quarta-feira, 31 de março de 2010

Capa de livro



Na versão final (em baixo), a capa do livro saiu bem. As gralhas principais (o til fora do sítio e Fagundes escrito com M) aparecem nos cartazes de publicidade (e do lançamento) - apenas uma prova da falta de cuidado (ou de profissionalismo) que parece estar a tornar-se um mal geral.

A vitória do mal-amado

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Por Baptista-Bastos

UMA INESPERADA combinação de timidez, pedanteria, tenacidade e decisão, eis o que subjaz à conquista da presidência do PSD por Pedro Passos Coelho. Contra ele tinha (tem) os grandes tubarões do partido, e verdetes especiais, levemente absurdos, abertamente renitentes. Cavaco detesta-o. A dr.ª Manuela não o suporta: de tal forma que, às escâncaras, escorraçou-o (e a Miguel Relvas) das suas preferências para o Parlamento. Jardim acha-o intolerável e manifesta o seu azedume sem dissimulação. Pacheco Pereira abomina-o. O dr. Rio execra-o. O dr. Sarmento odeia-o. O prof. Marcelo nem sequer sorri, para disfarçar, quando alude ao "companheiro". É um apreciável lote de inimigos, gente poderosa que nada realiza de graça, que procede segundo impulsos amiúde pouco claros - mas cujo comportamento tem tudo a ver com poder e mando.


Mudar foi o título do livro programático de Passos, e o estribilho que o acompanhou na campanha. Mas "mudar" quê e quem? Perguntas ociosas para um partido que vive de mecanismos de ocorrência, ausente de ideologia, afastado do "espírito de missão", unicamente propenso ao trânsito da "alternância" e em contínuo esforço para se manter ao nível da luz. A eleição não ameaçou esse poder nem esse mando. Deixou-os, somente, apreensivos. Que nomes irão revezar os nomes? Que nomenclatura irá substituir a nomenclatura?

Sentimo-nos tentados, por cansaço de Sócrates, por inércia mental, a aceitar uma nova variação dos rostos. Mas os rostos persistem em incrustar-se na nossa História, porque a demonstração da sua "legitimidade" consiste na sua permanência alternada. É óbvio que assistimos à dissolução de uma identidade política, e ao mimetismo linguístico revelador da fragilidade dos dois grandes partidos portugueses. A questão é: conseguirá Passos recuperar o lugar que pertenceu ao PSD, e foi sonegado, exaustivamente, por Sócrates? Finalmente: que posição no pódio deseja, hoje, o PS?, que se sente intimidado pelo novo presidente do PSD, mesmo sem este ter ainda tomado posse.

Há uma troca simbólica de nível, e 61% dos votos não correspondem a uma casualidade circular. O ódio a Passos, no partido, pode, curiosamente, juntar em seu favor as peças tresmalhadas. Viu-se, na noite da vitória, a recomposição das presenças. Pareciam os anacoretas no deserto que, subitamente iluminados, queriam ampliar o reino de Deus. Não há afecto, em política: há urgências e há necessidades de poder. E o poder dispõe de instrumentos que se expressam a si mesmos, numa rotina incansável, porque o poder não possui variantes. Amado ou odiado, Passos Coelho começou a ser um homem sob vigilância.
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«DN» de 31 Mar 10

terça-feira, 30 de março de 2010

Caixas tortas


Lisboa - Av. Sacadura Cabral

segunda-feira, 29 de março de 2010

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

COM A APRESENTAÇÃO do PEC, que é a negação em toda a linha do programa eleitoral com que o PS se apresentou aos portugueses ainda há seis meses, a casa socialista começa a vir abaixo. «Não podemos estar assim a desbaratar o nosso próprio património», protesta Soares. É «um custo social excessivo que vai recair sobre a classe média e média baixa», acrescenta Alegre. «O PS entrou numa deriva à direita», diagnostica Cravinho. «Confesso a minha incapacidade em aceitar que um Governo de centro-esquerda tome esta opção», proclama Pedroso. E até no interior do Governo já aparecem ministros como Vieira da Silva a confessarem publicamente: «Esta situação que nós vivemos, obviamente, não é uma situação que me deixa feliz».

Enquanto a casa socialista vem abaixo, José Sócrates mantém-se em estado de negação permanente e numa atitude de irremediável obstinação: «O PEC é credível. É o PEC de que o país necessita. Dizer que o PEC não aposta no crescimento não é verdade», repete o chefe do Governo em entrevistas e intervenções sucessivas.

A verdade é que este PEC representa, para o PS, o fim das ilusões. É a machadada final, e liberal, numa governação que perdeu qualquer marca de esquerda, que aumentou o desemprego, os impostos e o endividamento do país. Consuma a descrença numa liderança que arrastou o partido para uma teia de suspeições e casos obscuros, incapaz de lidar com a liberdade imprensa e de crítica. Anuncia o desmanchar da feira de um círculo de poder que se vai esvaindo nas suas perversões e contradições.

Para Sócrates, as brechas que se abrem no PS e no Governo são o sinal de que o seu caminho está a chegar ao fim. Debilitado no plano pessoal pela sucessão de episódios mal esclarecidos, desacreditado no plano nacional pelos resultados medíocres de seis anos de Governo (e mais um PEC de austeridade e empobrecimento), também no plano partidário Sócrates começa agora a ser um líder cada vez mais só. Como se vê.

Não sendo provável, a nove meses de eleições presidenciais, uma convulsão política que leve à queda do Governo, Sócrates está obrigado a permanecer em S. Bento até 2011. Por força das circunstâncias e em lenta agonia política.
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«SOL» de 26 Mar 10

E agora?

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Por João Paulo Guerra

E AGORA QUE O PSD elegeu um novo líder, de que valem os pactos com laranja anteriores? Ou será que PS e PSD chegaram a certos entendimentos sob condição ou mesmo à consignação, com prazo para devolver eventuais acordos à procedência?

Não lembraria a ninguém mas lembrou aos dois mais volumosos partidos portugueses, nos intervalos dos golpes baixos que aplicam um ao outro, entenderem-se para deixar passar medidas de médio e longo curso. Isto, tendo em conta que a direcção do laranja estava a recibos verdes e a líder distribuía o seu tempo entre negociações sobre o PEC e arrumações no gabinete da sede do partido.

E agora? Será possível que a democracia portuguesa tenha criado mais uma originalidade, a do líder partidário em liberdade condicional, com uma pulseira electrónica carregada de ‘chips' aos quais a liderança ficou amarrada? O que é verdadeiramente intrigante é que os mais directamente interessados nesta embaraçosa situação - os candidatos à liderança do PSD - discutiram o conteúdo do PEC como se o estivessem a fazer com o PS na qualidade de sucessores do cadeirão da Rua de São Caetano, mas jamais discutiram a oportunidade das apreciações e votações no Parlamento. E agora, se a palavra do novo líder voltar atrás em relação ao verbo de Manuela Ferreira Leite? Lá salta o PS a proclamar que não se pode confiar no PSD, pois um dia diz uma coisa e outro dia diz outra. O que, não deixando de ser verdade, será simultaneamente uma mentira.

O mais interessante é que tudo isto se passou e vai passar à volta de um Plano da pólvora que tem por objectivo a estabilidade. Qual estabilidade? Os tempos mais próximos vão certamente confirmar que a única situação que vai ser possível manter estável em Portugal será a da instabilidade.

«DE» de 29 Mar 10

domingo, 28 de março de 2010

Privatizar os CTT?

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Por João Duque

NA MINHA INFÂNCIA a figura do “cavalinho” era uma imagem fortíssima no reino da comunicação em Portugal.

À porta de um qualquer posto de venda de selos, no dorso de um marco, impresso numa das mais duráveis edições de selos de correio, lá estava a imagem de um cavaleiro a tocar uma corneta enquanto montava um cavalinho a galope.

Durante décadas habituámo-nos. Era assim. A correspondência postal era "A Correspondência". Primeiro não havia telefone, mas depois, logo percebemos que, palavras, o vento as leva, e que nada há como a escrita para uma missiva, um contrato, ou uma jura, mesmo que se trate de Homem que diz que palavra sua não volta atrás...

Ainda hoje o símbolo dos correios é o mesmo cavalinho montado pelo trombeteiro a caminho do destino da nossa correspondência.

Mas os tempos mudaram. Além do telefone e do fax, o e.mail veio trazer ao mundo novas formas de comunicação, e mesmo hoje esse meio electrónico está já a dar espaço a formas mais modernas de troca de informação. O Messenger e as formas de comunicar nas novas redes sociais permitem hoje a pessoas e instituições uma troca cada vez mais eficaz de comunicar.

Esta mudança foi de tal sorte que os "nossos correios" começaram a sentir forte concorrência tecnológica e acabaram por reagir. Levaram anos, décadas, mas lá acabaram por reagir, lançando uma operadora de telefone móvel (phone-ix), uma alternativa à comunicação electrónica (Via ctt) e abriram os seus pontos de venda à mais variada gama de produtos: livros, discos, férias, máquinas de café, jogos, talheres, copos e canecas, malas, almofadas ou até frigoríficos! Vão ver que é digno. E ainda bem que assim é!

Ora porque ainda detêm uma grande rede de lojas, algumas abertas dada a responsabilidade social que a empresa assume, e porque há ainda muitos dos seus utilizadores que não prescindem de uma boa e saudável passeata até ao balcão dos correios, os CTT ganharam valor que está a ser explorado, mas que pode naturalmente ser ainda mais explorado por quem tem uma orientação muito forte para o mercado e não quer desenvolver, com custos elevados, uma rede de balcões.

Privatizar os CTT não é pecado nem pode ser visto como um atentado às funções do Estado. Hoje é mais importante o correio electrónico do que o correio tradicional e até neste segmento, quando se trata de correio expresso ou especial a iniciativa privada faz muito bem. Não é por ser privado que se coloca em risco a independência do Estado. Não é por ser privado que o serviço pode piorar. Aposto que para a maioria dos portugueses o choque da notícia de "vamos privatizar os CTT" não está no facto em si. Está sim no hábito de os vermos como nossos, descobrindo até que ponto nos levaram à ruína, para termos de vender os CTT. Ficamos com a sensação de uma ida "ao prego".
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«DE» de 25 Mar 10

sexta-feira, 26 de março de 2010

«Quem NÃO quer pagar?» - Solução

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432 multas por pagar
perfazendo um total em dívida de €2117,70
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Os dois leitores que mais se tenham aproximado deste valor têm agora 24h para escreverem para premiosdepassatempos@iol.pt indicando morada

A Nossa Luta

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Por João Duque

12 DE OUTUBRO DE 1972. Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa corre o rumor de que os PIDES iam a “Económicas” arrear na estudantada. “- Vamos lá!” Foram vários. Um não voltou.

