sábado, 26 de outubro de 2013

Andar por aí

Por Antunes Ferreira
PEDRO SANTANA LOPES criou a frase que ficou nos anais da história política de Portugal: “vou andar por aí…” Numa remake deturpada, Aníbal Cavaco Silva, quando confrontado pelos jornalistas para que esclarecesse a sua enigmática declaração sobre a possibilidade de enviar ao Tribunal Constitucional o Orçamento de 2014, afirmou com um sorriso (o que é raro, e os que exibe são no mínimo forçados) que face à questão, pedissem ao ministro Poiares Maduro que elucidasse o que ele, Cavaco tinha querido dizer, pois “ele anda por aí”.
Curiosa esta “delegação de poder para explicar afirmação alheia”. Não consta que a nova “figura política” esteja contemplada em algum código jurídico. Donde, o apelidado Presidente da República que já inventara o façarei e os cidadões, criou agora uma também nova legislação (?) ad hoc. No meio da balbúrdia que grassa nos meios presidências/governamentais – o que é o mesmo -, esta sentença é, realmente, inesperada, mas simultaneamente sintética, concisa e clara. Muito obrigada, Senhor Professor Doutor.
De homens como este, sábios, brilhantes, cultos, dialogantes, inspirados – quiçá pela Senhora de Fátima e pela sua (dele) caríssima esposa – carece este País. Porém, felizmente, eles emergem das águas mais revoltas; para ser mais específico, ele emerge. Sem margem para dúvidas, Cavaco emerge, contrariando assim os que afirmam que imerge. Arquimedes enunciou que "Todo o corpo mergulhado num fluido em repouso sofre, por parte do fluido, uma força vertical para cima, cuja intensidade é igual ao peso do fluido deslocado pelo corpo."
Aliás, é bom que não se esqueça a sua deslocação às Desertas, a fim de visitar as cagarras. Ainda que em navio da Armada Portuguesa ele nunca imergiu. Fá-lo-ia talvez se tivesse utilizado um dos submarinos que Paulo Portas “arranjou”; mas não foi esse o caso. E sem pretender abandalhar este escrito, poder-se-á dizer que o Senhor Silva também não emergiu; não andou sob as águas do mar revolto, mas sim, sobre. Está-se, portanto, perante um émulo do Cristo. O mais alto magistrado da Nação – expressão utilizada, como é sabido, nos tempos salazarentos, mas que a Cavaco se aplica como uma luva – tem, pois, uma aura divina. E apóstolos.
Relembra-se aqui o episódio evangélico do caminhar sobre as águas, protagonizado pelo filho (?) do carpinteiro e pelos doze discípulos que o acompanhavam habitualmente. Conta a estória (que não se pode confirmar por não existir documento comprovativo) que o Nazareno recomendara à dúzia que o seguia, “Tende fé, camaradas, e andareis sobre as águas” – ressalve-se o termo aqui utilizado, que pode ser substituído por amigos - que nesse caso eram as do mar da Galileia. 
Em abono da verdade – e antes de concluir o ocorrido – há que dizer que uma outra versão do milagre foi relatada por Mateus (14:22-33), Marcos (6:45-52) e João (6:16-21). Mas, para o caso, há que retomar o que se vinha relatando. Evangelhos há muitos; pelo menos quatro; mas se contarmos com os apócrifos, que se diz serem cinco a coisa toma outro perfil e, bem entendido, outra dimensão. Adiante.
Os treze intérpretes do suposto milagre começaram, então, a caminhar sobre as águas, com os doze acólitos maravilhados e, ao mesmo tempo, espantados com o feito. Perdão, a dúzia, não; os onze. Isto por que Judas Iscariotes começou a imergir. Já preocupado, ele bateu no ombro de Filipe que o antecedia, solicitando-lhe que passasse palavra a fim de que o Mestre soubesse que ele, Judas, já tinha OH2 pela cintura.
Assim se fez; e o Senhor, voltou-se para Pedro que o seguia uns passos atrás e disse-lhe que, segundo em caminho inverso ao que se verificara, fosse acentuado a Judas que tivesse fé e andaria sobre as águas. Mas, quando a informação chegou ao Iscariotes, este já tinha água pelo peito. E de novo, o caso repetiu-se, com a transmissão oral – que me seja permitida a expressão um tanto pecadora, em linguagem politicamente correcta e usada em campanhas eleitorais, boca a boca.
Quando já estava imerso até aos primeiros pelos da barba, o apóstolo e futuro bufo repetiu o apelo. Este chegou a Jesus que, entre o preocupado e o irónico, respondeu a Pedro: “pronto, não se fala mais nisso; ensinem-lhe a localização das pedras. Estas sim, estas emergiam. Passe o anedótico da estória, há que reconhecer que ela tem algum fundamento: não se deve acreditar nem na própria sombra. Si non e vero, e bene trovato.
Voltando à expressão utilizada na política nacional, o andar por aí já ganhou foros de consagrado de tão repetido. A única dúvida que subsiste consiste em tentar saber que o próprio Cavaco não entendeu o que antes afirmara. O que é absolutamente natural nele, até mesmo com laivos de patológico. Mas o ministro Maduro baldou-se: ele também não entendeu. Apesar do apelido, ele está ainda muito verde.