autoridades que se ocupam do assunto, pedindo-lhes que dêem a maior rapidez à questão. Bem pode sublinhar que o caso de Alcochete já fora levantado aquando da campanha em que ganhou as eleições por maioria absoluta, o que o levou a São Bento. Bem pode comparar com o que está a acontecer num ano carregado de votações. Debalde.
Realmente, somos, nós os Portugueses, uns tipos muito especiais. Adoramos suspeitar, no mínimo, dos que nos tentam governar. Se um sujeito está no poder, não interessa que diga que fez isto ou aquilo – é propaganda. Muito menos que anuncie o que pretende fazer se ali se mantiver – porque é mentira.
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Siga, portanto, esta marcha antecipada aos Santos Populares. Cada um tem o que merece. Os norte-americanos têm Barak Obama. Nós temos a barraca do Freeport.
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Acrescentado às 16h50m:

Inquiridor ou inquisidor?

Tenho por certo que Ricardo Costa, (o Director de Informação da SICA, pois há tantos) que não pertenceu à PIDE, muito menos à Santa Inquisição. O tempo prega destas partidas: o seu decurso é inexorável, dia após, ano após ano. Não se pode suspender a contagem dele, muito menos voltar atrás.
Quando, hoje de manhã, o primeiro-ministro deu uma conferência de imprensa a propósito do famigerado caso do Freeport, a que me refiro no meu texto, RC surgiu logo de imediato nos nossos ecrãs para, alegadamente, tecer comentários às declarações. Peço desculpa. Foram mais perguntas inquisitoriais ou pidescas. Para mim, como é evidente. Sócrates não me pediu, muito menos passou procuração, para escrever estas linhas .
De acordo com Costa falta (a Sócrates?...) explicar muitíssimas coisas sobre a magna questão. Isto é, faltou. Abreviando. Muitas delas, coisas, alegou, não pretendia que fossem da autoria do chefe do Governo. Mas… ele devia esclarecer. Porque estas ligações familiares… Aliás, no entender de Costa, o tema era preocupantíssimo. Não estou a transcrever, mas penso que não estou muito longe do que foi referido. Só faltou que o comentador/inquisidor exigisse ao chefe do Executivo que esclarecesse quem teria sido primeiro o ovo ou a galinha? Ou qual é a marca da sua roupa interior – e medida.
A José Sócrates, no entender do comentador inquiridor, aplica-se o aforismo a propósito da mulher de César. Não o disse, mas podia subentender-se. Eu pude. E se o ditado tem carradas de razão, porque não aplicá-lo numa situação como esta?
Termino. A sanha persecutória de Ricardo Costa contra o primeiro-ministro não se verificou apenas agora. Vi-a, sem rodeios, na entrevista que o governante deu precisamente à SIC, durante a qual o seu Director de Comunicação nem dava azo a que o entrevistado completasse a resposta. Para mim, má educação.
Conheço RC desde que já uns largos anos, era eu Chefe da Redacção do Diário de Notícias, me entrevistou sobre assuntos de comunicação, quando frequentava o IST. Tratava-se de um trabalho para a rádio universitária a que ele pertencia, já não me recordo com que funções. Era diferente do que hoje é. Naturalmente, o decurso do tempo tem as suas consequências. É das regras.

Férias

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Por Maria Filomena Mónica
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SUSPEITAVA, mas não tinha a certeza. Agora, sei: ir de férias faz mal à saúde. Do que não estava consciente era de que regressar é pior. Aprendi isto em dois artigos, um deles publicado num jornal britânico e outro num português. A «síndrome dos descanso», como lhe chamam, traduz-se em resfriados, dores de cabeça, febres altas e dores musculares. Depois de ele próprio ter sido vítima, o Prof. Ad Vingerhoets, do Departamento do Psicologia da Universidade de Tilburgo, na Holanda, começou a investigar a doença, tendo reunido uma amostra de 1.800 indivíduos, após o que concluiu que 3% adoecia durante o período anual de repouso. Também a Doutora Anne MacGregor, directora da Clínica de Enxaquecas de Londres, notou que, ao cessarem o trabalho, muitos empregados adoeciam. Por seu lado, a Doutora Sarah Brewer, uma nutricionista, recordou que o remédio consistia na ingestão, antes de férias, de um compósito de vitaminas.
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Estava eu a tentar adaptar-me a esta realidade, quando, há dias, descobri que 35% da população activa sofre da «síndrome pós-férias», a qual se manifesta em mudanças de humor, insónias, ansiedade, perda de apetite, irritabilidade e vómitos. Este estudo, feito pela Sociedade Espanhola de Medicina da Família e Comunitária, concluía que a doença afectava particularmente as mulheres, as quais teriam dificuldade em regressar ao emprego, uma vez que tal facto implicava uma duplicação do trabalho, o que se não verificava no caso dos homens. Uma vez em casa, estes limitar-se-iam a berrar pelo jantar, o que é reconfortante. Interrogada sobre a matéria, uma psicóloga portuguesa, Ana Raquel Bastos declarou que, «além da regulação do ritmo biológico ao trabalho é normal que haja alguma ansiedade», tendo, no entanto, advertido que a síndrome não durava. Mesmo sem ajuda especializada, afirmou, uma ou duas semanas depois do regresso, os doentes já estavam bons. Fiquei sem saber o que fazer. Na dúvida, conclui que o melhor era não sair: nem para o emprego, nem para férias.
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Setembro de 2007

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Passatempo - surpresa (com prémio)

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UM DOS ASPECTOS mais referidos a propósito de Obama é o facto de ser o primeiro presidente negro de um país onde, há 60 anos (como ele próprio fez questão de recordar), nem sequer poderia entrar em muitos restaurantes! A propósito disso, o Sorumbático decidiu oferecer este livro ao leitor que, até às 20h de sábado, dia 24, mais se aproximar da resposta correcta à seguinte questão:

Seja A o peso do livro, em gramas
Seja B (um múltiplo de 16) o número de páginas do livro
Seja C a altura do livro, em milímetros, medida na lombada

Quanto dá a soma A+B+C? (Cada leitor poderá dar 2 respostas).

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Actualização: ver o meu comentário das 16h55m.