Com 26 anos e muita esperança José António Ribeiro Santos vê um polícia da PIDE com uma pistola na mão a vociferar contra um grupo de jovens que, numa sala de aula queriam, entre outras coisas, dizer o que pensavam. Ribeiro Santos avança sobre o polícia que, ao disparar o fuzila ali mesmo. Há mais tiros. José Lamego também leva uma chumbada, mas escapa com vida.

Este episódio é uma das histórias que o ISEG retém na sua memória de quase um século, uma escola que formou grande parte da elite do pensamento e da decisão económica e empresarial de Portugal.

Estudei, aprendi e fui avaliado na sala onde morreu o Ribeiro Santos. O nome desse jovem que não conheci foi-se tornando comum para mim e foi com melancolia que assisti à recente demolição dessa sala com o seu nome.

Fiquei com a sensação de que, com esse abate, se perdia uma das memórias dessa Escola, porque não é comum que numa escola tenha morrido um estudante que desejava a liberdade de pensar e discutir as ideias. Uma Universidade é sempre, por definição, um espaço de diversidade e cerceá-la é contranatura.

No mundo globalizado de hoje temos de aprender a trocar bens e serviços, mas também ideias. E ouvi-las, mesmo que nos digam algo diferente do que pensamos. No espaço global, conhecer o diferente é a forma de vencer porque nos aproxima “do outro” com inteligência.

As melhores escolas de Gestão e de Economia que mais ajudam a preparar o futuro profissional dos jovens, são as que mais destrezas dão aos seus estudantes. A exposição à diversidade é, seguramente, um dos melhores meios para se robustecer os educandos. Por isso, escolas com diversidade de culturas e de correntes de pensamento são hoje campos férteis para o desenvolvimento de conhecimento e fertilização de ideias e projectos.

Ensinar e aprender na uniformidade é opção para alguns, é mais fácil e protege quem a ela se acolhe, mas não aproxima da realidade nem prepara para a vida.

Viver é um acto de coragem e de esforço. Sempre foi e será. E mesmo que em certos momentos um episódio nos derrube, forte não é o que não cai, mas o que sabe levantar-se. A morte de um jovem é sempre motivo de grande tristeza pelo que deixa por fazer. O seu contributo para as escolas que o lembram está na riqueza que a liberdade de expressão permite. Ela garante o escrutínio, impõe o zelo, aumenta responsabilidade e permite até a coordenação e afina os princípios.

Nunca o José António esperou que tantos amigos que nem o conheceram estivessem com ele no que seria o dia do seu 64º aniversário, 19 de Março de 2010, ali no ISEG uma escola que, não sendo a dele, com ele ficou.

A luta não termina.
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«Expresso» de 20 Mar 10

Líder

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Por João Paulo Guerra

O PSD VAI A VOTOS para escolher o 17.º presidente da dinastia laranja.

O número de líderes confirma o PSD como o partido da instabilidade da trintona democracia portuguesa: dá pouco mais que dois anos por presidente, apesar do longo consulado de Cavaco Silva adulterar a média. Contando 16 líderes para os 26 anos do PSD sem Cavaco, a média da liderança baixa para cerca de ano e meio. Mas o líder que vier a ser hoje eleito pode ter uma esperança ainda mais reduzida. Depende do que se seguir às presidenciais do ano que vem.

Mas são precisamente as presidenciais que podem auxiliar um pouco o novo líder laranja a libertar-se na canga de muleta do governo PS que tem desempenhado nos últimos anos. É natural que as presidenciais agudizem a confronto político. O PS vai provavelmente apresentar um candidato - irá? - e como partido vai ter que se diferenciar e distanciar do actual inquilino de Belém. Este, por seu lado, tem absoluta necessidade de se demarcar da política do Governo que, por altura das presidenciais, já deverá ter reduzido a maior parte dos portugueses às condições de desempregados, pobres, indigentes e afins. O mal para a classe política não é que haja tantos desvalidos. Pior é que muitos deles votam, embora uma franja vá fugir para o populismo. Mas o líder do PSD hoje eleito pode, por fim, ser mais alguma coisa que um mero editor de críticas inconsequentes à política governamental. O que o próprio Cavaco Silva agradecerá, pois o partido que já anunciou que apoia a reeleição marcará a diferença em relação ao governo. Se o chefe de Estado tem uma cooperação estratégica com o Governo, passará a ter uma cooperação táctica com o líder da oposição.

Em suma, uma trapalhada. Mas nem seria Portugal se assim não fosse.
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«DE» de 26 Mar 10

quinta-feira, 25 de março de 2010

Vergonha

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Por João Paulo Guerra

PORTUGAL ACABA de acrescentar mais um galardão à sua impressionante galeria de troféus: é o campeão europeu de perturbações mentais e ameaça mesmo o titular mundial, os EUA.

Certamente muitos portugueses gostariam de ser moscas, por momentos, para verem como reage a casta governante à sucessão de desaires para o País que ressaltam de todos os índices, indicadores, tabelas e catálogos que comparam Portugal ao mundo civilizado. Manterá a classe governante o sorriso postiço que exibe em público? Ficará consternada, condoída mas esquece rapidamente? Sentir-se-á envergonhada?

Os resultados do estudo nacional sobre saúde mental agora divulgados são medonhos. No último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença psiquiátrica e quase metade já teve uma destas perturbações durante a vida. As doenças mais comuns são as ansiedades e as depressões. E como é que não hão-de andar ansiosos e deprimidos os portugueses? Os portugueses sobrevivem há décadas mergulhados numa crise da qual não se vê o fim mas apenas a crise seguinte, com mais, novos e mais duros sacrifícios, ao mesmo tempo que o mesmo País produz uma florescente casta de nababos que faz da ostentação o seu modo de afirmação. Campeões da desigualdade, recordistas da perda do poder de compra, atletas da precariedade, que se pode esperar da saúde mental deste povo?

Nos tempos do velho Botas assisti a uma cena memorável que agora me ocorre com frequência. Cruzaram-se, numa cidade estrangeira, um conhecido intelectual e um obscuro governante. O segundo cumprimentou o primeiro: "Talvez não me esteja a reconhecer mas eu sou membro do Governo de Portugal". Resposta pronta do José Carlos Ary dos Santos, com aquele vozeirão que atroava os ares: "E não tem vergonha?"
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«DE» de 25 Mar 10

Os mandantes do crime rodoviário

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Por Manuel João Ramos


NO DIA 15 DE NOVEMBRO do ano passado, o ministro da administração interna, Rui Pereira, explicava uma auto-proclamada redução do número de mortos nas estradas portuguesas afirmando que se tratava não apenas de um triunfo da acção governativa mas também de “uma vitória civilizacional do povo português”.

Uma semana depois, entrava e saía do hospital de São José, em Lisboa, em silêncio comprometido. O “seu” secretário geral da administração interna, o Magistrado Mário Mendes, encontrava-se em coma na unidade de cuidados intensivos, com a cara desfeita contra o vidro frontal do seu Audi, em resultado de uma muito noticiada colisão contra o BMW do presidente da Assembleia da República, quando acelerava a mais de 130 km/h pela Av. da Liberdade em hora de ponta.

Semanas mais tarde, o ministro impenitente voltou, com a pungência de um autómato, a repetir as palavras do dia 15 de Novembro.

É difícil encontrar uma grelha de leitura que torne simultaneamente coerentes as palavras de propaganda e comprazimento do ministro, no Dia em Memória das Vítimas da Estrada, e o seu mutismo mortificado da semana seguinte.

O “povo português” esperava que, à saída do hospital, o ministro condenasse firmemente a “acção governativa” de Mário Mendes, que prometesse solenemente que as viaturas do estado não seriam nunca mais um factor de insegurança nas estradas, e declarasse que os detentores de cargos públicos não estão acima da lei que rege a circulação rodoviária.

Em vez disso, o “povo português” assistiu, com a impavidez de quem desacreditou in illo tempore os predadores que o governam, à afirmação de cumplicidade silenciosa de um acto de desconsideração da civilidade pública.

Tanto o ministro como o “povo português” sabem que o comportamento rodoviário dos condutores de viaturas públicas é determinado pelos seus mandantes. Não é por decisão própria que um motorista de veículo do estado conduz a velocidades iníquas, pratica manobras perigosas colocando em risco a vida dos seus concidadãos, e desrespeita as regras mais basilares do Código da Estrada e do bom senso. Os motoristas do Estado são trabalhadores por conta de outrem que obedecem às ordens dos “senhores do poder” que, no uso abusivo da prerrogativa da “marcha urgente de interesse público”, lhes impõem o cumprimento estrito de horários de chegada, em missões públicas ou privadas. Qualquer recusa destes motoristas terá necessariamente como consequência a impossibilidade do exercício dessas funções tal como são ordenadas serem exercidas, e consequentemente a perda das regalias inerentes ao destacamento para o exercício das funções de motorista de figuras públicas.

Os detentores de cargos públicos herdaram do Estado Novo, sem qualquer alteração, uma prática feudal, de submissão dos “seus” subordinados, motoristas neste caso, a um servilismo que lhes nega o direito à contestação a comportamentos rodoviária e socialmente reprováveis. E, como os ministros de Salazar, continuam a esperar que o “povo português” se desvie para as bermas para assistir como basbaque à passagem altiva dos todo-poderosos. A diferença é que agora, em vez dos 500 que haveria no tempo do Estado Novo, há mais de 15.000 viaturas do estado, pagas do nosso bolso.

quarta-feira, 24 de março de 2010

O Problema

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Por João Paulo Guerra

O GRANDE PROBLEMA com a comissão de inquérito ao negócio PT/TVI é, muito simplesmente, o facto de o PS não ter maioria absoluta.


Tivesse o PS, pelo menos, metade dos deputados mais um e outro porta-voz cantaria. E o primeiro-ministro jamais teria que produzir declarações bombásticas do estilo "a comissão de inquérito serve para me atacar". E porquê? Porque o PS cortava o mal pela raiz.

Quem diz o PS, diz o PSD. A diferença, de facto, é que desde meados dos anos 80 do século passado que o PSD não mais governou sozinho, nem que tivesse que coligar-se a um partido-canguru com o qual passasse a vida às turras. Mas para estes casos, dá muito jeito. Abortam-se a comissão e o inquérito à nascença e já ninguém passa pelo incómodo de ter que ir a respostas ao Parlamento. E o PS, que pela terceira vez em 15 anos está a governar em minoria, defronta-se agora com esse imenso problema. Vai daí, mecanismos previstos na Constituição para que o Parlamento exerça a sua missão de "apreciar os actos do Governo e da Administração" são vistos de esguelha pelo poder executivo. Restaria saber se um primeiro-ministro pode rotular uma iniciativa parlamentar aprovada nos termos constitucionais como "um acto de profunda hipocrisia política" destinado a "instrumentalizar a Assembleia da República", sem que isso constitua ofensa a um órgão de soberania.

