quinta-feira, 19 de junho de 2014

NA PRIMEIRA PESSOA -Um pirolito igual ao nosso

Nesta rubrica escrevo, a partir de hoje, estórias
que se baseiam em episódios vividos por mim
nas mais diversas circunstâncias, desde as familiares
 até às profissionais, tentando assim repartir
com os leitores deste blogue experiências que fiz
durante a minha vida e que, na generalidade, e
 se o tempo retroagisse, voltaria a viver.
Espero que gostem. 
Por Antunes Ferreira

Fui mobilizado para Angola em 1966, depois de já ter sido promovido a alferes miliciano. Os acasos da vida aqui não entraram pois outros factores me forçaram a embarcar no “Uíge” com mais dois mil bicos fardados que foram encontrar a bordo uns quantos mais e quantas - e outros, entre as nove e as onze, mais acolhedores do que os restantes membros da tripulação. Estes últimos, poucos, tentaram de imediato fazer ralações, ups, relações mais próximas com os memb…, ups, a malta castrense. Vidas.

 A viagem correu satisfatoriamente, só houve, logo à saída da barra um soldado da Mouraria que meteu noutro três centímetros duma ponta-e-mola e quem levantou o auto adivinhem? Só a modéstia natural me impede de dizer que fui eu… E durante ela que demorou 14 dias tentei descobrir os mistérios insondáveis do brídege, tarefa que me foi quase infrutífera dada a condição do animal – eu – não me entusiasmar assaz com jogos de cartas e, sobretudo, porque as partidas eram a dinheiro e isso nunca fiz, faço e farei (conheço que disse façarei, mas isso é outra estória. A bordo, todos os oficiais gabavam a minha sorte, o que parecia ser a ironia suprema que não era; ao contrário desses militares cuja família ficava no Puto, a Raquel esperava-me em Luanda.


Minha mulher decidira ir também à guerra, uma muito especial, levando o Miguel e o Paulo como acompanhantes, porém sem guitarra nem viola. De resto, ela, quando abre a boca (até hoje) faz chorar de emoção que a ouve? Nada, faz chorar sim as pedrinhas da calçada horrorizadas perante as notas e as semifusas de tal sorte que há quem lhe chame filha da pauta. O desembarque no porto de Luanda decorreu sem grandes sobressaltos, a maioria do pessoal de trombas e eu com sorriso achincalhante.

Não resisto qui a contar anedota que corria por entre guindastes, cadernais e outros. Um soldado, pisando tereno firma vê um menino preto a vender jornais. Pergunta, “olha lá catraio o jornal é de hoje?” E a resposta pronta do negrito: “não, patrão, é doje e quinhentos”. Adiante, siga a estória ultrapassado que foi este breve parênteses. O Serviço de Justiça, minha especialidade levou-me à CCS/QJ – RMA, sigla cabalístico-militar que trocada por palavras queria dizer Companhia de Comando e Serviços do Quartel- General da Região Militar de Angola.

Salto aqui o que foi a minha vida entre autos e processos até às colunas ao mato; mas, estas merecem uma explicação mais pormenorizada. A minha especialidade como acima disse era SAM – Serviço de Justiça. Descodifico: Serviço de Administração Militar. Daí que a minha arma habitual era uma BIC laranja. Mas, de Lisboa, o ministro do Exército, general Luz Cunha, mandara um despacho para o general comandante da RMA (sigla acima) decretando que tratando-se eu de um elemento subversivo e comunista devia como prémio fazer colunas ao mato e, se possível, as piores possíveis. As possibilidades de que o alferes miliciano A. Ferreira levar um tiro eram possivelmente as mais possíveis.

Fiz umas quantas, bastantes, a locais pouco recomendáveis, desde Zala até Nambuangongo, passando por Sazaire. Pedra do Feitiço e quejandos. Sem ter apanhado o tal tiro recomendado. Passou o tempo até que completei cinco anos fardado. Por mor da PIDE que então não era DGS lá passei à peluda, jargão castrense que quer dizer passar à disponibilidade, ou seja regressar à vida civil. Se voltasse a Lisboa tinha a vida mais complicada por obra da prestimosa organização policial/política que gostava muito de mim. Para melhor, muitíssimo.

Já desfardado, um dia, ou seja, uma noite decidimos a Raquel e eu entre lençóis tentar a fabricação de uma menina pois já estávamos abonados de dois rapazes. Porém, o parto resultou numa “cachopa” que se chamou… Luís Carlos, contra todas as previsões de familiares e amigos que juravam a pés juntos o sexo feminino para a nascitura que, finalmente, foi um nascituro portador de saúde e de pulmões; na vizinhança faziam-se apostas sobre os decibéis do puto.


A Raquel entendeu dar o primeiro banho ao recém-chegado com os outros dois a assistir, a fim de desde logo conjugarem o verbo amar e o espírito de família com o júnior. E logo, depois de o desflraldar, o Miguel cochichou para o Paulo: “olha, ele tem um pirolito igual ao nosso”… E se os augúrios tivessem acertado e fosse uma catraia?

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