DISCURSOS OCOS OUVIDOS MOUCOS

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Por Baptista-Bastos
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NA SEMANA QUE PASSOU eles estiveram em congressos, conclaves, magnos encontros. Que nos revelaram? Só estiveram a falar, não disseram rigorosamente nada. Sócrates, Manuela Ferreira Leite, Paulo Portas, em defesa e ilustração de um "sistema" que tem limitado a influência da política na vida das pessoas, estão absolutamente ausentes das numerosas dimensões da realidade. Ouvimo-los com a complacência e o desgosto de quem deixou de acreditar no poder da palavra. E, também, com a sensação de que as construções teóricas deles obedecem a um pequeno teatro mimético. Quando Manuela Ferreira Leite acusa Sócrates de "ser o coveiro da pátria" estamos perante uma forma intrinsecamente instável de politicar. Quando Paulo Portas declama que não fará alianças com ninguém; e quando José Sócrates se recomenda como o principal fautor do "equilíbrio" português - todas estas afirmações são manifestações de fragilidade, degradadas e degradantes. A base, digamos empírica, dos pressupostos contidos nestes discursos está irremediavelmente ultrapassada. O afastamento das pessoas da política e do acto cívico resulta do facto de os dirigentes não se distinguirem uns dos outros - a não ser no modo de vestir.
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Acreditou-se, ingenuamente, num código universal de conduta do capitalismo. Ora, o capitalismo, como se está a ver, não está para aí virado. O "mercado" é alérgico ao Estado, o qual, em condições normais, reduz o perímetro do lucro e afecta a ganância. Um pouco por toda a parte o desassossego alastra como endemia. São escassas as diferenças entre as acções praticadas ou propugnadas pelos dirigentes políticos "com vocação de poder", e as que se registam por todo o mundo. A escandalosa desigualdade de rendimentos, as injustiças generalizadas, o crescente aumento do desemprego, da fome, da miséria, da agitação nas periferias revela-nos que a hierarquia normal de valores foi pulverizada. O poder económico deve subordinar-se à democracia, e não o oposto, como acontece, aliás, de um modo absolutamente desabusado.
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Os discursos de José Sócrates, Manuela Ferreira Leite e Paulo Portas nem sequer ao de leve se inclinaram nestes temas - afinal, a razão de ser dos nossos maiores problemas. As últimas intervenções de D. Manuel Clemente e de D. Carlos Azevedo não só demonstram a preocupação da Igreja Católica como são mais profundas, mais veementes e mais corajosas. Somente as formas em movimento crítico são susceptíveis de reforçar a democracia. Nenhum daqueles três, que desenharam o retrato político da semana, adopta critérios alternativos ao lodaçal em que vivemos - exactamente porque não sabem criar a persistência das diferenças.
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Enfim: haja Obama!
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«DN» de 21 de Janeiro de 2009

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Retrato da educação: «Assustador»

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Por Alice Vieira
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Síntese: «Professores com fraca formação, alunos que não compreendem o que aprendem.»
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Eduquês: «Os professores têm um calão muito próprio e gostava que um professor e a ministra da Educação se sentassem e me explicassem o que é que é a avaliação. O que é que os professores têm que fazer? Para eu perceber!»
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Opinião pública: «A maior parte não compreende e os professores queixam-se disso. Quando 140 mil professores vêm para a rua, é óbvio que devem ter razão, mas não têm toda. A ideia que tenho, desde o princípio, é que a ministra tem razão em querer que os professores sejam avaliados, mas não sabe transmitir o que quer.»
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O que ouve nas escolas: «A primeira coisa que ouço dizer é: “Estou cansada”, “vou-me reformar”, “estou farta disto”, “não me pagam para isto”... É só o que eu ouço.»
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Leis: «As leis são iguais para todos, mas há escolas onde dá gosto ver o trabalho que os professores fazem e a ministra é a mesma! Não é na totalidade das escolas, mas, sobretudo no interior, encontro gente motivada. [...] Mas se está bem para essas escolas, porque é que não está para as outras?!»
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Escola pública: «Há um desinteresse, um cansaço e depois há o problema da formação. Não quero generalizar, mas esta gente mais nova... Qual é a preparação que tem? Converso com professores e é um susto, desde a língua portuguesa, tratada de uma maneira desgraçada, até ao desconhecimento dos autores. Sabem muito de eduquês, mas passar além disso é difícil. Muitos professores têm uma formação muito, muito, muito deficiente. Não só falam mal como se queixam diante dos miúdos. A responsabilização dos professores é fraca, eles não são muito seguros e os alunos sentem-no.»
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Indisciplina: «As manifestações dos miúdos também me perturbam, porque não sabem o que andam ali a fazer. Eles devem é aprender a falar bem, para saber reclamar, reivindicar.»
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Queixas: «Os professores queixam-se que têm de ser pai, mãe, assistente social, educadores... Pois têm! Porque a vida dos miúdos é na escola.»
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Novas tecnologias: «Estamos a queimar etapas, a atirar computadores para o colo de miúdos quando não sabem ler nem escrever. Só devia chegar quando tivessem o domínio da língua e da escrita. Os mais velhos não sabem utilizar a Internet, não sabem pesquisar. Copiam e assinam por baixo. O professor tem que ensinar a pesquisar. Às vezes estou a falar e tenho a sensação nítida de que os alunos não estão a perceber nada do que estou a dizer.»
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Facilitismo: «Há medo de cansar os meninos. Desde 1974 que os alunos têm sido muito cobaias do ministério. Aconteceu uma coisa terrível na Educação: tudo tem de ser divertido, tudo tem de ser lúdico, nada pode dar trabalho. Não pode ser.»
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Inércia: «Quando vou às escolas, esforço-me por transmitir aos alunos que as coisas dão trabalho, mas os próprios professores passam a mensagem de não querer ter trabalho. Quando vou ao estrangeiro, vejo os professores e penso: “Se fosse em Portugal, não era assim”. Fazem [os profs estrangeiros] o que for preciso. Cá dizem que não é da sua competência. A educação é daquelas matérias em que, se calhar, são precisas medidas impopulares.»
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Autoridade: «O professor não tem autoridade nenhuma. A solução passa por mais interesse e mais disciplina. O professor tem que sentir gosto pelo que faz e transmiti-lo. Não é uma profissão como as outras e não é seguramente a de preencher impressos.»
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Manifs: «As manifestações, no momento a que se chegou, não levam a nada, já vimos que agitam, mas não levam a nada. Tem de haver uma solução, senão o ano lectivo perde-se e o culpado não será só um.»
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Entrevista publicada no Público de 19 de Janeiro de 2009

Curtas letragens - "Good luck, mister Gorki!"

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Por Miguel Viqueira
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CIRCULA POR AÍ esta história mas desconheço se chegou a ser escrita, e por quem. Como sempre a achei fascinante, quero assentar aqui o seu registo, para (boa) memória futura...
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Concluído o histórico passeio lunar naquela noite mágica para a Humanidade, Neil Armstrong voltava para o módulo da Apolo XI seguindo Aldrin, e ao subir a escada, consciente ou não de que o micro continuava aberto, proferiu a frase mais misteriosa dos seguintes quarenta anos: “Good luck, mister Gorki!”. Em Houston foi primeiro o desconcerto, depois o pânico: quem demónios era esse tal Gorki, e, sobretudo, que ligações poderia ter com Armstrong, com a Nasa e em última análise com a segurança dos USA? O que estava afinal em jogo aqui? Seria o mais recente e maior herói do mundo um espião a soldo de Moscovo? Imaginem o que se terá passado com Armstrong logo após a apertada quarentena a que os três astronautas foram submetidos no regresso...
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Por décadas tombou um silêncio de ferro sobre as estranhas palavras, que por milagre não chegaram a ser retransmitidas urbi et orbi, até que o esquecimento as varreu de quase todas as memórias. Passaram-se muitos anos, a guerra fria terminou, a corrida espacial também, o muro tombou, e Neil Armstrong, convertido em lenda viva e já para sempre habitante do olimpo dos heróis norte-americanos, dedicava-se a dar conferências para entreter a sua velhice e a receber homenagens por toda a parte. Numa destas um jornalista mais afoito perguntou-lhe, em público, se realmente tinha dito aquelas palavras e, afinal, quem era mesmo esse senhor Gorki. Armstrong baixou a cabeça por instantes, acenou-a levemente, e sorriu com ternura envergonhada. Depois confessou que sim, que era verdade que dissera aquilo, que na altura se guardou o maior segredo entre outras razões porque ninguém iria acreditar, mas que hoje já não tinha qualquer importância nem fazia sentido ocultar a verdade, afinal tudo não passava de um simples episódio da sua remota infância.
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E contou, entre sorrisos embaraçados, que quando era garoto um dia a bola lhe escapou para o quintal do Sr. Gorki, seu vizinho. Saltou a sebe e foi apanhá-la, mesmo por baixo do quarto do casal. Sem querer ouviu então uma acesa discussão entre eles. A senhora Gorki gritava, furiosa: “Sexo oral? Sexo oral...?! Só mesmo quando o miúdo daqui ao lado caminhar na lua!”. No regresso ao módulo, de tão feliz, Armstrong lembrou-se daquilo e a frase saiu-lhe da alma. Eis tudo.
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Pois neste dia histórico para Obama e para os Estados Unidos da América, eu não consigo deixar de pensar nos outros Gorkis que porventura ainda haverá espalhados por aquele imenso e belo país adiante, e desejar-lhes a melhor das sortes...