Tudo isto confirma que a democracia exige uma longa aprendizagem e exercício, não é coisa que se tire num cursilho de fim-de-semana. E o problema dos nossos políticos é a pressa. Metem-se à estrada com meia dúzia de promessas, ganham eleições, tomam posse e têm logo os eleitores e as oposições à perna, com novas eleições daí a quatro anos, se não for antes. Uma maçada, diria o outro.
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«DE» de 24 Mar 10

Passatempo «Quem NÃO quer pagar?»



Multas-standard passadas pela EMEL

Estas multas-da-treta foram apanhadas do chão, que é para onde são frequentemente lançadas pelos condutores autuados. Repare-se no que o infractor tem de fazer se as quiser pagar!

Pelo contrário (e como aqui se verá em "actualização"), os 'Avisos para Pagamento' emitidos pela «Spark, ao serviço da EMEL» vêm dentro de um envelope, e contêm todos os dados necessários, incluindo multas atrasadas e que não foram regularizadas, bem assim como o que é necessário fazer para pagamento por ATM.

Está aí, com toda a clareza, a diferença abissal entre uma gestão amadora e uma outra, profissional.
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Nota curiosa: um agente da Divisão de Trânsito da PSP, a quem mostrei uma destas anedotas, começou por me dizer que não acreditava que fossem da EMEL, de tão estúpidas que são no que toca ao seu pagamento. Curiosamente, nessa altura ia a passar um fiscal da empresa. Ele interpelou-o... e pôde confirmar o óbvio.

Tem dias

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Por João Paulo Guerra


PASSOU O DIA DA POESIA, por sinal no Dia da Primavera, e seguiu-se o Dia da Água, hoje é Dia da Meteorologia, vem aí o Dia do Combate à Tuberculose, ainda em Março há o Dia do Teatro, em Abril haverá o Dia das Mentiras, o Dia da ONU e o Dia da Liberdade, Maio começa com o Dia do Trabalhador e Junho com o Dia da Criança, ao que se segue o Dia de Portugal (ex-dia da raça). Ficou para trás, em Março, o Dia do Pai mas vem aí, em Maio, O Dia da Mãe, e em Julho o Dia dos Avós. Ou seja, o mundo tem dias.

Estes dias com remetente servem para variadíssimas funções. Em primeiro lugar, para aliviar as consciências – o poluidor comemora o Dia do Ambiente e ganha créditos e indulgências para dar cabo de mais uma floresta, poluir mais um rio ou envenenar mais um pouco o ar que todos respiram. Os dias do almanaque também servem para animar o consumo – o calendário, que só tem Natal em Dezembro, semeou dias disto e daquilo ao longo do ano, Dia dos Namorados, em Fevereiro, e os já citados dias da família quase toda, entre Março e Julho, de maneira a que ninguém se esqueça dos que lhe são queridos e assinale a lembrança consumindo mais qualquer coisinha.

A imaginação dos autores de calendários é inesgotável. Há um dia para os fiéis defuntos, um dia das bruxas, o Dia da Defesa Nacional, um dia das comadres, outro das doenças raras, nos Açores até se celebra o Dia das Amigas. Mas a realidade e actualidade portuguesas impunham mais alguns novos dias. Por exemplo, o Dia do Endividado, o Dia do Desempregado, o Dia do Precário, o Dia do Limiar da Pobreza, o Dia do Esportulado, o Dia do Deprimido.

Um dia que jamais entrará no calendário será o Dia de Raiva. Esse foi apenas o título de um filme que por sinal acabava mal.
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«DE» de 23 Mar 10

Contra a violência do Estado

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Por Baptista Bastos

O PEC É UMA FATWA com que o Governo decidiu punir os mais desfavorecidos. E é uma outra expressão da violência que se espalha pelo nosso país. Estamos a pagar pelas culpas de outros, e esses outros, que passaram por sucessivos governos, são premiados pela incompetência. Há dias, Bagão Félix bradava, numa televisão "E a Igreja?", expressando, assim, a indignação que lhe provocavam os grandes silêncios e as geladas indiferenças, ante a decomposição dos laços sociais. Perante a instância de violência de que o Estado se tornou arauto e protagonista, nada mais nos resta do que, após o inócuo direito à indignação, passarmos ao dever de desobediência.

O Governo, este Governo, não se limita a apresentar uma nova variante de violência essencial, de que o PEC é horrorosa expressão, como tripudia sobre o próprio conceito de democracia. Nada valida esta prepotência anti-social, que José Sócrates pensa legitimada pelo poder (relativo, ou mesmo que fosse absoluto) atribuído pelo voto. Os portugueses mais desprotegidos são afectados por uma imposição brutal (violenta) de legalidade duvidosa, cujas consequências, como resposta às iniquidades, podem ocasionar uma maior violência pública.

As surdas vozes protestatárias que começaram a fazer-se ouvir, entre alguns militantes do PS reflectem, elas também, pela surdina e pelo tom oco, outro género de violência: a do medo. A barreira da linguagem demonstra a rigidez da obediência cega ao chefe, entre os dirigentes, os apoiantes e os partidários do PS. A ausência de adversário e a irracionalidade das jogadas no Parlamento, as indecorosas "abstenções" feitas em nome da "estabilidade", e da "responsabilidade de Estado", constituem uma espécie de elemento patológico que mancha a grandeza desejável da democracia. Não receemos as palavras: Sócrates não só tem debilitado o PS como é responsável pelas mais rudes amolgadelas na democracia. Tudo o que advirá resulta desta política de soma nula.

A história não se fica, certamente, por aqui: quantas vezes não aconteceu já, que, quando tudo parece inabalável, o poder de novas formulações consegue remover objectivos políticos ilícitos porque absurdos e contrários às aspirações da comunidade? Porém, há uma ideia de nação que deixou, vagarosamente, de o ser: exclusão, egoísmo, ganância, desemprego, corrupção, precariedade, indefinição de identidade.

A violência do PEC mais não traduz do que a violência da nossa sociedade, cujas prostrações assumem a feição de um sintoma neurótico. Estamos doentes de resignação e de astenia moral. Parafraseando Alexandre Herculano: "Isto dá vontade de chorar."
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«DN» de 24 Mar 10

terça-feira, 23 de março de 2010

Ebay, mercado e religião

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Por Nuno Crato

A PRIMEIRA VEZ que fiz um negócio no Ebay fi-lo com receio. Fi-lo, porque qui-lo, eu sei, mas a oportunidade não deveria ser perdida. Não sou coleccionador maníaco, mas um disco de cálculo russo de meados do século passado por um preço base de 10 dólares era demasiado tentador para quem, como eu, sempre gostou de réguas de cálculo e nunca teve oportunidade de brincar com uma que fosse circular. Registei-me no ebay.com, introduzi o número de cartão de crédito e entrei no leilão. Acabei por comprar o instrumento por cerca de 20 euros, incluindo portes de correio de Moscovo para Lisboa.

O meu grande medo não foi introduzir o número do cartão de crédito. Sei que há sistemas criptográficos muito avançados, baseados numa invenção matemática que permite a troca de informação de forma absolutamente segura. O meu medo foi que gastasse dinheiro sem ver o meu objecto de desejo. Ou vê-lo apenas em fotografia.

Dias depois, chegou-me por correio uma pequena caixa com escritos em russo. O “N” do meu nome vinha ao contrário, mas chegou. A minha confiança num vendedor russo de quem nem sequer percebia o nome trouxe-me às mãos um magnífico aparelho muito parecido com um relógio, mas que permite fazer multiplicações ajustando com um manípulo as escalas logarítimicas.

Pensando melhor, não foi um tiro no escuro. Os leilões do Ebay são um mercado de trocas frequentes. E são um mercado muito transparente. Se a mercadoria não me chegasse às mãos eu poderia deixar um comentário negativo sobre o comerciante e ele, pelo menos com o mesmo registo legal, não voltaria a ter clientes. O funcionamento regular do mercado estimula a confiança nos seus agentes, foi o que eu assumi sem o saber.

Mas esta semana saiu na “Science” um estudo surpreendente (10.1126/science.1182238). Catorze economistas e psicólogos, liderados por um cientista canadiano, fizeram experiências em sociedades diversas, com graus de desenvolvimento e integração muito diferentes. Foram a regiões remotas do globo, onde os mercados ainda funcionam mal e onde ainda existem normas sociais que, para nós, são resquícios de um passado remoto, em alguns casos pré-histórico. E mediram o nível de egoísmo e de altruísmo vigentes nas diferentes sociedades.

Nos diversos locais, os investigadores fizeram experiências com jogos que têm sido muito estudados. Usaram o Jogo do Ditador, em que uma pessoa tem a possibilidade de escolher ficar com uma soma de dinheiro ou partilhá-la com outro jogador; praticaram o Jogo do Ultimato, em que dois jogadores podem partilhar uma soma de dinheiro se se conseguirem entender na regra de divisão; e jogaram o Jogo da Punição por Terceiros, em que três jogadores se têm de entender para a partilha de uma quantia. Dos resultados dos jogos praticados por muitos habitantes locais, ficaram com uma medida do grau de altruísmo e do grau de confiança mútua existentes nas diversas sociedades.

Cruzaram depois os dados com diversas variáveis sociais, tais como a dimensão da comunidade, as actividades económicas e o rendimento das famílias. Feito o estudo estatístico com os usuais métodos de regressão, há dois factores que aparecem como decisivos para o desenvolvimento da confiança social e do sentido de justiça. Esses factores são: a penetração de uma religião mundial, como é o caso do cristianismo ou do islamismo, e o desenvolvimento do mercado! Senti-me muito evoluído, por ter confiança num vendedor russo de quem nunca percebi o nome.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 20 Mar 10 (adaptado)

O que eu sempre soube acerca das mulheres mas ainda assim tive de perguntar

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Por Rui Zink

TRATAM-NOS MAL mas querem que as tratemos bem. Apaixonam-se por serial-killers e depois queixam-se de que nem um postalinho. Escrevem que se desunham. Fingem acreditar nas nossas mentiras desde que tenhamos graça a pregá-las. Aceitam-nos e toleram-nos porque se acham superiores.
São superiores. Não têm o gene da violência, embora seja melhor não as provocarmos. Perdoam facilmente mas nunca esquecem. Bebem cicuta ao pequeno-almoço e destilam mel ao jantar. Têm uma capacidade de entrega que até dói. São óptimas mães até que os filhos fazem dez anos, depois perdem o norte. Pelam-se por jogos eróticos mas com o sexo já depende. Têm dias. Têm noites. Conseguem ser tão calculistas e maldosas como qualquer homem, só que com muito mais nível. Inventaram o telemóvel ao volante. São corajosas e quando se lhes mete uma coisa na cabeça levam tudo à frente. Fazem-se de parvas porque o seguro morreu de velho e estão muito escaldadas. Fazem-se de inocentes e (milagre!) por esse acto de vontade tornam-se mesmo inocentes. Nunca perdem a capacidade de se deslumbrarem. Riem quando estão tristes, choram quando estão felizes. Não compreendem nada. Compreendem tudo. Sabem que o corpo é passageiro. Sabem que na viagem há que tratar bem o passageiro e que o amor é um bom fio condutor. Não são de confiança, mas até a mais infiel das mulheres é mais leal que o mais fiel dos homens.
São tramadas. Comem-nos as papas na cabeça, mas depois levam-nos a colher à boca. A única coisa em nós que é para elas um mistério é a jantarada de amigos – elas quando jogam é para ganhar.
E é tudo. Ah, não, há ainda mais uma coisa. Acreditam no Amor com A grande mas, para nossa sorte, contentam-se com pouco.

