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quarta-feira, 6 de abril de 2011

A partilha do poder

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Por Baptista-Bastos

"Coesão" e "verdade" são termos muito utilizados nos últimos discursos do dr. Cavaco. Não querem dizer nada e não se escoram em coisa alguma. O País está dividido, desenganado, irritado e furioso com aquilo que os políticos lhe têm feito; e a palavra "verdade" faz com que fuja espavorido. Todos mentem, com maior ou menos ração, e até o dr. Cavaco não está propriamente limpo do feio pecado. Acresce que os seus textos expõem uma mediocridade de forma e de conteúdo, uma sensaboria gelada que a ninguém empolgam.

O homem pode dizer o que quiser, que veio do povo, que ao povo pertence, mas não provoca nenhum sentimento de emotiva mobilização. Ele não sente, nunca sentiu, o impulso da insubmissão e da revolta. É um ser "institucionalizado." Os indivíduos ou os grupos agem e procedem a rebeliões específicas de conduta quando as ameaças que os cercam quase elaboram a alternativa de um contra-governo. As imponentes manifestações da "geração à rasca" são sintomas e indicações.

A maneira como temos sido conduzidos e governados, prolonga a ideia de que todo o poder encontra resistência, mais tarde ou mais cedo. E a alternância, sem alternativa, entre PS e PSD, obrigando à servidão monótona do voto, atinge a sufocação. Bem pode o dr. Cavaco suspirar pela "verdade" e aspirar à "coesão." Olhe-se e veja-se. No PS de Sócrates a intriga não chegou para amolgar os 93 por cento obtidos pelo mal-amado. Os socialistas estão cegos e arfantes? Não têm é outro "camarada" que substitua Sócrates, e Sócrates representa a garantia de que talvez se mude alguma coisa para permanecer tudo na mesma. E se, nas próximas eleições, o PS voltar a ganhar e a apostar, de novo, no seu secretário-geral?

O PSD de Passos Coelho é o labirinto de onde nunca ninguém soube sair. Continuam lá todos aqueles que, através das fórmulas mais paradoxais, e dos entrelaçamentos mais duvidosos, se foram governando sem pudor nem inquietação. A ausência da tal "verdade" tem sido uma constante naquele partido, exactamente porque foi ele um dos construtores e sustentáculos do "sistema". É, pois, a título de parceiro e de adversário que o PSD e o PS têm partilhado o poder e dividido as benesses e privilégios que lhes são afins. A "mentira" começa nesse embuste da "verdade" e o dr. Cavaco é um dos arquitectos desta estática.

Torna-se cada vez mais evidente que Passos Coelho (com quem pessoalmente simpatizo) não está à altura da situação. O apelo às coligações, feito por dirigentes políticos e por jornalistas e preopinantes estipendiados, enuncia, claramente, o problema e a enorme baralhada em que nos envolveram. Em que nos envolveram aqueles mesmos ou os seus directos descendentes. No entanto, talvez as coisas, desta vez, não sejam tão felizes para eles.
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«DN» de 6 Abr 11

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Peças do 'puzzle'

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Por Baptista-Bastos

MÁRIO SOARES foi o vencedor das eleições. A astúcia e a imaginação do velho estadista permitiram que Fernando Nobre, metáfora de uma humanidade sem ressentimento, lhe servisse às maravilhas para ajustar contas. É a maior jogada política dos últimos tempos. Um pouco maquiavélica. Mas nasce da radical satisfação que Mário Soares tem de si mesmo, e de não gostar de levar desaforo para casa. Removeu Alegre para os fojos e fez com que Cavaco deixasse de ser tema sem se transformar em problema. O algarvio regressa a Belém empurrado pelos acasos da fortuna, pelos equívocos da época, pelo cansaço generalizado dos portugueses e pelos desentendimentos das esquerdas (tomando esta definição com todas as precauções recomendáveis). Vai, também, um pouco sacudido pelo que do seu carácter foi revelado. Cavaco não possui o estofo de um Presidente, nem um estilo que o dissimulasse. Foi o pior primeiro-ministro e o mais inepto Chefe do Estado da democracia. Baço, desajeitado, inculto sem cura, preconceituoso, assaltado por pequenas vinganças e latentes ódios, ele é o representante típico de um Portugal rançoso, supersticioso e ignorante, que tarda em deixar a indolência preguiçosa. Nada fez para ser o que tem sido. Já o escrevi, e repito: foi um incidente à espera de acontecer. Na galeria de presidentes com que, até agora, fomos presenteados, apenas encontro um seu equivalente: Américo Tomás. E, como este, perigoso. Pode praticar malfeitorias? Não duvido. Sobre ser portador daqueles adornos é uma criatura desprovida de convicções, de ideologia, de grandeza e de compaixão. Recupero o lamento de Herculano: "Isto dá vontade de morrer!"
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«DN» de 24 Jan 11

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Éramos todos tão novos...

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Por Baptista-Bastos

VÍTOR ALVES foi embora deixando a pátria numa situação que ele não desejava. Gostava muito deste homem sereno, culto, generoso, cordial a afável, que jogara, no regueirão de todos os perigos, a sorte pessoal e o desígnio colectivo. Ele e outros como ele são credores da minha maior gratidão. Ele e outros como ele resgataram os silêncios impostos e os medos compulsivos da minha geração e os das anteriores. O risco que Vítor Alves correu foi soberano entre os demais: o da vida, o da carreira, o da família.