Mosquitos pitagóricos

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Por Nuno Crato
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ANTES DE SE TER CONTACTO ALARGADO com outras culturas, tem-se a tendência a imaginar que tudo se passa mais ou menos como o que conhecemos. Julga-se que todos deverão gostar de morcela e que não há cidade mais acolhedora que a nossa. Mas quando se começa a experimentar sushi e se lê Coetze, percebe-se que há maneiras diferentes de estar no mundo.
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Uma das louváveis redescobertas do século XX foi a da variedade de culturas, de critérios e de crenças. Muitos pensadores ocidentais perceberam que era necessária e proveitosa uma abertura à diferença. Em arte pensou-se da mesma maneira. Inventaram-se outras maneiras de pintar e criaram-se músicas que antigamente seriam consideradas ruído. Verificou-se que os critérios estéticos variam com a cultura e a educação.
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Uma corrente de pensamento que alastrou as suas ambições da crítica literária à sociologia e à filosofia levou estes pontos de vista ao extremo. Em arte, moral, política, e mesmo ciência, não haveria nada que não fosse dependente da cultura. Tudo seria uma “construção social”, como se começou a dizer.
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Mas será exactamente assim? Não haverá nada mais na ciência? Não haverá o confronto com uma realidade externa? E mesmo na arte? A nossa repulsa pelos excrementos e o nosso deslumbre com os rosados do pôr do sol serão apenas construções sociais? A paixão matemática de Pitágoras com os números que produzem as harmonias musicais será outra pura construção social?
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Há quase 2500 anos, esse sábio grego estudou as proporções entre os comprimentos das cordas dos instrumentos e verificou que há umas que produzem harmonias e outras que produzem dissonâncias. Ficou deslumbrado quando verificou que as proporções harmónicas correspondem a cordas com comprimentos em múltiplos inteiros.
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Em linguagem moderna, fala-se em frequências de sons, medidas em ciclos por segundo, Hertz (Hz). Quando se duplica a frequência de um som, tornando-o mais agudo, sobe-se uma oitava na escala musical. Quando se multiplica uma frequência por 3/2 sobe-se uma quinta, e por aí adiante. Os acordes resultantes são agradáveis ao ouvido. O que é curioso é que a natureza também parece pensar assim.
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Num artigo acabado de publicar pela “Science”, quatro cientistas da universidade de Cornell relataram os seus estudos sobre as canções de amor dos mosquitos do dengue (Aedes aegypti). Não ouviram propriamente “amore mio”, em linguagem de insecto, mas conseguiram verificar que o ritual do acasalamento entre mosquitos desta espécie é precedido por uma sintonização de frequências numa harmónica comum.
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Os machos começam por produzir sons com as suas asas na frequência de 600 Hz — seiscentos ciclos por segundo, qualquer coisa parecida com um Sol na nossa música. Mas ao perseguirem as fêmeas, duplicam a frequência — produzindo qualquer coisa como um Sol uma oitava acima. As fêmeas, que produzem sons de 400 Hz — perto do Dó central de um piano —, respondem multiplicando por três a frequência da sua batida, de forma a se sintonizarem com os machos nos 1200 Hz, que constituem o mínimo múltiplo comum das duas frequências fundamentais. A nota resultante, o Sol, é a harmonia do amor dos mosquitos. Pitágoras não teria conseguido melhor.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 17 de Janeiro de 2009

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Furtar

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Por João Paulo Guerra
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Há 28 detidos por corrupção e peculato nas cadeias portuguesas
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SÓ FALTAM, POIS, 4.999.972 presos para completar o meio país que anda a enganar ou mesmo a roubar outro meio. Falando sério. Os portugueses pactuam com a corrupção, como concluíram os autores de um livro recentemente publicado, e a vista grossa dos poderes à alta criminalidade económica assume foros de completa indecência.
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Um dos casos mais chocantes em matéria de combate à corrupção foi a reviravolta que as propostas do ex-deputado João Cravinho levaram até se tornarem num pacote de inocuidades, sem efeito prático. Tive oportunidade de escrever sobre o assunto uma reportagem que deu manchete no Diário Económico. Todos os especialistas que ouvi depositavam confiança na iniciativa legislativa de Cravinho. Mas a iniciativa morreu e a prevenção e combate à corrupção ficou a zeros.
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De maneira que não admira nada que num país de "casos" o número de presos por corrupção e peculato seja uma caricatura. Este é o país onde os mecanismos da administração da justiça prevêem para o exercício da corrupção dos poderes todas as escapatórias, todas as modalidades de dilação e ainda a demora infinda dos processos e, por fim, a prescrição. E como se não bastasse há uma pedagogia que ensina a respeitar o "chico-espertismo" nacional. Veja-se o caso dos suspeitos e indiciados de corrupção e peculato que "lavam" as suspeitas no sufrágio popular, com grande êxito, aliás. Este ano há eleições autárquicas e os mesmos e novos suspeitos vão apresentar-se a votos, como se nada fosse. E de facto, não é.
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Mudemos de assunto: "Viva quem vence. E vence quem mais pode, e quem mais pode tenha tudo por seu", Arte de Furtar, literatura portuguesa de costumes, século XVII.
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«DE» de 13 de Janeiro de 2009
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NOTA (CMR): Em colaboração com J. P. Guerra, será premiado, com um livro a indicar, o autor do melhor comentário que venha a ser feito, no Sorumbático, a esta crónica até às 2oh do próximo dia 22, quinta-feira.