Ebay, mercado e religião

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Por Nuno Crato

A PRIMEIRA VEZ que fiz um negócio no Ebay fi-lo com receio. Fi-lo, porque qui-lo, eu sei, mas a oportunidade não deveria ser perdida. Não sou coleccionador maníaco, mas um disco de cálculo russo de meados do século passado por um preço base de 10 dólares era demasiado tentador para quem, como eu, sempre gostou de réguas de cálculo e nunca teve oportunidade de brincar com uma que fosse circular. Registei-me no ebay.com, introduzi o número de cartão de crédito e entrei no leilão. Acabei por comprar o instrumento por cerca de 20 euros, incluindo portes de correio de Moscovo para Lisboa.

O meu grande medo não foi introduzir o número do cartão de crédito. Sei que há sistemas criptográficos muito avançados, baseados numa invenção matemática que permite a troca de informação de forma absolutamente segura. O meu medo foi que gastasse dinheiro sem ver o meu objecto de desejo. Ou vê-lo apenas em fotografia.

Dias depois, chegou-me por correio uma pequena caixa com escritos em russo. O “N” do meu nome vinha ao contrário, mas chegou. A minha confiança num vendedor russo de quem nem sequer percebia o nome trouxe-me às mãos um magnífico aparelho muito parecido com um relógio, mas que permite fazer multiplicações ajustando com um manípulo as escalas logarítimicas.

Pensando melhor, não foi um tiro no escuro. Os leilões do Ebay são um mercado de trocas frequentes. E são um mercado muito transparente. Se a mercadoria não me chegasse às mãos eu poderia deixar um comentário negativo sobre o comerciante e ele, pelo menos com o mesmo registo legal, não voltaria a ter clientes. O funcionamento regular do mercado estimula a confiança nos seus agentes, foi o que eu assumi sem o saber.

Mas esta semana saiu na “Science” um estudo surpreendente (10.1126/science.1182238). Catorze economistas e psicólogos, liderados por um cientista canadiano, fizeram experiências em sociedades diversas, com graus de desenvolvimento e integração muito diferentes. Foram a regiões remotas do globo, onde os mercados ainda funcionam mal e onde ainda existem normas sociais que, para nós, são resquícios de um passado remoto, em alguns casos pré-histórico. E mediram o nível de egoísmo e de altruísmo vigentes nas diferentes sociedades.

Nos diversos locais, os investigadores fizeram experiências com jogos que têm sido muito estudados. Usaram o Jogo do Ditador, em que uma pessoa tem a possibilidade de escolher ficar com uma soma de dinheiro ou partilhá-la com outro jogador; praticaram o Jogo do Ultimato, em que dois jogadores podem partilhar uma soma de dinheiro se se conseguirem entender na regra de divisão; e jogaram o Jogo da Punição por Terceiros, em que três jogadores se têm de entender para a partilha de uma quantia. Dos resultados dos jogos praticados por muitos habitantes locais, ficaram com uma medida do grau de altruísmo e do grau de confiança mútua existentes nas diversas sociedades.

Cruzaram depois os dados com diversas variáveis sociais, tais como a dimensão da comunidade, as actividades económicas e o rendimento das famílias. Feito o estudo estatístico com os usuais métodos de regressão, há dois factores que aparecem como decisivos para o desenvolvimento da confiança social e do sentido de justiça. Esses factores são: a penetração de uma religião mundial, como é o caso do cristianismo ou do islamismo, e o desenvolvimento do mercado! Senti-me muito evoluído, por ter confiança num vendedor russo de quem nunca percebi o nome.
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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 20 Mar 10

Social

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Por João Paulo Guerra

A NOTÍCIA SEGUNDO a qual o corte das prestações sociais abriu divisões no Governo e na bancada parlamentar do Partido Socialista confirma as opiniões mais optimistas que, contra todas as evidências, sustentam que ainda há socialistas nas cúpulas do PS.

Por outro lado, confirmam de igual modo as opiniões mais pessimistas que dizem que os socialistas dos pináculos do PS se contam pelos dedos.

A palavra social deu socialista, mas isso foi dantes. As palavras têm vindo a perder conteúdo e valor na proporção em que são empregues a torto e a direito e erradamente. Doutrina social, pacto social, contrato social, tudo isso são hoje tralhas dos sótãos, dos baús e das gavetas dos partidos socialistas e social-democratas, todos eles convertidos ao pragmatismo dos interesses, das conveniências e do dinheiro. E a verdade é que tais partidos só não abandonam de vez as suas designações históricas para não deixarem cair as patentes e, por outro lado, para continuarem a realizar-se os rituais das eleições nos quais o povinho manifesta o seu apego às doutrinas e promessas de índole social. Ora social dá socialista, como o próprio nome indica, ou vá lá que seja social-democrata, ou até mesmo centro social.

A corajosa mas reduzida objecção de alguns socialistas veio confortar aqueles que, à luz de uma candeia, procuram vestígios arqueológicos de sensibilidade social no poder político. O PEC é uma boa pedra de toque, cujas diatribes as cúpulas dos partidos de denominação social estão basicamente de acordo, com nuances para eleitor ver. Embora os dirigentes de tais partidos - seja de crer - cada vez que pronunciam a palavra social façam figas por baixo da mesa. A não ser quando o social é usado no sentido de ‘socialite'.
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«DE» de 22 Mar 10

segunda-feira, 22 de março de 2010

O Buraco das Fundações

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Por J.L. Saldanha Sanches

UMA FUNDAÇÃO é uma estrutura que perpetua memória do seu fundador (ou algo equivalente) que a dota de um capital suficiente para que esta possa prosseguir os seus fins. A Fundação Gulbenkian, a Fundação Champalimaud, mais recentemente a Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Mas há outras.

Temos as chamadas fundações públicas, pagas apenas com dinheiro do Estado para dificultar o controlo do Tribunal de Contas. Temos também as fundações mendicantes: um generoso filantropo pratica boas acções com o dinheiro dos contribuintes.

E certas fundações que parecem ter sido criadas apenas para fugir aos impostos.

Capital, pouco. Receitas, sabe-se lá. Boas intenções, em vez de boas acções.

O primeiro dever de uma fundação é ser inteiramente transparente e hoje a transparência chama-se internet.

O documento sobre boas práticas do Centro Português de Fundações, criado em 1993 pela Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação Eugénio de Almeida e a Fundação Oriente, afirma no seu princípio n.º 5 (sobre a “transparência e prestação de contas”): “fundações actuam de forma transparente e adoptam práticas exigentes de prestação de contas, podendo complementar as obrigações legais com medidas adicionais”.

No entanto experimentem obter informação na net sobre duas fundações que têm andado nas bocas do mundo: a Fundação Figo e a Fundação Saramago e verão o que obtêm. Que capital, quais receitas? O que quer dizer que nada podemos dizer sobre se elas cumprem ou não os fins que justificaram a sua criação.

Daqui passamos para os perigos que podem ter as fundações: para além da mendicância, se tiverem o estatuto de utilidade pública, um regime fiscal privilegiado.

As receitas obtidas no exterior por não residentes, em especial se a residência for numa zona de baixa fiscalidade, se forem receitas como direitos de imagem ou direitos de autor podem escapar quase totalmente a qualquer tributação pessoal, com taxas progressivas. Mas restam as taxas fixas, pagas por não residentes, cobradas no país fonte do rendimento.

Aqui, uma fundação faz maravilhas: cobrindo a ganância com o manto da benemerência e das piedosas intenções temos uma estrutura que escapa à tributação e que permite uma adequada gestão de fundos numa entidade ao serviço do fundador ou seus próximos. O dinheiro passa da conta pessoal para a conta da fundação e basta fazer qualquer coisa para manter as aparências. Um esforço largamente compensado.

Os perigos destes buracos só serão controlados se a Administração fiscal se convencer que, além de verificar se as empresas enviam o IVA retido, tem também de se preocupar com este tipo de planeamento fiscal agressivo. A lei deveria ser muito mais exigente, mas o regime actual dá à Administração fiscal possibilidades de actuação.

E num momento em que o fisco vai extrair mais uns centavos aqueles milhões de contribuintes com escassos recursos e que não fazem, nem podem fazer, nenhum tipo de planeamento fiscal, esta preocupação com os tartufos fiscais é mais do que necessária. A omissão administrativa é um insulto aos contribuintes que têm de pagar.
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«Expresso» de 20 Mar 10 – www.saldanhasanches.pt

domingo, 21 de março de 2010

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

«A PENA DE EXPULSÃO do partido», consagrada nos estatutos, é a celeuma político-partidária dos últimos dias. A expulsão poderá ser aplicada «por falta grave, nomeadamente o desrespeito aos princípios programáticos e à linha política do partido». Sendo que «se considera igualmente falta grave a que consiste em integrar ou apoiar expressamente listas contrárias à orientação definida pelos órgãos competentes do partido».

Foi contra este articulado estatutário que Vitalino Canas, em nome do PS, esbaforiu a sua indignação? Afirmando, sem papas na língua, que «estamos perante uma verdadeira ‘lei da rolha’, uma lei estalinista implementada por um partido democrático»? Por acaso, não foi. Porque esta pena de expulsão em resultado de faltas graves, pormenorizadamente descritas no articulado acima transcrito, não é a que foi proposta por Santana Lopes e aprovada pelo Congresso do PSD do passado fim de semana. É, sim, a que há muito consta no artigo 94.º dos estatutos do PS. O que deixa bem patente até onde pode ir a farisaica hipocrisia de Vitalino Canas e da direcção socialista.

O episódio, que encheu páginas de jornais e noticiários televisivos e radiofónicos, suscita quatro observações.

Primeira, a da ligeireza jornalística que embarca em ondas de excitação noticiosa sem cuidar de saber se a ‘novidade’ não está há muito presente no mundo real (e nos estatutos dos outros partidos...).

