segunda-feira, 27 de agosto de 2012


Revista Egoísta, edição de Junho de 2012


Deserto do Sara, Argélia 1973


Imagens Perdidas
Fotografias de António Barreto

Selecção e organização de Ângela Camila Castelo-Branco


        Há propostas de trabalho que nos atraem, mas inquietam. Patrícia Reis, na sua persistente vontade de surpreender, resolveu quebrar os preceitos habituais de formato de publicação da revista Egoísta, decidindo que a edição de Junho de 2012 seria redonda como a Terra. No seguimento da apresentação de um outro portefólio de fotografias de António Barreto, realizado para a revista anual da Fundação Eugénio de Almeida (América’78 - Kodachromes de António Barreto), a editora desafiou o fotógrafo a contribuir com um conjunto de 12 imagens para o número 49 da Egoísta, sob o tema “Noite”.


Se o tema, dado a múltiplas interpretações, permitia fazer correr livremente a imaginação, já o formato da publicação desestruturava, a priori, toda a lógica de concepção e enquadramento concebido no acto fotográfico. A fotografia, enquanto  resultado de um espaço figurativo perspectivado pelo fotógrafo, obedece também a uma organização que é limitada pelo plano focal do aparelho. Captamos imagens através de visores de vários formatos: rectangulares, quadrados ou redondos. Na ausência de manipulação, seja por distorção, sobreposição de negativos, montagem, ou intervenção do Photoshop,  o resultado final é sempre confinado a dois formatos: quadrado e rectângulo; redondo é que nunca, se exceptuarmos os primeiros rolos da Kodak ou as fotografias obtidas a partir das câmaras Pinhole.

Apesar de ter presente que o olhar do fotógrafo constitui o essencial do acto fotográfico, seleccionar e organizar um conjunto coeso, que obedecesse ao critério atrás descrito, proporcionou discussão e obrigou a uma reinterpretação das imagens. Uma tarefa trabalhosa e entusiasmante, tanto mais que António Barreto participou e teve sempre voz activa na decisão da escolha final.

O presente conjunto de fotografias respeita uma narrativa evolutiva em diversos momentos e situações da actividade humana. Nem sempre aquela mudança resulta no desaparecimento de uma actividade, quase sempre evidencia a transformação ou adaptação da mesma a uma outra realidade. O fotógrafo mostra-nos a agricultura, o comércio, o trabalho, o pão que nos chega à mesa e o lazer, em especial a terra da qual tudo podemos esperar: a aridez oxidada dos desertos, a passividade com que é rasgada e preparada para receber as sementes, a generosidade com que nos recompensa nas colheitas.

As 12 fotografias aqui intencionalmente geminadas, procuram mostrar “Imagens Perdidas”. São fragmentos de vidas e rotinas dispersas no tempo, intemporais portanto mas, apesar de tudo, imagens que se sentem à vontade no presente. Assim, o homem montado num jumento transportando folhas de palma, segue o seu caminho pelas areias do deserto, indiferente à estrada de asfalto que o ladeia (M’zab, Argélia 1973). Por ventura, a sua resistência ultrapassa a das modernas viaturas, cujas carcaças sucumbem à areia dos desertos, como testemunha o esqueleto de um “carocha” no deserto do Sara, fotografia do mesmo ano na Argélia. Ainda no norte de África, e daí para o sul da Europa, apenas dois anos separam a fotografia do costureiro “berbere”, que ganha a vida com uma máquina de costura em Beni Esguen, da fotografia em Lisboa onde conversam à janela de um primeiro andar do número 141 da Rua Augusta os alfaiates da Eugénio de Moraes, Lda.

Das vindimas no Douro ao casal que semeia na Beira Litoral, a agricultura sempre presente, imagens marcantes de um país que, contudo ainda hoje importa quase metade dos produtos alimentares que consome. Com o olhar fixo na câmara de António Barreto, o vendedor de alhos, em Ponta Delgada, é observado com espanto por um rapaz descalço que calcorreia a calçada negra da cidade com a mesma vivacidade com que os meninos em Argel se apressam a levar o pão para a mesa que os espera. Em Angra do Heroísmo, ao olharmos com uma certa nostalgia a fachada do Café Atlântico, distribuidor de espumantes e vinhos das Caves Monte Crasto, esquecemos que os líquidos que a boca pede são fruto de trabalho árduo suportado por homens que, até ao fim do ciclo da vindima, podaram, enxertaram, cavaram, colheram e transportaram às costas os cestos carregados com 60 quilos de uva.

Trinta a quarenta anos nos separam destas fotografias que parecem fazer parte de uma realidade longínqua. Mudaram os transportes, substitui-se a força braçal pelas máquinas, intensificou-se a produção, alargaram-se fronteiras... Para melhor ou pior, em continua batalha de criatividade, o engenho e a arte do homem transformaram a natureza!

Ângela Camila Castelo-Branco


M' zab, Argélia 1973



      Douro 1975                   Beira Litoral, ca. 1975


      Argel, Argélia 1973                Tourém, Trás-os-Montes 1982


     Ponta Delgada, Açores ca. 1980       Angra do Heroísmo, Açores 
                                                                  ca. 1980

                          Beni Isguen, Argélia 1973          Lisboa 1975

                Grécia 1975                 Budapeste, Hungria 1974


António Barreto
 © Fotografia Ângela Camila Castelo-Branco

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