domingo, 18 de janeiro de 2009

A camisola verde

Por Alice Vieira

NÃO SOU MULHER de superstições.
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Sempre convivi bem numa mesa de 13 pessoas, não me afligem os gatos pretos, não me ralo se estiverem a ler o (meu) jornal por cima do (meu) ombro, não me preocupo se abrirem chapéus de chuva dentro de casa, não acredito que uma carteira pousada no chão afaste o dinheiro, e se não gosto de cabides em cima da cama é apenas por uma questão de arrumação.
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Mas, desde há muitos anos, que não transijo num pormenor: nunca me visto de verde.
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Não tem a ver com nenhuma superstição daquelas que o povo conhece, nem se trata de qualquer acto ostensivo de repulsa sportinguista.
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É digamos – mania minha.
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Mania assente em factos de tempos idos, quando eu era jovem e pensava que todos os amores eram eternos. Quando um dia descobri que não eram, senti-me a pessoa mais infeliz do mundo e, talvez por que então vivesse na cidade mais romântica do mundo, decidi tomar a atitude romântico-heróica de nunca mais na vida me vestir de verde, que era a cor da saia que eu levava nessa manhã.
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(Vá, podem rir à vontade, que eu espero.)
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Mas a verdade — e já lá vão 40 anos! - é que nunca mais me vesti de verde.
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Já fiz uma ou outra tentativa, caramba! não nos podemos deixar levar por palermices dos verdes anos!, e experimentei um lenço, uma t-shirt, uma coisa assim.
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Acabei sempre por desistir.
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Não consigo explicar porquê, mas é assim como se me sentisse a cometer uma traição, e com a certeza de que os deuses me vão castigar por isso.
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Mas na semana passada convidaram-me para ir a um programa da televisão.
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“É agora”, pensei eu, “nada melhor que este princípio de ano para acabar com esta tolice”.
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Vai daí, no próprio dia da emissão (para não ter tempo de me arrepender…) entrei numa loja, comprei uma camisola verde, mas verde mesmo, verde a sério, verde-que-te-quero-verde, e corri para os estúdios, onde tinha de chegar a horas porque o programa era em directo.
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Prendem-me um microfone à camisola (verde!), e lá me sentam ao lado da jornalista, que está ligada pelo ouvido à régie, onde —segundo depreendo — lhe estão a dar alguma ordem de última hora.
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Ela diz-me qualquer coisa que eu não entendo, porque fala baixinho, e repete, mas só à terceira é que percebo:
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“Estão a perguntar-me se não se importa que a sua camisola vá aparecer azul em vez de verde… É que o cenário atrás de si é verde, e por isso temos de mudar a cor, se não não se distingue nada”.
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E lá apareci de azul nos écrans.
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E lá enfiei a camisola verde para o fundo mais fundo de uma gaveta, donde espero não voltar a tirá-la.
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Quem sabe se este não foi um recado dos deuses? Pelo sim pelo não, o melhor é não os provocar.
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«JN» de 18 de Janeiro de 2009

O mistério do pátio vazio

Porque será que as 4 garagens e os 6 'lugares marcados' deste pátio (de um prédio das avenidas novas, em Lisboa) estão quase sempre às moscas?
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No entanto, há mais de um ano que a entrada foi devidamente assinalada (com faixas amarelas), e o letreiro do Art. 14 foi colocado.
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Será que 'isto' explica alguma coisa?
Não sei, mas é provável. Eu, pelo menos, nunca compraria (nem alugaria) um lugar naquele pátio, pois a situação é quase SEMPRE esta, e as autoridades não mexem uma palha...
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Esta última foto foi tirada às 16h35m de ontem, dia 17 Jan 09, um sábado. O dia da semana e a hora são importantes, pois a partir das 14h o estacionamento é gratuito em toda a cidade.
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Há muita gente, na vizinhança, que se interroga: «Que diabo! Qual a razão da sistemática impunidade neste sítio em especial, quando, a poucos metros dali, há carros multados, bloqueados e rebocados todos os dias?!». Bem... eu tenho cá um palpite, mas não o posso dizer aqui...
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Ah! E lembro que esta zona é uma das que que podem dar direito a grandes prémios!! - ver [aqui].

AMÉRICA, AMÉRICA

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Por Nuno Brederode Santos
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NÃO SEI SE O REMORSO curva a espinha e ensombra o gesto. Nem sei o que pesou mais nos últimos dias de George W. Bush. Se a memória de como planeou vingar-se do pai, parecendo querer vingar o pai; se o intuito de refazer a apagada e vil imagem que a primeira metade da vida lhe traçou; se a pulsão da epopeia, às vozes e tambores dos evangélicos; se o ter-se deslumbrado com a simples e prática cupidez de Dick Cheeney. Estes são os condimentos principais que, num filme subestimado mas interessante, Oliver Stone nos propõe para doseamento su misura. Eu não tento o meu. E não excluo uma abordagem mais singela: o que verga Bush são as sondagens de aceitação popular, nesse momento sem remédio que é a passagem aos arquivos da história americana.
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Na partida, ele faz dois grandes protestos de inocência. A ter errado - diz - pelo menos agiu em consciência. E, graças a ele e à sua insónia de sete anos, nunca mais, desde o 11 de Setembro, a América voltou a ser agredida no seu próprio território. Fracos consolos. O primeiro, porque busca salvação impossível, já que filia os erros, não numa actuação que dê margem para a repartição das culpas, mas nesse pessoalíssimo e irrenunciável éter a que chamamos consciência. Não sei o que é uma consciência errada, mas deve ser a pior companhia para a reforma. O segundo, porque dificilmente comove multidões. Tanto quanto me lembro, na sua mais do que bicentenária história, a única agressão em casa foi Pearl Harbour. Antes disso, só uma romanesca invasão pelos mexicanos de Pancho Villa, a quem Carlos Fuentes definiu o estatuto: uma rapsódia de camponeses, guerrilheiros e patriotas, agindo de acordo com regras que não podiam ser diferentes das de uma longa tradição de banditismo. Por isso, os seus sete anos e meio rasgam no mundo um sorriso amargo: é que é um critério pelo qual ele mesmo se coloca em último lugar no grande panteão dos presidentes.
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E, se dúvidas houvesse sobre a imagem com que sai, as cadeiras vazias de alguns convidados, que lhe incensaram a pior das aventuras, falam por si. São homens que não ouvem vozes interiores, mas só os megafones da luta política. Homens que entendem que a moral só emerge nas derrotas e só costuma dar futuro aos outros. Homens como Aznar, Berlusconi e Barroso. Por isso, a sua ausência é um auto de notícia. George W. Bush sai agora para a solidão de um rancho texano. Quando o ouvirem a falar sozinho, estará provavelmente a persuadir o seu cavalo de que o Iraque e o Afeganistão são democracias pujantes e os seus povos amam os EUA. Por prisioneiro que, muito justamente, o seu sucessor seja, na gaiola dos interesses de quem o elegeu e ele representa, o mais difícil do muito que o espera é um estilo e uma atitude que dêem ao mundo razões para esquecer aquele que sai.
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No entretanto, escreve Paul Krugman, no NYT de sexta-feira, 16, que, perguntado sobre se possíveis crimes, cometidos pelo Governo de Bush, seriam investigados, Barack Obama respondeu que ninguém está acima da lei, mas que é preciso olhar em frente, e não continuar a olhar para trás. Krugman comenta que esta resposta significa que os detentores do poder estão, de facto, acima da lei, porque não sofrem consequências quando abusam dele. E condena: "Para proteger e defender a Constituição, não basta a um Presidente obedecer-lhe, ele tem de responsabilizar os que a violam. Por isso, o Sr. Obama deve reconsiderar a sua aparente decisão de deixar impunes os prevaricadores da anterior administração. Porque, independentemente das consequências, essa é uma decisão que ele não tem o direito de tomar."
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Este filme é conhecido. Está na vida, muito mais perto de nós do que qualquer cinema. Interessante - e desafiador - é que ele germine aos nossos olhos, no excelente relacionamento político de dois homens que a esquerda europeia acarinhou no mesmo abraço. Obama, o primeiro Presidente negro, fez a maioria de todas as minorias e acendeu o céu americano, dando asas a todos os sonhos. A sua aventura de vida começou agora, com o dealbar de quatro - talvez oito - anos de luta entre a vontade e a contingência. Aquilo de que menos precisa é que, em nome de puros princípios e sem olhar a consequências, lhe comecem a laminar os grandes consensos que forjou para enfrentar todas as crises que Bush lhe deixa no regaço. Krugman, o intelectual e economista que escancarou o Nobel ao jornalismo, tem por aventura pessoal a pureza das causas, a coerência dos valores e um apego, sem máculas nem tardanças, a tudo aquilo que lhe trouxe a glória de hoje. E cada qual defenderá a imagem que visiona de si mesmo. Crêem na mesma divisa: prosseguir um grande desígnio com a flexibilidade necessária e que o não comprometa. Cada qual traçará a sua e subjectivíssima fronteira entre o terreno onde se pode ceder, em nome do bem maior, e aquele em que a lesão de um princípio é o mal absoluto, sendo ocioso estar a medir-lhe as consequências. Há em ambos responsabilidade e vaidade. Mas não somos todos somos assim?
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«DN» de 18 de Janeiro de 2009