Segunda, a do oportunismo dos três candidatos à liderança do PSD – Passos Coelho, Paulo Rangel e Aguiar-Branco – que no interior do Congresso não disseram uma palavra contra a alteração estatutária em causa e, à saída, percebendo a onda mediática, juraram a pés juntos estarem contra tal medida. Bom exemplo de liderança...

Terceira, a da insensatez política de Santana Lopes ao copiar, na sua ânsia de ajuste de contas com o passado, as normas estatutárias do PS.

Quarta, a da incomensurável desfaçatez política de Vitalino Canas, de Francisco Assis, do PS em geral, ao criticarem aos outros o que fazem na sua própria casa. Não têm mesmo vergonha na cara. Nem grandes escrúpulos na acção política.
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«SOL» de 19 Mar 10

sexta-feira, 19 de março de 2010

No Reino do Absurdo - Solução

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16 Mar 10 - 19h50m
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Carrinha da Câmara Municipal de Lisboa, estacionada na ciclovia da Av. Frei Miguel Contreiras (e ainda com duas rodinhas no passeio...)

"Bullying" - (*)

Por Helena Matos

OS ESTRANGEIRISMOS têm a extraordinária vantagem de nos mostrar em primeiro lugar que o problema não é só nosso. Depois transformam aquelas coisas que, em português, são muito cruas e directas, como a violência e a indisciplina, num conceito mais do que num facto, uma coisa algures entre o pensamento negativo e o pensamento positivo.
Uma criança de doze anos sai da escola e atira-se ou cai ao rio. Imediatamente, começa a discussão sobre o bullying: seria agredido? Agressor? Traquinas? Triste?… E ninguém se interroga sobre como é possível que não uma mas sim várias crianças tenham saído de uma escola sem que ninguém controlasse essas saídas.

Nas escolas reais, públicas ou privadas, civis, militares, laicas ou religiosas, pode acontecer um acidente, um suicídio, uma agressão. Nas escolas dos redondos vocábulos, ninguém presta declarações sobre um aluno que saiu a meio das aulas e acabou morto nas águas de um rio. Mas amanhã os mesmos que agora se calam nessa escola, vão sentar-se em seminários sobre bullying organizados por direcções regionais e institutos, fazer acções nas escolas sobre bullying e integrar comissões preventivas de bullying. Os mais sortudos até se livrarão de vez de ter de dar aulas a alunos da escolaridade obrigatória e tornar-se-ão especialistas em bullying, ascendendo ao ensino superior, onde, por enquanto, não existe oficialmente bullying, ensinarão os futuros professores a lidar com o bullying e dir-lhes-ão para não serem preconceituosos nem terem ideias feitas sobre a disciplina que obviamente defendem que não deve ser imposta mas sim “nascer da interacção entre a criança e o meio”.
Entretanto, as portarias continuarão sem funcionários, os muros com palavrões escritos, os pátios sem vigilância e os funcionários ou professores que tentarem contrariar este estado de coisas a correrem o risco de serem enxovalhados pelos alunos ou respectivas famílias. E sobretudo a sua carreira registará negativamente essa incompreensão das “novas realidades articuladas com as vivências disruptivas” ou “formas de expressão não convencionais em meio escolar”, como lhes lembrarão os outrora colegas que se tornaram especialistas em bullying.

«Público» e Blasfémias
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(*) - Como já se percebeu (e no seguimento do que aqui foi dito acerca de prémios não reclamados), os livros cujas capas aqui se vêem serão atribuídos aos autores dos melhores comentários que venham a ser feitos, no Sorumbático, até às 20h do próximo dia 22.

No Reino do Absurdo - Prémio "carrinha"

Eventos

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Por João Paulo Guerra

A AGÊNCIA DE "EVENTOS” – termo detestável muito usado no português técnico – que organizou a apresentação da Estratégia Nacional para a Energia lá veio explicar que a troca do nome de José Sócrates pelo do respectivo boneco no Contra-Informação, José “Trocas-te”, foi “erro humano”. É a explicação mais corriqueira e que nem dá para discutir, pois dizer que errar é humano é constatar o óbvio. Mas no mundo dos "eventos" bastam o óbvio, as banalidades e os lugares comuns.

Os "eventos" vieram plastificar a vida social e política, retirando-lhes qualquer trato humano, calor e espontaneidade: seguem o guião. E como se vê por sucessivas gafes, nem sequer trouxeram profissionalismo e rigor aos acontecimentos. Pelo contrário. Os "eventos" estão para a vida social e política como o "queijo" abatatado está para o queijo amarelo da Serra da Gardunha.

E, como não poderia deixar de ser, o actual Governo aderiu por inteiro aos "eventos", que já deram raia mais que uma vez. Um governante vai aqui ou ali, apresentar isto ou aquilo, e produz-se um "evento". É o circo político a fazer habilidades para embasbacar os espectadores, também chamados utentes, contribuintes e consumidores. E depois acontecem coisas como o primeiro-ministro visitar uma turma escolar, constituída por figurantes de alunos, em tempo de férias. Ou, como outra ocasião, os figurantes serem os minicomputadores, retirados de cena após a saída das câmaras de TV. Ou ainda o primeiro-ministro ser chamado pelo nome da respectiva caricatura.

O Governo, que corta em tudo, não corta na palhaçada dos "eventos", porque o "evento" vive da forma e disfarça a falta de conteúdo. É a modalidade em plástico da política espectáculo. Mas é o que há. "Evente-se" o burro à vontade do dono.

«DE» de 19 Mar 10

«Estado de Guerra» - Prémio

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quinta-feira, 18 de março de 2010

Trocas

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Por João Paulo Guerra

TALVEZ PELA PRIMEIRA vez na sua História, Portugal atravessa uma situação de profunda e generalizada gravidade e decadência sem que apareçam, mais ou menos a propósito, anedotas.

Os portugueses inventam anedotas a propósito de tudo, e até mesmo de nada. A verdade é que a situação, desde Santana Lopes e com fartos exemplos na actualidade, não carece de anedotas pelo simples facto de que é, ela própria, uma anedota pegada. O regime perdeu o crédito e o respeito que é devido às pessoas e instituições de bem. Pois se até um destacadíssimo notável do PSD já veio dizer que quando o chefe de Estado fala "sentimos um mau hálito político do lado de cá da televisão"!

Já houve quem dissesse que o apodrecimento da situação política, social e moral cheira, para além do hálito, a fim de regime. O que vale é que uma sondagem também indicou que os portugueses estão fartos da falta de qualidade desta democracia, mas não da democracia.

Só no quadro de uma situação em estado de decomposição é que se entende a gafe do apresentador de um "evento" que introduziu o primeiro-ministro dizendo: "agora vai falar... José Trocas-te". Trocar o primeiro-ministro pelo seu próprio boneco no Contra-Informação não é apenas pôr os 200 participantes no "evento" a olhar para o boneco. Nem sequer apenas um lapsus língua. A linguagem e os respectivos lapsos traem o que anda pelo subconsciente individual e colectivo. E o bom povo olha para a corte do regime e não consegue distinguir os bobos da própria corte.

Ou como diriam os Monty Phyton: "E agora, para algo completamente diferente, vão falar Acabado Silva, Jaime Trama, José Trocas-te, Manuela Azeda o Leite, Paulo Tortas, Francisco Trotskã, Cassete Jerónimo, Arrastadeira de Campos e Esmurrais Sarmento".
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«DE» de 18 Mar 10

quarta-feira, 17 de março de 2010

900 lugares de estacionamento em Lagos



Um dos grande parques subterrâneos actualmente em construção em Lagos - cidade onde os parques de estacionamento gratuitos estão quase sempre "às moscas" (e, mesmo no Verão, nunca completos).

Passatempo "Lançamento" - Solução

Horas + Dia + Mês:
19 + 25 + 3 = 47

O inútil sinédrio de Mafra

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Por Baptista-Bastos

NO JORNALISMO, como na literatura, o adjectivo é a prosa a tomar partido. Na política, o adjectivo é o embrulho do embuste, da meia-verdade e da omissão. No Congresso do PSD, que não resultou num toque a reunir, o adjectivo abundou, gordo, espalhafatoso e interminável. A direcção da dr.ª Manuela, a pior de sempre daquele partido, foi banhada pelo esplendor do elogio desbragado. A coisa chegou a ser indecorosa. Somente o presidente da Câmara das Caldas da Rainha, elementar e claro, recusou a metáfora e preferiu a catilinária. Aplicou a pior das desfeitas aos dirigentes que, no seu parecer, praticaram a exclusão, a perseguição e a vingança. A dr.ª Manuela, já de si grave e impávida, estava transparente, confusa e estupefacta.

Por fim, o sempre inadiável Santana Lopes propôs a regra segundo a qual nenhum elemento do PSD pode criticar a direcção sessenta dias antes de eleições. A aberração foi ruidosamente aplaudida. O PSD, saído de Mafra, está entre a Lei da Rolha e o epifenómeno. Uma das televisões fixou o rosto sombrio do dr. Sarmento. Não se percebeu, pela morfologia, a bússola com a qual se orientava o distinto, acusado, no Parlamento, pelo dr. Granadeiro, de o haver pressionado, durante os Governos de Barroso e de Santana, para despedir os directores do Jornal de Notícias, do 24 Horas e da Grande Reportagem. O dr. Granadeiro, na ocasião administrador da Lusomundo, proprietária daquelas publicações, ter-se-ia recusado e, cheio de horror, demitido.

O prof. Marcelo, há onze anos ausente destes sinédrios, dedicou uns parágrafos leves à movediça vida do PSD, e levou um beijo da dr.ª Manuela, pormenor que o deixou demonstradamente feliz.

Os discursos dos candidatos principais não revelaram qualquer diferença fundamental. Nenhum deles parece vocacionado para restituir ao PSD a designação do acrónimo: social-democrata. Rangel é o mais ruidoso dos três, o mais adjectivante, e confessa-se muito contente por estar onde está. Deve ter cuidado com seguir Pacheco Pereira: o homem dá azar. Aguiar-Branco parece-me um indivíduo sensato, equilibrado e calmo, numa altura em que o PSD abomina essas virtudes. Aguiar está fora do tempo; não do seu: do tempo dos outros. Passos Coelho fez caminho durante dois anos. Tem aquela tineta do neoliberalismo, que o prejudica, e uma afabilidade bem-educada, que o favorece. Nenhum deles, porém, vai inventar o infinito, a fim de modificar, substancialmente, o estado das coisas. A reunião de Mafra resultou inútil. Não uniu, não congregou, e acentuou as internas divisões. E nada disse, de substantivo, que tranquilizasse o País.