sábado, 17 de janeiro de 2009

Corrupção em tempo de crise

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Por Helena Roseta
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EM JULHO DO ANO PASSADO entrou em vigor o novo Código dos Contratos Públicos (CCP), que transpôs para Portugal directivas de 2004. O Código levou anos a ser preparado e foi amplamente debatido. É um texto complexo com regras comunitárias e regras específicas para o contexto nacional, entre as quais os limites abaixo dos quais se pode adjudicar encomenda pública por ajuste directo. Genericamente, esses limites são de 150.000€ para obras públicas e 75.000€ para serviços. Todas as entidades públicas estão obrigadas a cumpri-los, embora com algumas excepções para determinado tipo de serviços e para certas entidades, nomeadamente o Banco de Portugal e entidades públicas ou privadas que visem satisfazer “necessidades de interesse geral”, que podem fazer ajustes directos até limites mais elevados. Para obras acima de 5.150.000€, é obrigatório publicar o anúncio do concurso no Jornal Oficial da União Europeia.
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Em nome da crise, o Governo prepara-se para alterar o CCP com medidas excepcionais que permitam, em 2009 e 2010, que todas as entidades públicas, incluindo autarquias e governos regionais, possam contratar serviços e obras públicas, sem concurso e por ajuste directo, por valores que ultrapassam em muito os limites até agora definidos na lei portuguesa. Em Dezembro passado já foi aprovada a primeira alteração, ainda não publicada, elevando os limites do ajuste directo para 206.000€ no caso dos serviços e 5.150.000€ no caso das obras públicas. Além disso, foram encurtados os prazos dos procedimentos concursais, que podem reduzir-se a 36 dias. Estas alterações só se aplicam a alguns serviços e obras (escolas, energia sustentável, banda larga, apoio à exportação e às PME e apoio ao emprego).
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Caso este regime excepcional seja extensível às autarquias e governos regionais, vão desaparecer na prática os concursos públicos de dimensão nacional. Todas as entidades públicas poderão passar a contratar por ajuste directo serviços e obras públicas até aos montantes máximos a partir dos quais é sempre obrigatório concurso internacional, com anúncio no Jornal Oficial da UE. Ou seja, passou-se do oito para o oitenta, ainda por cima no ano de todas as eleições.
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Vale a pena recordar a legislação de 1999, do tempo de Sousa Franco e João Cravinho, que já tinha procurado pôr ordem na encomenda pública, nomeadamente limitando os “trabalhos a mais” que levam sistematicamente à derrapagem de custos. Os limites gerais abaixo dos quais se podia então fazer ajuste directo de serviços eram de 5.000€, sendo obrigatório o concurso público acima de 125.000€. Entre os dois valores era obrigatória uma consulta ao mercado. Para as obras públicas, os limites eram os mesmos (5.000€ e 125.000€), embora isso tivesse resultado da intervenção da Assembleia, que reduziu a metade o valor inicial proposto pelo governo.
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Em suma: dos 5.000€ para ajuste directo fixados em 1999 passou-se em 2008 para 75.000€ (serviços) e 150.000€ (obras públicas). E pretende-se passar agora, a pretexto da crise, para 206.000€ e 5.150.000€, respectivamente. O salto é excessivo e perigoso. O nosso sector da construção civil e obras públicas tem uma maioria de pequenas entidades que têm direito à concorrência leal no acesso à encomenda pública. Mais de metade das obras camarárias são inferiores a 5 milhões de euros. Este regime, a ser aprovado, vai significar uma brutal machadada na concorrência. E pode ser impugnado pela União Europeia.
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Mas há pior. É no triângulo partidos-autarquias-obras públicas que se geram as maiores oportunidades de clientelismo, financiamento partidário ilegal e corrupção. Com estas regras, escancara-se à porta ao nepotismo e à opacidade – tudo o que pelo menos desde 1999 se tem procurado combater com os novos regimes legais. Sou totalmente favorável à diminuição de prazos, desde que não se ponha em causa a transparência, que o actual portal dos contratos públicos, base.gov.pt, tal como está, não permite garantir. Mas apelo ao governo e a todos os partidos para cortarem caminho: distribuir a encomenda pública pelos amigos e conhecidos é inaceitável, seja em nome do que for. A melhor forma de combater a crise e injectar dinheiro na economia é pagar a tempo e horas, regra que o Estado e as câmaras estão muito longe de cumprir em Portugal.
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DN de 14 de Janeiro de 2009 e www.cidadaosporlisboa.org

Lisboa, Praça de Londres, 15 Jan 09
Estes dois carros estão a ser multados por estarem a ocupar o espaço destinado a automóveis eléctricos - ver [aqui]...
Chama-se a atenção para o prémio que ofereço à primeira pessoa que me envie uma fotografia desses "tais carros" a receberem carga neste local. Ah! O facto de a matrícula ter as letras "CE", como este, não chega como comprovativo!

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Semana de papo cheio

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Por Antunes Ferreira
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SE QUISEREM UMA SEMANA cheia, nem é preciso pedir. Esta que hoje termina ficou a transbordar. De papinho inchado. Repleta de acontecimentos a todos os níveis, como quase todos os sete dias seguidos que em número de quatro ou cinco resultam num mês. Mas, repito, esta tem que se lhe diga. Se torcem o nariz ou franzem o cenho ao enunciado, passo a explicar, dando de barato que não é preciso fazer qualquer boneco.
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Para os que gostam do futebol – foi um fartote. Creio que, neste particular, não haverá grandes discordâncias. À cabeça, naturalmente, a proclamação na Ópera de Zurique (onde a FIFA e o senhor Blatter se haviam de ter lembrado de organizar a gala…) do melhor futebolista do Mundo no ano de 2008. E o prémio foi, como diria qualquer apresentador dos Óscares, para o solista Cristiano Ronaldo.
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Ainda mal acabara o Português de agradecer em primeiro lugar à sua mãe e a seu pai, ainda mal terminar de autorizar a progenitora com um explosivo «podem lançar os fogos!», ainda o Mundo – e não apenas o do futebol – preparava os encómios e as palmas, e já se perfilava no horizonte nacional, normalmente mediano menos, um outro acontecimento: a visita da mão de Deus.
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Exactamente, Maradona, agora seleccionador da Argentina vinha a Lisboa par ver o jogo entre o Benfica e o Olhanense, com o objectivo de ver em acção o compatriota Di María. Querem mais eventos importantes neste domínio do chuto na canela? Não bastariam estes dois para a qualificação inicial da semana repleta?
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Então, lá vai. As acusações feitas ao árbitro Paulo Baptista, de quem se disse que era «benfiquista» ferrenho foram tsunâmicas. Ao anedótico juiz (?), cuja péssima exibição, precisamente na partida da Luz entre encarnados, os da casa contra os de Braga, tudo foi apontado, incluindo a classificação por Mesquita Machado da sua actuação como «um roubo à mão armada». É obra! É do conhecimento público que as arbitragens, por cá, estão pelas ruas da amargura. Mas não se vislumbrou canhangulo nas mãos do portalegrense. Nem sequer corta-unhas. Donde…
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Vire-se a página. A inconcebível novela entre a Rússia e a Ucrânia por mor do malfadado gás proveniente da primeira, que, através da segunda, chegava à Europa, não tem qualificação. A tiritar de frio – e em alguns casos mesmo a morrer – os países europeus clientes do precioso combustível deitaram as mãos, presumo que enluvadas, à cabeça. O Senhor Barroso bem tentou fingir-se Durão. Promessas e contradições continuaram. E, no momento em que escrevo, continuam.
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Nem vale a pena falar da horrenda guerra que se desenrola em Gaza, Judeus e árabes insultam-se e culpam-se mutuamente, o trivial. Só que morrem muitos que presumivelmente não meteram nem sequer estopa para o rebentamento. Vá-se lá saber qual deles é o pior… Um tal Pilatos era homem para voltar a pedir a bacia-lavatório.
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Por cá, como se já bastasse o resto, a Dona Manuela Ferreira Leite disse na Grande Entrevista da RTP que, se ganhar as legislativas e formar Governo (milagre na Terra, só o do Comandante Chesley Sullenberger III, que amarou com o A320 no Rio Hudson) risca imediatamente a proposta do TGV. Saltou logo Mário Lino que contra atacou, lembrando que fora o PSD que acertara com Espanha o traçado do Comboio de Alta Velocidade. Zangam-se as comadres…
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Mas, no meio desta enchente, ficou-me uma acusação, aparentemente em reprise: por aqui, pelo Contenente, somos colonialistas. Já tínhamos sido; agora voltamos a cometer o mesmo pecado. Reincidência, dizem os juristas, é agravante. Caldo entornado?
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Seria, seria, se a acusação não tivesse sido feita pelo impagável bicho da Madeira, o Dr. Jardim, para amigos e conhecidos, o Alberto João. Todos nós, os da Metrópole, na terminologia salazarenta? Pelo menos, o Sócrates, caruncho dixit. O. Bem podia ter-lhe chamado o senhor Sócrates. Como disse o senhor Silva. Então não foi uma semana de papo cheio? Para os crentes: ó Cristo, vem cá abaixo ver isto.

Mozart - Passatempo-relâmpago

Aloysia Weber é a resposta certa. Mais dados sobre a menina estão, p. ex., [aqui].
Pede-se, pois, à vencedora que escreva para sorumbatico@iol.pt indicando morada para envio do prémio, que será um livro infanto-juvenil.
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NOTA: As respostas dadas a este passatempo têm uma curiosidade:
A 1.ª a dar uma resposta que se poderá considerar certa foi "Ana".
No entanto, o nome da donzela, com a ortografia correcta (Aloysia e não Aloisia), foi o indicado, depois, por Neusa.
A solução será enviar a ambas livros semelhantes:«Quem incendiou a biblioteca?» irá para Ana e «Um duelo na biblioteca» irá para Neusa.

Encurralados na Escola

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Por Maria Filomena Mónica
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EM VÉSPERAS DAS FÉRIAS GRANDES, o Ministério da Educação tende a entrar em delírio. O presente ano lectivo não foi excepção: basta pensar nas provas de aferição, em que, num teste de Português do 6º ano, os alunos foram autorizados a dar erros de ortografia. Para os pedagogos a soldo do Ministério, a maneira como os meninos se exprimem não tem, pelos vistos, qualquer importância. Habituada a dislates pedagógicos, já não me deveria escandalizar, mas tenho um feitio impossível.
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Embora há muito não trabalhe neste campo, sou doutorada em Sociologia da Educação, o que me dá alguma capacidade para espreitar por detrás das aparências. E o que nos bastidores se passa é horrendo. Sob a retórica igualitária, que pulula nestes círculos, sob os discursos dos pedagogos que dizem ser preciso valorizar os «saberes» que os alunos trazem de casa, sob a máscara de uma escola para todos, estamos a destruir o futuro das crianças mais pobres.
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Não tenham dúvidas: os alunos que mais sofrem com as experiências pedagógicas que o Ministério inventa são os que mais precisariam de que a escola funcionasse bem, porque, para eles, e só para eles, ela é o único caminho para uma vida melhor. Numa escola que minimiza a importância de se escrever (e de se pensar) bem, essa possibilidade fica-lhes vedada. Ora, a escola actual nada lhes dá. Eles pagam-lhe na mesma moeda, ou seja, deixam-na à primeira oportunidade. Não admira que, por essas cidades, encontremos bandos de jovens que, apesar de terem frequentado a escola durante seis, sete ou oito anos, não sabem ler, contar, nem escrever.
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A política educativa tem consistido num plano, certamente inconsciente mas efectivo, para impedir que os jovens que, há apenas uma geração, trabalhavam no campo e nas fábricas, possam subir na vida, entrando em competição com os filhos dos ricos. Enquanto não tivermos uma boa escola pública, a ideia de que existe uma sociedade onde vigora a igualdade de oportunidades é um mito.
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Junho de 2007

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A GUERRA JUNQUEIRO

Paris, Maio.