«DN» de 17 Mar 10

terça-feira, 16 de março de 2010

Dia do pi

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Por Nuno Crato

ESTE ANO, 14 de Março cai num domingo, por isso é menos provável que seja assinalado nas escolas. É já amanhã, este dia tão especial para a matemática. Tem sido comemorado como dia do pi, pois o dia 14 do mês 3 pode representar-se como 3,14, que é a aproximação mais usada para esse curioso número que todos conhecemos.

É talvez a constante mais famosa da história da matemática. É a razão entre o perímetro de uma circunferência e o seu diâmetro, ou a razão entre a área do círculo e o quadrado do seu raio. Foi notada desde tempos antigos. O registo mais antigo que se conhece é o do célebre papiro de Rhind (c. 1650 a.C.), em que se explicava que um quadrado de lado 8/9 do diâmetro de uma circunferência “tem a mesma área que o círculo”. Feitas as contas, isto significa que o autor do papiro, um escriba de nome Ahmes, considerava que pi era igual a 256/81, ou seja, cerca de 3,1605. A aproximação não era má. O erro era inferior a 0,6%.

Claro que a aproximação do escriba egípcio é apenas uma aproximação. Se assim não fosse teria feito a quadratura do círculo, ou seja, a indicação de um meio de construir um quadrado com área equivalente à de um círculo dado. Durante séculos, matemáticos e simples curiosos perseguiram furiosamente este objectivo, o de inventar um processo que apenas usasse régua não graduada e compasso e, num número finito de passos, conseguisse construir um tal quadrado a partir de um dado círculo. Mas em 1882, na consequência de um difícil teorema demonstrado pelo matemático alemão Ferdinand von Lindemann, ficou a saber-se que a quadratura do círculo é impossível.

Cerca de um milénio depois do papiro de Rhind, no Livro dos Reis, no Antigo Testamento, escrevia-se que pi era igual a 3. Terá sido ignorância ou apenas liberdade poética? Não se sabe de facto, mas aí se diz que no templo de Salomão (século X a.C.) foi construído um recipiente “de dez côvados de uma borda à outra, perfeitamente redondo” e que “um cordão de trinta côvados o cingia em redor” (7:23). Quer isto dizer que uma circunferência de diâmetro dez côvados teria um perímetro de trinta?

Esta passagem da Bíblia tem sido muito discutida. Houve quem dissesse que a medida do diâmetro incluiria a largura do bordo (“um palmo”, Livro 2 das Crónicas, 4:5), mas o perímetro seria medido pelo interior. Assim as contas bateriam certo, pois estava-se a medir o perímetro de uma circunferência e o diâmetro de outra. E houve quem dissesse que sendo “impossível adoptar um valor exacto para a razão”, o Livro de Reis “terá escolhido um número arredondado” (rabi Maimonides, século XII).

Já houve quem legislasse sobre o valor de pi. Em 1897, um médico de Indiana, convenceu o seu representante na câmara do Estado a decretar que pi era simplesmente três. Regressava-se à verdade bíblica e simplificavam-se as contas, dizia. A proposta foi aprovada, mas logo cancelada.
O ano passado, o Congresso norte-americano foi mais sábio. Designou 14 de Março o “Dia do pi”. Na resolução (H.Res.224 de 21 de Março de 2009) dizia-se que “Pi é um número irracional, que continua indefinidamente sem se repetir e foi calculado até um milhão de milhões de dígitos”, mas que “pode ser aproximado como 3,14”. Assim, o congresso encorajou “as escolas e educadores a celebrar este dia com actividades apropriadas”. Não quer nenhum deputado português propor uma resolução semelhante?

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 13 Mar 10

segunda-feira, 15 de março de 2010

Passatempo-relâmpago de 15 Mar 10 - Solução


Página 95
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Quem mais se tenha aproximado tem agora 24h para escrever para premiosdepassatempos@iol.pt, indicando morada para envio do livro.

domingo, 14 de março de 2010

A Vaidade

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Por João Duque

NUMA CENA inesquecível do filme "Feios, Porcos e Maus", uma vizinha que vive paredes-meias com a barraca da porca família Mazzatella aparece, feia mas orgulhosa, com uma revista na mão, a mostrar à vizinhança o sucesso da filha. A vaidade reside na aparente ascensão social da pequena que conseguiu chegar ao topo do socialmente desejável: a capa de uma revista. Ao vê-la a transbordar vaidade pelos olhos, apercebemo-nos que a dita exibe afinal um exemplar de uma revista pornográfica em que a filha é, simplesmente, a entusiasmante modelo da capa, com desenvolvimentos mais intimistas no interior.

O nome de Portugal tem surgido repetidamente na primeira página dos mais importantes jornais diários de economia e finanças de todo o mundo: "Wall Street Journal" e "Financial Times". A história repete-se quase diariamente e especula-se sobre o que a União Europeia vai fazer para 'ajudar" a Grécia, o país mais problemático do pequeno grupo dos países em sérias dificuldades. É certo que a Grécia é o nome mais visível, mas nós tendemos a acompanhá-la sempre, pressentindo-se que vamos parar ao mesmo ponto onde estão os nossos rivais da final do Euro-2004 se nada se fizer.

Na semana passada um jornalista belga quis entrevistar-me. Começou a entrevista explicando: "- I am visiting the PIGS". "Se vieste visitar os porcos, vieste à pocilga!". pensei. Só dois não nativos da língua inglesa como nós seriam capazes de iniciar uma relação assim sem começar ao estalo, uma vez que a sonoridade 'pig' para ambos, não produz a mesma reacção emocional que 'porco'. Mas não deixa de ser triste este tipo de classificação... Porcos...

Durante a semana visitei uma escola secundária e fiquei arrepiado ao olhar os jovens candidatos ao ensino universitário com 17 anos de idade a perguntarem-me: "Como foi possível chegar aqui? Como é que vamos pagar esta dívida?". Alguns daqueles jovens são mais maduros do que muitos da geração dos seus pais e se trocassem alguns dos ministros por jovens destes teríamos decisões mais sensatas.

Somos PIGS porque quisemos cair nesta situação. Anos e anos de gestão pública inconsequente aplicando os princípios de 'quem vier atrás que apague a luz e feche a porta', dos direitos adquiridos, do abrir maternidades é sempre melhor que fechá-las, do inaugurar SCUT é mais amigável do que portajá-las, da popularidade dos estádios de futebol... trouxeram-nos aqui...

Fiquei muito aborrecido com os gregos na final do Euro. Agora estou-lhes infinitamente grato porque os sinto a anteciparem o que nos sucederá na doença (se nos deixarmos inertes) e na cura que vão praticar. São 11 milhões, têm uma dívida 2,25 vezes maior do que a nossa, um crescimento miserável e um défice muito pior do que o nosso. Alguma coisa vai mudar, com dor e à força. Por isso aparecem na capa.

Mas a capa de jornais ou revistas nem sempre é a melhor localização, até para quem tem a face oculta.

«Expresso» de 6 de Março de 2010

sábado, 13 de março de 2010

«Dito & Feito»

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Por José António Lima

«Há uma opção clara e fundamental de não aumento de impostos» no Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC), começou por anunciar José Sócrates ao país na passada segunda-feira. Para logo acrescentar: «Com uma única excepção...», a do novo escalão de 45% de IRS. Na verdade, não é uma excepção, são várias e numerosas, tendo em conta o aumento da carga fiscal que resulta da redução generalizada das deduções, os descontos agravados nas pensões ou o imposto sobre as mais-valias mobiliárias.

«Serão mantidas as opções já tomadas no que respeita aos grandes investimentos, como o novo aeroporto ou o TGV», continuou Sócrates. Para, de imediato, se desmentir a si próprio com mais algumas excepções: «Sendo adiadas as linhas de TGV Lisboa-Porto e Porto-Vigo...» .

Parece, pois, que a mentira ou a meia-verdade já se tornou um hábito de tal modo interiorizado pelo primeiro-ministro que este nem sequer resiste a utilizá-lo com abundância nos seus discursos ao país.

Percebe-se o aperto na garganta de Sócrates ao anunciar aos portugueses as medidas previstas no PEC. Pois cada uma delas vem desdizer o que o Governo e o seu chefe vinham afirmando, insensatamente, nos últimos meses. Que Portugal fora dos primeiros a sair da crise, que o desemprego já estava travado, que não haveria mais aumento de impostos, que o congelamento de salários era um caso pontual, que o TGV se iria manter em toda a sua megalomania, pois «ao contrário do que dizem, a crise é mais uma razão para fazermos o TGV», etc.

Este discurso fantasioso e cor-de-rosa ruiu como um castelo de cartas com o PEC. Um PEC que é, no seu conjunto de medidas liberais e privatizadoras, a antítese quase total do programa de Governo que o PS, há poucos meses, apresentou aos portugueses.

Mais importante ainda: ao apontar para crescimentos do PIB sempre inferiores a 2% até 2013 – confirmando que todos os anos da governação de Sócrates, desde 2005, colocaram Portugal a divergir e a empobrecer em relação à União Europeia – o PEC transforma-se num verdadeiro certificado de incompetência política.

Num atestado, assinado pelos próprios governantes, que oficializa um ciclo de resultados falhados e oportunidades desperdiçadas. Com muitas mentiras e meias-verdades de permeio.

«SOL» de 12 Mar 10

sexta-feira, 12 de março de 2010

Disco

Explicação simplificada

1 - Em plano inclinado:

1.1 -
Disco homogéneo: roda, sempre descendo, pois o vector peso tem sempre uma componente no sentido do movimento descendente.

1.2 - Disco heterogéneo: se o centro de gravidade estiver do lado esquerdo (no caso representado), a componente do peso pode ser suficiente para se opor à descida, acabando o disco por estabilizar, parado.
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2 - Em plano horizontal:

2.1 -
Disco homogéneo: fica parado em qualquer ponto. É o chamado "equilíbrio indiferente".

2.2 - Disco heterogéneo: rodará até que o seu centro de gravidade fique por cima do ponto de "apoio". Fica em equilíbrio estável pois, se for deslocado, voltará a essa posição.

quinta-feira, 11 de março de 2010

O ‘Pec’ado

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Por João Duque

NÃO SOU, SEGURAMENTE, o mais habilitado para vos falar do “pecado” pelo menos em termos teológicos ou académicos.

Só posso, abusando da vossa paciência, falar-vos da minha experiência de pecador, muitas vezes arrependido, mas tantas vezes reiterado...

Relativamente ao Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), o que me preocupa é o profundo debate filosófico de natureza ética com que se devem debater internamente os membros do Governo. Vejamos.