Meu Caro Amigo
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A sua carta transborda de ilusão poética. Supor, como V. candidamente supõe, que traspassando com versos (ainda mesmo seus, e mais rutilantes que as flechas de Apolo) a Igreja, o Padre, a Liturgia, as Sacristias, o jejum da sexta-feira e os ossos dos Mártires, se pode «desentulhar Deus da aluvião sacerdotal», e elevar o Povo (no Povo V. decerto inclui os conselheiros de Estado) a uma compreensão toda pura e abstracta da Religião - a uma religião que consista apenas numa Moral apoiada numa Fé - é ter da Religião, da sua essência e do seu objecto, uma sonhadora ideia de sonhador teimoso em sonhos!
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Meu bom amigo, uma Religião a que se elimine o Ritual desaparece - porque as Religiões para os homens (com excepção dos raros Metafísicos, Moralistas e Místicos) não passa dum conjunto de Ritos, através dos quais cada povo procura estabelecer uma comunicação íntima com o seu Deus e obter dele favores. Este, só este, tem sido o fim de todos os cultos, desde o mais primitivo, do culto de Indra, até ao culto recente do coração de Maria, que tanto o escandaliza na sua paróquia - oh incorrigível beato do idealismo!
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Se V. o quer verificar historicamente, deixe Viana do Castelo, tome um bordão, e suba comigo por essa antiguidade fora até um sítio bem cultivado e bem regado que fica entre o rio Indo, as escarpas do Himalaia, e as areias dum grande deserto . Estamos aqui em Septa-Sindhou, no país das Sete Águas, no Vale Feliz, na terra dos Árias. No primeiro povoado em que pararmos, V. vê, sobre um outeiro, um altar de pedra coberto de musgo fresco: em cima brilha palidamente um fogo lento: e em torno perpassam homens, vestidos de linho, com os longos cabelos presos por um aro de ouro fino. São padres, meu amigo! São os primeiros capelães da Humanidade, - e cada um deles está, por esta quente alvorada de Maio, celebrando um rito da missa Ariana. Um limpa e desbasta a lenha que há-de nutrir o lume sagrado; outro pisa dentro dum almofariz, com pancadas que devem ressoar «como tambor de vitória», as ervas aromáticas que dão o Sômma; este, como um semeador, espalha grãos de aveia em volta da Ara; aquele, ao lado, espalmando as mãos ao Céu, entoa um cântico austero. Estes homens, meu amigo, estão executando um Rito que encerra em si toda a Religião dos Árias, e que tem por objecto propiciar Indra - Indra, o Sol, o Fogo, a potência divina que pode encher de ruína e dor o coração do Ária, sorvendo a água das regas, queimando os pastos, desprendendo a pestilência das lagoas, tornando Septa-Sindhou mais estéril que o «coração do mau»; ou pode, derretendo as neves do Himalaia, e soltando com um golpe de fogo «a chuva que jaz no ventre das nuvens», restituir a água aos rios, a verdura aos prados, a salubridade às lagoas, a alegria e abundância à morada do Ária. Trata-se pois simplesmente de convencer Indra a que, sempre propício, derrame sobre Septa-Sindhou todos os favores que pode apetecer um povo rural e pastoral.
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Não há aqui Metafisica, nem Ética - nem explicações sobre a natureza dos deuses, nem regras para a conduta dos homens. Há meramente uma Liturgia, uma totalidade de Ritos, que o Ária necessita observar para que Indra o atenda - uma vez que, pela experiência de gerações, se comprovou que Indra só o escutará, só concederá os beneficios rogados, quando em torno ao seu altar certos velhos, de certa casta, vestidos de linho cândido, lhe erguerem cânticos doces, lhe ofertarem libações, lhe amontoarem dons de fruta, mel e carne de anho. Sem dons, sem libações, sem cânticos, sem anho, Indra, amuado e sumido no fundo do Invisível e do Intangível, não descerá à Terra a derramar-se na sua bondade. E se vier de Viana do Castelo um Poeta tirar ao Ária o seu altar de musgo, o seu pau sacrossanto, o almofariz, o crivo e o vaso do Soma, o Ária ficará sem meios de propiciar o seu Deus, desatendido do seu Deus - e será na Terra como a criancinha que ninguém nutre e a que ninguém ampara os passos.
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Esta religião primordial é o tipo absoluto e inalterável das Religiões, que todas por instinto repetem - e em que todas (apesar dos elementos estranhos de Teologia, de Metafísica, de Ética que lhe introduzem os espíritos superiores) terminam por se resumir com reverência. Em todos os climas, em todas as raças, ou divinizando as forças da Natureza, ou divinizando a Alma dos mortos, as Religiões, amigo meu, consistiram sempre praticamente num conjunto de práticas, pelas quais o homem simples procura alcançar da amizade de Deus os bens supremos da saúde, da força, da paz, da riqueza. E mesmo quando, já mais crente no esforço próprio, pede esses bens à higiene, à ordem, à lei e ao trabalho, ainda persiste nos ritos propiciadores para que Deus ajude o seu esforço.
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O que V. observou em Septa-Sindhou poderá verificar igualmente, parando (antes de recolhermos a Viana, a beber esse vinho verde de Monção, que V. ditirambiza) na Antiguidade Clássica, em Atenas ou Roma, onde quiser, no momento de maior esplendor e cultura das civilizações greco-latinas. Se V. aí perguntar a um antigo, seja um oleiro de Suburra, seja o próprio Flamen Dialis, qual é o corpo de doutrinas e de conceitos morais que compõe a Religião, - ele sorrirá, sem o compreender. E responderá que a Religião consiste em paces deorum quaerere, em apaziguar os Deuses, em segurar a benevolência dos Deuses. Na ideia do antigo isso significa cumprir os ritos, as práticas, as fórmulas, que uma longa tradição demonstrou serem as únicas que conseguem fixar a atenção dos Deuses e exercer sobre eles persuasão ou sedução. E, nesse cerimonial, era indispensável não alterar nem o valor duma sílaba na Prece, nem o valor dum gesto no sacrifício, porque doutro modo o Deus, não reconhecendo o Sacrifício da sua dilecção e a Prece do seu agrado, permanecia desatento e alheio; e a Religião falseava o seu fim supremo - influenciar o Deus. Pior ainda! Passava a ser a irreligião: e o Deus, vendo nessa omissão de liturgia uma falta de reverência, despedia logo das Alturas os dardos da sua cólera. A obliquidade das pregas na túnica do Sacrificador, um passo lançado à direita ou movido à esquerda, o cair lento das gotas da libação, o tamanho das achas do lume votivo, todos esses detalhes estavam prescritos imutavelmente pelos Rituais, e a sua exclusão ou a sua alteração constituíam impiedades. Constituíam verdadeiros crimes contra a pátria - porque atraíam sobre ela a indignação dos deuses. Quantas Legiões vencidas, quantas cidadelas derrubadas, porque o Pontífice deixara perder um grão de cinza da ara - ou porque Auruspice não arrancou lã bastante da cabeça do anho! Por isso Atenas castigava o Sacerdote que alterasse o cerimonial; e o senado depunha os Cônsules que cometiam um erro no sacrifício - fosse ele tão ligeiro como reter a ponta da toga sobre a cabeça, quando ela devia escorregar sobre o ombro. De sorte que V., em Roma, lançando ironias de ouro à Divindade, era talvez um grande e admirado Poeta Cómico: mas satirizando, como na Velhice do Padre Eterno a Liturgia e o Cerimonial, era um inimigo público, um traidor ao Estado, votado às masmorras do Tuliano.
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E se, já farto destes tempos antigos, V. quiser volver aos nossos filosóficos dias, encontrará nas duas grandes Religiões do Ocidente e do Oriente, no Catolicismo e no Budismo, uma comprovação ainda mais saliente e mais viva de que a Religião consiste intrinsecamente de práticas, sobre as quais a Teologia e a Moral se sobrepuseram, sem as penetrarem, como um luxo intelectual, acessório e transitório - flores pregadas no altar pela imaginação ou pela virtude idealista. O Catolicismo (ninguém mais furiosamente o sabe do que V.) está hoje resumido a uma curta série de observâncias materiais: - e, todavia, nunca houve Religião dentro da qual a Inteligência erguesse mais vasta e alta estrutura de conceitos teológicos e morais. Esses conceitos, porém, obra de doutores e de místicos, nunca propriamente saíram das escolas e dos mosteiros - onde eram preciosa matéria de dialéctica ou de poesia; nunca penetraram nas multidões, para metodicamente governar os juízos ou conscientemente governar as acções. Reduzido a catecismos, a cartilhas, esse corpo de conceitos foi decorado pelo povo: - mas nunca o povo se persuadiu que tinha Religião, e que portanto agradava a Deus, servia a Deus, só por cumprir os dez mandamentos, fora de toda a prática e de toda a observância ritual E só decorou mesmo esses Dez Mandamentos, e as Obras de Misericórdia, e os outros preceitos morais do Catecismo, pela ideia de que esses versículos, recitados com os lábios, tinham, por uma virtude maravilhosa, o poder de atrair a atenção, a bem-querença e os favores do Senhor. Para servir a Deus, que é o meio de agradar a Deus, o essencial foi sempre ouvir missa, esfiar o rosário, jejuar, comungar, fazer promessas, dar túnicas aos santos, etc. Só por estes ritos, e não pelo cumprimento moral da lei moral, se propicia a Deus, - isto é, se alcançam dele os dons inestimáveis da saúde, da felicidade, da riqueza, da paz. O mesmo Céu e Inferno, sanção extra-terrestre da lei, nunca, na ideia do povo, se ganhava ou se evitava pela pontual obediência à lei. E talvez com razão, por isso mesmo que no Catolicismo o prémio e o castigo não são manifestações da justiça de Deus, mas da graça de Deus. Ora a Graça, no pensar dos simples, só se obtém pela constante e incansável prática dos preceitos - a missa, o jejum, a penitência, a comunhão, o rosário, a novena, a oferta, a promessa. De sorte que no catolicismo do Minhoto como na religião do Ária, em Septa-Sindhou como em Carrazeda de Ansiães, tudo se resume em propiciar Deus por meio de práticas que o cativem. Não há aqui Teologia, nem Moral. Há o acto do infinitamente fraco, querendo agradar ao infinitamente forte. E se V., para purificar este Catolicismo, eliminar o Padre, a estola, as galhetas e a água benta, todo o Rito e toda a Liturgia - o católico imediatamente abandonará uma Religião que não tem Igreja visível, e que não lhe oferece os meios simples e tangíveis de comunicar com Deus, de obter dele os bens transcendentes para a alma e os bens sensíveis para o corpo. O Catolicismo nesse instante terá acabado, milhões de seres terão perdido o seu Deus. A Igreja é o vaso de que Deus é o perfume. Igreja partida - Deus volatilizado.
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Se tivéssemos tempo de ir à China ou a Ceilão, V. toparia com o mesmo fenómeno no Budismo. Dentro dessa Religião foi elaborada a mais alta das Metafísicas, a mais nobre das Morais: mas em todas as raças em que ele penetrou, nas bárbaras ou nas cultas, nas hordas do Nepal ou no mandarinato chinês, ele consistiu sempre para as multidões em ritos, cerimónias, práticas - a mais conhecida das quais é o moinho de rezar. V. nunca lidou com este moinho? É lamentavelmente parecido com o moinho de café em todos os países budistas V. o verá colocado nas ruas das cidades, nas encruzilhadas do campo, para que o devoto ao passar, dando duas voltas à manivela, possa fazer chocalhar dentro as orações escritas e comunicar com o Buda, que por esse acto de cortesia transcendente «lhe ficará grato e lhe aumentará os seus bens».
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Nem o Catolicismo, nem o Budismo, vão por este facto em decadência. Ao contrário! Estão no seu estado natural e normal de Religião. Uma Religião, quanto mais se materializa, mais se populariza - e portanto mais se diviniza. Não se espante! Quero dizer que, quanto mais se desembaraça dos seus elementos intelectuais de Teologia, de Moral, de Humanitarismo, etc., repelindo-os para as suas regiões naturais que são a Filosofia, a Ética e a Poesia, tanto mais coloca o povo face a face com o seu Deus, numa união directa e simples, tão fácil de realizar que, por um mero dobrar de joelhos, um mero balbuciar de Padre-Nossos, o homem absoluto que está no Céu vem ao encontro do homem transitório que está na Terra. Ora este encontro é o facto essencialmente divino da Religião. E quanto mais ele se materializa - mais ela na realidade se diviniza.
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V. porém dirá (e de facto o diz): «Tornemos essa comunicação puramente espiritual, e que, despida de toda a exterioridade litúrgica, ela seja apenas como o espírito humano, falando ao espírito divino». Mas para isso é necessário que venha o Milénio - em que cada cavador de enxada seja um filósofo, um pensador. E quando esse Milénio detestável chegar, e cada tipóia de praça for governada por um Mallebranche, terá V. ainda de ajuntar a esta perfeita humanidade masculina, uma nova humanidade feminina, fisiologicamente diferente da que hoje embeleza a Terra. Porque enquanto houver uma mulher constituída física, intelectual e moralmente como a que Jeová, com uma tão grande inspiração de artista, fez da costela de Adão, - haverá sempre ao lado dela, para uso da sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.
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Essa comunhão mística do Homem e de Deus, que V. quer, nunca poderá ser senão o privilégio duma elite espiritual, deploravelmente limitada. Para a vasta massa humana, em todos os tempos, pagã, budista, cristã, maometana, selvagem ou culta, a Religião terá sempre por fim, na sua essência, a súplica dos favores divinos e o afastamento da cólera divina; e, como instrumentação material para realizar estes objectos, o templo, o padre, o altar, os ofícios, a vestimenta, a imagem. Pergunte a qualquer mediano homem saído da turba, que não seja um filósofo, ou um moralista, ou um místico, o que é Religião. O inglês dirá: - «É ir ao serviço ao domingo, bem vestido, cantar hinos». O hindu dirá: - «É fazer poojah todos os dias e dar o tributo ao Mahadeo». O africano dirá: - «É oferecer ao Mulungu, a sua ração de farinha e óleo». O minhoto dirá: - «É ouvir missa, rezar as contas, jejuar a sexta-feira, comungar pela Páscoa». E todos terão razão, grandemente! Porque o seu objecto, como seres religiosos, está todo em comunicar com Deus, e esses são os meios de comunicação que os seus respectivos estados de civilização e as respectivas liturgias que deles saíram, lhes fornecem. Voilà! Para V., está claro, e para outros espíritos de eleição, a Religião é outra coisa - como já era outra coisa em Atenas para Sócrates e em Roma para Séneca. Mas as multidões humanas não são compostas de Sócrates e de Sénecas - bem felizmente para elas, e para os que as governam, incluindo V. que as pretende governar!
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De resto, não se desconsole, amigo! Mesmo entre os simples há modos de ser religiosos, inteiramente despidos de Liturgia e de exterioridades rituais. Um presenciei eu, deliciosamente puro e íntimo. Foi nas margens do Zambeze. Um chefe negro, por nome Lubenga, queria, nas vésperas de entrar em guerra com um chefe vizinho, comunicar com o seu Deus, com o seu Mulungu (que era, como sempre, um seu avô divinizado) . O recado ou pedido, porém, que desejava mandar à sua Divindade, não se podia transmitir através dos Feiticeiros e do seu cerimonial, tão graves e confidenciais matérias continha... Que faz Lubenga? Grita por um escravo: dá-lhe o recado, pausadamente, lentamente, ao ouvido: verifica bem que o escravo tudo compreendera, tudo retivera: e imediatamente arrebata um machado, decepa a cabeça do escravo, e brada tranquilamente - «parte»! A alma do escravo lá foi, como uma carta lacrada e selada, direita para o Céu, ao Mulungu. Mas daí a instantes o chefe, bate uma palmada aflita na testa, chama à pressa outro escravo, diz-lhe ao ouvido rápidas palavras, agarra o machado, separa-lhe a cabeça, e berra: - «Vai!»
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Esquecera-lhe algum detalhe no seu pedido ao Mulungu... O segundo escravo era um pós-escrito...
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Esta maneira simples de comunicar com Deus deve regozijar o seu coração. Amigo do dito. - FRADIQUE.
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Capítulo V de «A Correspondência de Fradique Mendes»