Alguns dos actuais membros do Governo estiveram activamente envolvidos numa campanha eleitoral que, ainda em Setembro, dava sinais vibrantes de emoção e apego a posições políticas de profundo enraizamento numa orientação política de raiz, marcada por profundas divergências filosóficas com a oposição, sustentando rupturas fracturantes à esquerda e à direita. Sentia-se neles o apego desinteressado e o sentimento de profunda justiça das propostas apresentadas no programa eleitoral do partido socialista, e que eram a sua razão de ser e que os levava a calcorrear Portugal, numa atitude de verdadeira ética republicana, a propagar a "palavra" e até a morrer por "ela".

A diferença com as oposições era profunda porque as ideias que defendiam sobrepunham o homem ao sistema, a justiça à iniquidade, o bem-estar colectivo à mesquinha ganância individual. Assim se debatiam as mais variadas questões e se justificavam todos os actos.

O investimento público era para continuar, melhor, para acelerar; o défice público deveria ser alargado para impedir a recessão; o desemprego para absorver; as despesas de natureza social para proteger, etc. Alguns assinavam manifestos declarando-se que toda a dívida seria abençoada desde que canalizada para as obras públicas de grande calibre como o TGV.

O Programa do Partido Socialista, partido vencedor, era explícito em todos estes aspectos e nos debates com os líderes da oposição, realizados na televisão, o primeiro-ministro desfolhava, consultava e relia em voz bem alta as palavras gravadas a ouro no documento sujeito a sufrágio.

O povo votou nessas promessas, e venceram aqueles ideais. Semanas depois eram transcritas para um documento designado de Programa de Governo que foi, por sua vez, aprovado pelo Parlamento. Era o Programa para uma legislatura.

No entanto, não é por gostarmos de viver num sonho que a realidade vai ao seu encontro e o que muitos previam e que os eleitores não gostaram de ouvir, votando no programa vencedor, era diferente.

Dito e feito. E é assim que um grupo de ministros, tão empenhados na defesa de um ideal e de um programa para quatro anos, se vê agora a braços com uma série de medidas para implementar no mesmo período, e que até eram algumas delas (ainda poucas) as que a oposição defendia. Custa-me vê-los pois, como republicanos de ética inabalável e homens de "H" maiúsculo, sei o profundo e insustentável conflito que devem travar dentro dos seus seres, preenchido pelas longas noites, acordados, em interior debate lancinante, num vai e vem entre a arma carregada que se aponta à cabeça, e a vergonha de dar o dito por não dito... Será que aguentarão viver este sentimento mortificante de um verdadeiro "Pec"ado?

«DE» de 11 Mar 10

Tabus

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Por João Paulo Guerra

OS BEM-INTENCIONADOS que tentam empurrar Marcelo Rebelo de Sousa para a corrida à liderança do PSD não terão percebido que o professor terá outros horizontes.

E então assiste-se a esta cena gaga de barões, notáveis, insignes, conspícuos e outras castas reconhecidas no PSD a incitarem um quinto candidato a avançar para destroçar outros quatro, enquanto o visado assobia para o ar.

Tudo isto tem a ver com o problema dos tabus que, longe de rodearem a política portuguesa de uma aura de mistério, antes a envolvem num manto de opacidade. E isto, quer queiramos, quer não, tem a ver com a mitologia portuguesa. Um candidato é sempre, mais que apenas ele próprio, um Galaaz com Pátria, Mestre da Paz, Senhor do 5º Império, o Encoberto, O Desejado. O messianismo, quando cai das alturas, tem destas coisas. E a manhã de nevoeiro nem sequer é problema. Qualquer empresa de eventos produz uma manhã, ou um fim de tarde, ou mesmo uma noite de nevoeiro, com brumas de quaisquer cores, em qualquer congresso partidário, declaração ao País ou conferência de imprensa.

O que se passa é que desde o século XVI os portugueses andam á espera de alguma coisa ou de alguém. Havendo procura, há oferta e os apóstolos de O Desejado têm-se sucedido: o sapateiro de Trancoso, Gonçalo Anes Bandarra, o Padre António Vieira, Fernando Pessoa, o telejornal, verdadeiro arauto da Nova Era. No caso vertente, o simples facto de existirem quatro candidatos disponíveis suscita de imediato o desejo de um quinto, O Desejado.

Acontece, porém, que neste caso O Desejado do PSD tem em vista um outro fado, suprema prova, a qual no entanto estará pendente de um outro tabu. Na democracia portuguesa, o trânsito de Encobertos e Desejados está transformado num engarrafamento.

«DE» de 10 Mar 10

Ontem, no Hospital Amadora-Sintra

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Com os pilaretes destruídos (e como?! Com jipes?!), já é possível estacionar em cima dos passeios e placas - apesar de não faltar estacionamento (gratuito)
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Um pequeno pormenor de civismo.
Até havia pessoal de limpeza a trabalhar ali perto. Mas a quantidade de gente que eu vi a deitar lixo para o chão (um pouco por todo o lado...) era assustadora!

Passatempo-relâmpago de 11 Mar 10 - Solução

Pergunta:
O que é que estão estes pratinhos aqui a fazer?
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RESPOSTA:



Os discos são a parte que sobrou dos pilaretes existentes no Hospital Amadora-Sintra.
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Ver mais fotos [aqui].

quarta-feira, 10 de março de 2010

Passatempo-relâmpago de 10 Mar 10 - Solução



A cara desapareceu. Mas tendo em conta a postura, os 3 bicos no rabo, o lacinho, o colete, os riscos nas mangas e os 2 grandes botões, a personagem em causa só pode ser o Pato Donald.

Viver na mentira e no medo do futuro

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Por Baptista-Bastos

PERGUNTAMO-NOS, entre a perplexidade e o espanto, se exercemos o suficiente das nossas recusas para que nos não acontecesse a "dimensão" única que nos é rudemente imposta. Parece uma conjugação de perversidades, sem conciliação possível com os nossos dramas. José Sócrates insulta-nos quando a "crise internacional" se converte na categoria central do seu discurso político. E trata-nos como beócios como quando, anteontem, foi à televisão "explicar" o PEC. A verdade é singela: muito antes dos sismos cíclicos do capitalismo, já sofríamos a desestruturação trazida pelo "mercado". Sócrates não dispôs, por absoluta ignorância, de um projecto que se opusesse a essa ofensiva. E havia algumas possibilidades alternativas, entre as quais as propostas contidas num livro do socialista Fernando Pereira Marques, Esboço de Um Programa para os Trabalhos das Novas Gerações, lamentavelmente pouco conhecido.

Um ensaio muito sério, muito original e muito estimulante, editado em 2007, por um intelectual para quem Portugal está longe de ser uma nação condenada. "É necessário encontrar novas vias para a reforma radical do modelo de sociedade e de economia que se impôs nos países desenvolvidos, à custa do atraso, da pobreza e até da guerra em que vivem os demais." Eis um dos poucos livros que criticam o capitalismo, cuja análise anda arredia das nossas preocupações. Na imprensa, então, o supérfluo representa uma simbiose da imperícia e do desconhecimento das lógicas de poder.

Sócrates fez o que lhe era possível, dir-se-á. Não. Sócrates fez o que a consciência socialista (o que quer que isto seja) verberaria com impetuosidade. A extensão e os danos deste ciclo político podem pôr em causa a democracia. No nosso caso, o pouco que dela resta. O primeiro-ministro abriu caminho para o que de pior certamente advirá. E os putativos substitutos podem mesmo reclamar ainda mais penosos sacrifícios da nossa parte. Sócrates exacerbou as dimensões racionais da vida social. A sociedade portuguesa vive na ambivalência da inferiorização e da revolta. Quando ele diz que não vai aumentar impostos; que os ricos irão pagar mais; que as nossas penas e os nossos pesares serão minimizados, está a fugir da verdade a sete pés. A associação da ética republicana (de que tanto fala), com a assunção da linguagem dos factos, distingue a honra e a decência da trapalhice e da ambiguidade. José Sócrates, que arrastou consigo um pesado descrédito para o PS, conjugou a sua debilidade ideológica com uma insaciável sede de poder - que percorre, invariavelmente, aqueles que são passíveis de variações consideráveis.

«DN» de 10 Mar 10

terça-feira, 9 de março de 2010

Passatempo-conjunto De Rerum Natura-Sorumbático - Prémios


Livros disponíveis
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O De Rerum Natura e o Sorumbático decidiram atribuir a seguinte classificação:

1.º: GMaciel
2.º e 3.º (ex-aequo): Luis Ferreira e Rui Guimarães.

Os três têm, a partir de agora, 24h para escreverem para premiosdepassatempos@iol.pt indicando 3 dos 4 livros disponíveis (por ordem decrescente de interesse) e morada para envio.

PEC Brado

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Por João Paulo Guerra

É DE UMA confrangedora falta de originalidade e de imaginação.

São rimas de pé quebrado que vão dar brado: dureza rima com pobreza, estabilidade com desigualdade, ordenados com congelados, a despesa vai para baixo da mesa e o rigor vem do anterior. O Programa de Estabilidade e Crescimento bebe nas receitas fundamentalistas do FMI, que os portugueses conhecem há tanto tempo como a democracia. O que é um flagrante desrespeito do espírito do 25 de Abril, a revolução dos três "dês": a descolonização já foi, a democracia é de quatro em quatro anos e o desenvolvimento foi para a mesma gaveta onde estará o socialismo.

O que é de assinalar é que nenhum partido se apresenta ao eleitorado com o programa do FMI como bandeira. Relembro mais uma vez que no Verão passado, à bica de três eleições, o Partido Socialista anunciou formalmente "o princípio do fim da crise". Agora era caso para o PS ser processado por publicidade enganosa. Ou então por incompetência ruinosa. E isto é dito sobre o PS como seria em relação a qualquer um dos partidos que se sucedem no poder alterno. O PSD, de parceria com o CDS, a última vez que foi despedido do Governo andava já a pregar o fim da austeridade. E, ganhando eleições com tal ilusão, à volta lá esperava os crédulos cidadãos com novos furos no cinto.

Depois é de uma ironia de muito mau gosto alcunhar de estabilidade um conjunto de medidas que vão, como se está mesmo a ver, semear o maior desassossego e tensão social. A menos que a ideia seja mesmo essa: tolerar alguma indignação e protesto, absolutamente sob controlo de meios e forças que nenhum cidadão imagina que existam, para que sirvam como tubo de escape. Ou como uma espécie de democracia. Enquanto de facto está em vigor a ditadura do FMI.

«DE» de 9 Mar 10

segunda-feira, 8 de março de 2010

As catástrofes e as leis de emoção (*)

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Por Eça de Queirós

DESDE QUE NÃO CONVERSAMOS, meus amigos, este nosso Velho Mundo e os outros mais velhos que se estendem para Oriente têm sido visitados por males inumeráveis, uns trazidos pelas violências da Natureza, outros pela violência dos homens, porque o consciente e o inconsciente (se é que este realmente existe) rivalizaram, como sempre, na produção da dor.

No Japão foi um desses pavorosos «macaréus», que tanto assustavam os nossos navegadores do século XVI, invadindo em desmedido vagalhão léguas de costa e lambendo aldeias, cidades, centenas de milhares de criaturas, como se fossem apenas conchas e areia leve. Na China a costumada trasbordação de rios, afogando nessa noite quinhentos mil chineses, um milhão de chineses, todo um imenso e escuro formigueiro chinês, com a simplicidade com que entre nós um riacho, depois da chuvas, alaga um feijoal em uma horta ribeirinha. Na Índia a peste junta com a fome, à velha maneira oriental, com esse horrendo feitio das expiações bíblicas em que os esfaimados findam por comer os cadáveres, e os pestíferos, aos centos, agonizam à beira dos caminhos, em breve todos brancos de ossadas.

Na Arménia uma prodigiosa matança de trezentos mil cristãos, metodicamente dirigida pelas autoridades muçulmanas, com muita ordem, muito vagar, horas regulamentares para assassinar e para descansar e uma escrupulosa escrituração. Na Turquia e na Grécia uma guerra, que não ressuscitou a luta clássica do orientalismo e do helenismo (porque já não há orientais e ainda menos helenos), mas renovou uma briga entre a cruz e o crescente, briga toda concebida no espírito do século XIX, racionalista e positiva, em que os príncipes cristãos (até o papa) se colocaram num utilitário entusiasmo do lado do crescente, de sorte que a cruz teve de fugir com um dos braços partidos por esses caminhos tessálicos por onde outrora o Grego costumava alegremente acossar o Persa numeroso. Na ilha de Creta, tão querida a Júpiter, horrores inenarráveis, sob a vigilância pensativa e paternal de seis esquadras da Europa. Em Espanha bombas e suplícios. E enfim neste Paris o dia doloroso em que a ciência, sob a forma de um cinematográfico, queimou por seu turno, num vasto auto-de-fé, a religião, representada por piedosas senhoras que celebravam uma festa de devoção e caridade católica...

Mas eu não sei, meus amigos, se estas desgraças realmente vos interessam, vos comovem – porque a distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som. A mesma dura lei física rege desgraçadamente a acústica e a sensibilidade. É sempre em ambas o idêntico e tão racional princípio das ondulações, que vão decrescendo à maneira que se afastam do seu centro, até que docemente se imobilizam e morrem: se elas traziam um som que vinha vibrando – o som cala quando elas param: se traziam um terror que vinha tremendo – o terror finda quando elas findam.

Bruscas, grossas, frementes, rápidas em torno ao choque que as produziu, essas ondulações não são mais, nos horizontes remotos, do que um vago, quase liso arfar, que mal se diferença da inércia. Senão vede! Em Pequim, subitamente, uma tarde, ribomba um pavoroso trovão – e ao mesmo tempo pega fogo na vistosa cabaia de um mandarim muito ilustre, que morre queimado. Por todo Pequim a impressão é tremenda. Até o imperador, filho do Sol, nos seus grandes jardins, estremeceu, aterrado com aquele imprevisto troar de um céu puro: e nas vielas mais sórdidas os coolies mais piolhentos interromperam um momento o seu negro trabalho para lamentar com exclamações o mandarim muito ilustre. Mas aí está! A vinte ou trinta léguas de Pequim o terrifico trovão foi apenas um rumor que se confundiu com o rolar das carroças nas lajes – e, quando se contou nas lojas loquazes dos barbeiros o desastre do mandarim em chamas, só algum nédio funcionário, com sabão na bochecha, murmurou oficialmente algum «ah!» desinteressado e mole...

É que o som do trovão e a emoção do desastre vieram trazidos por ondulações, que, a trinta léguas de Pequim, seu centro vivo, já se alisavam, imobilizavam, morriam.

E quando aqui na Europa, de manhã, sabemos pelo telégrafo bisbilhoteiro do mandarim e do trovão, nem o nosso ouvido sente o mais ténue som, nem o nosso coração a mais ténue piedade.

Não ondularam até nós as ondulações acústicas e emotivas. E é com absoluta placidez que murmuramos: «Houve em Pequim um grande trovão; e – tem graça! – ardeu um mandarim!»

Mas então essa confraternidade humana – pela sublime força da qual nada do que é humano deve ser alheio ao homem? Não existe? Oh, certamente – mas para todo o homem, mesmo o mais culto, a humanidade consiste essencialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro. Todos os outros restantes, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente desarmonizando em relação ao seu sentimento, de sorte que os mais remotos já quase os não distinguem da Natureza inanimada. Quando qualquer de nós, no seu quieto e salubre bairro, ouve contar que uma furiosa peste matou trinta mil patagónios, fica exactamente penetrado daquela quantidade de compaixão que o invadiria ao saber que um furacão derrubara trinta mil árvores de um bosque. E de um bosque muito longínquo, de uma região muito desconhecida! Porque se as árvores destruídas fossem as do nosso doce Bosque de Bolonha, que nós amamos, tão ornadas e verdes em Maio, tão puramente vestidas de branca neve quando o Inverno se faz elegante e fino – a nossa mágoa teria uma intensidade infinitamente mais viva do que com a aniquilação desses vastos milhares de patagónios.

E esta estreiteza da emoção deriva de leis tão fatais que não se dá somente nas almas de caridade estreita – mas ainda nas mais ternas e nas mais largas, naquelas que parecem abrigar na sua amplidão do padecer humano... O bom senhor S. Vicente de Paulo, a quem o encontro de uma criancinha tremendo de frio ao canto de uma rua arrancava prantos desolados, que corriam enquanto ele corria com a criancinha sofregamente apertada nos seus braços, só teria um pálido e resignado suspiro quando ouvisse que, também na Tartária, em outras vielas regeladas, outras criancinhas tiri-tavam e choravam – se é que a homem tão ocupado com as misérias de França restava tempo para suspirar com as misérias da Tartária.

E até talvez o muito divino S. Francisco, o adorável pobrezinho de Assis, irmão de todos os seres e para quem os próprios passarinhos das veigas de Itália eram irmãos muito queridos, não sentisse a sua costumada ternura, tão alvoroçada e activa, pelos pobres da Noruega, e não se reconhecesse inteiramente irmão dos pardaizinhos da Finlândia!

A superior sapiência das nações já formulou esta lei naquele seu fino adágio: «O coração não sente o que os olhos não vêem.» Para chorar é necessário ver. A mais pequenina dor que diante de nós se produza e diante de nós gema, põe na nossa alma uma comiseração e na nossa carne um arrepio, que lhe não dariam as mais pavorosas catástrofes passadas longe, noutro tempo ou sob outros céus. Um homem caído a um poço na minha rua mais ansiadamente me sobressalta que cem mineiros sepultados numa mina da Sibéria – e um carro esmagando a pata de um cão, em frente à nossa janela, é um caso infinitamente mais aflitivo do que a heróica e adorável Joana d’Arc queimada na praça de Ruão!

A distância e o tempo fazem das mais grossas tragédias ligeiras notícias – onde nenhum espírito são, bem equilibrado, encontra motivo de angústia ou pranto. Hoje certamente ninguém, a não ser algum velho e alto dignitário da Igreja ou do Estado, assistiria, com os olhos secos e o coração quieto, ao suplício de Joana d’Arc – mas nenhum fisiologista garantiria a sanidade intelectual de um sujeito que, na solidão da sua alcova, com as janelas cerradas, se desfizesse em lágrimas por os Ingleses terem outrora supliciado Joana d’Arc.

No entanto, vós observais, amigos, que já repetidamente chorastes (porque sois bons) com dores humanas, não somente sucedidas longe do vosso bairro, mas fora do vosso século; e algum mesmo me mostrará, como emblema irrecusável da confraternidade humana, o lenço sentidamente humedecido na véspera ao escutar os adeuses de Luís XVI aos filhos na prisão do Templo, ou mesmo a antiga Inês de Castro balbuciando as suas súplicas aos pés do antigo Afonso IV!

Decerto! E mesmo já muitas vezes tereis sufocado generosos soluços com misérias e tormentos de criaturas que só viveram no mundo aéreo da imaginação e do sonho. Mas quando, onde foi que assim vos comovestes, tão humanamente? Quando? Onde? No teatro, ou nas páginas de um romance, ou mesmo através dos sinceros versos de um poema, quando a arte, encarnando os seres dolorosos que concebeu ou ressuscitando com flagrante e magnífica realidade as figuras mortas da história, torna durante um momento essas criaturas, não somente vossas contemporâneas, mas vossas vizinhas, moradoras no bairro em que morais, respiradoras do ar que respirais, e pertencentes portanto àquela porção de humanidade próxima e tangível, cujas dores se partilham, porque confinam com as nossas... E depois, tal sujeito – que choramingou, no fundo do seu camarote, assistindo à morte da Dama das Camélias, morta pela milésima vez, na sua alcova de lona e papelão – recolherá a casa e lerá no jornal, com absoluta indiferença, mastigando a torrada, que duzentas mulheres, com os filhinhos nos braços, morreram afogadas num naufrágio, longe, nos mares da Indochina! Sim, amigos, essas duzentas mães afogadas nas vagas indochinesas certamente vos serão estranhas, e como não existentes! Se elas tivessem naufragado nos mares dos Açores, já sem dúvida tão patética nova vos arrancaria algum vago murmúrio de simpatia. Mas se elas houvessem perecido, elas e os pobres filhinhos, na baía do Rio de Janeiro, que incomparável catástrofe – e como vós correríeis pelas ruas, pálidos cheios de espanto! Que digo eu? Para vos comover nem seriam necessárias duzentas desgraçadas – bastaria que naufragassem duas, se vós as conhecêsseis de nome e de rosto! Porque, segundo a cruel lei física que regula os fenómenos da emoção – um empregado da Alfândega que caiu de um barco e desapareceu na baía do Rio de Janeiro vale, para o habitante do Rio, mil pescadores despedaçados sobre os rochedos nas costas da Islândia!

Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração! Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa outras senhoras costuravam.
Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com um sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela violência da Natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a Terra.

Ela lia as catástrofes lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. «Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas...» As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa – e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio trasbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados...». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!» A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas... Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal

atulhado de males. E ela mesma então teve um «oh!» de dolorida surpresa. No Sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilando causara três mortes, onze ferimentos...» Uma curta emoção, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses... Todos lamentaríamos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.

A leitora, tão cheia de graça, virou a página do jornal doloroso, e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno.... E, de repente, solta um grito, leva as mãos à cabeça:

– Santo Deus!...

Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:

– Foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista... Esta manhã! Desmanchou um pé!

Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.
As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltrona; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.

Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume.
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(*) - in Cartas Familiares e Bilhetes de Paris