Os jovens capitães de Abril possuem uma dimensão de coragem adveniente da espessura comovente do seu humanismo. Há qualquer coisa de épico e de poético na arrancada militar desse dia tão longínquo, tão próximo e tão delido no tempo e no esquecimento dos nossos desleixos. "O dia inicial inteiro e limpo", como lindamente lhe chamou Sophia, era o dia esperado pelos melhores de nós. E os melhores de nós desanimavam de o conhecer quando um grupo de homens muito novos nos convidou a ressurgir.

Às vezes, ia conversá-lo no seu gabinete. Os dias eram incertos, mas os sonhos nada tinham de indecisos. Ele transportava consigo uma cultura transeunte e uma bonomia que jamais ocultou as preocupações nascidas dos grandes embates ideológicos. Também bebíamos o uísque da amizade no João Sebastião Bar, reduto privilegiado de todos os imprevistos. Mais tarde, Álvaro Guerra, embaixador, escritor e jornalista, reunia, em almoços prolongados, nas casas de Mafra ou de Vila Franca de Xira, um grupo imponderável de amigos, em diálogos já perfumados de passado e de esperanças partidas. E era reconfortante ouvir este homem, apesar de tudo jovial e sorridente, a rematar os desalentos com uma frase benfazeja: "Mas as coisas estão muito melhores do que eram." A juventude já se fora; éramos uns senhores portugueses de cabelos brancos a quem a sabedoria do tempo ensinara a falar escasso para se dizer muito.

Queríamos mais do que havíamos obtido, porque sabíamos o que a "recuperação" consigo arrastava. A responsabilidade não deve ser dissimulada. Fomos nós todos que fizemos "isto". Víamo-nos mais espaçadamente. Mandava-lhe os meus livros, dirigia-me cartas generosas, calorosas e fraternas. Disse-me, há anos, que estava com problemas de saúde. Vasco Lourenço revelou-me a gravidade desses problemas. Estavam a ir alguns daqueles que eu mais respeitava; alguns daqueles, agora transfigurados em memórias e em penumbras, que tinham dado consistência à História.

Nada do que foi voltará a ser. Mas estar é, já em si, o bastante. Observo, na gelada noite da igreja do Paço da Rainha, os capitães de Abril, que se curvam ante o esquife do camarada de armas. Tínhamos todos a mesma idade.
Adeus.
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«DN» de 12 Jan 11

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Da inépcia como virtude

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Por Baptista-Bastos

DEVO CONFESSAR, à puridade, um desejo modesto, porém ardente: gostava de que o Presidente fosse um homem culto, lido, cordial e descontraído. Não o é. E o meu recatado desgosto consiste no facto de ele desencadear, com as deficiências culturais e aleijões de carácter que demonstra, um generalizado reflexo condicionado. Os dez anos que levou de primeiro-ministro constituíram um cerco e o esmagamento das desenvolturas e das exaltações que o 25 de Abril nos tinha proporcionado. O País cedeu ao mito do político severo, austero, hirto e denso. E admitiu, como sua, a imagem brunida que ele expunha. Um chato. Mas um chato perigoso por aquilo que representa.

Nada tenho de pessoal contra o senhor. Ele pertence a uma sociedade velha e relha, que apenas assegura formas de autoritarismo. Estes cinco anos de Presidência acentuaram o infortúnio. Os debates nas televisões foram expressivos do desagrado que algumas intervenções causavam no dr. Cavaco. Trejeitos de ira, contorções dos músculos faciais, movimento descomedido dos lábios, frases desmedidamente agressivas. A medonha panóplia de exercícios paliativos forneceu-nos a estirpe do indivíduo e a compleição do político.

O pior foi o discurso da quadra. Se o de José Sócrates representou a vacuidade total, o do dr. Cavaco fundamentou a admissão de uma era vindoura de incertezas. Apenas a reiterada advertência de que "eu bem avisei a tempo". O disperso, confuso e absurdo afastamento de responsabilidades que também lhe cabe. Depois, o caso do BPN e da Caixa Geral de Depósitos. Então, as debilidades da natureza moral do candidato emergiram de roldão. Ao acusar de incompetência a administração do banco das fraudes, trucidou alguns dos seus antigos comparsas de Governo, entre os quais o perplexo e honesto Faria de Oliveira. Procedeu como o fizera com Fernando Nogueira, Santana Lopes, Fernando Lima: serviu-se e descartou-se. Perante as acusações de tibieza que lhe foram feitas, o homem, atabalhoadamente, tentou proteger-se usando o pretexto que lhe é comum: disse que não dissera o que tinha dito e acusou os jornalistas de interpretação abusiva. Uma televisão retransmitiu a verdade dos factos e as declarações proferidas. Nem por isso o prevaricador se retractou.

Já cansa repetir que o dr. Cavaco é um incidente desgraçado na nossa história próxima recente. Metáfora de um país sem juízo, também não chega. Ele resulta de uma confusão entre a ignorância e a beatífica admissão de uma cultura de aparências. Surpreende (o não?) haver gente de envergadura intelectual e moral a apoiar, para reeleição, uma criatura que, por incultura, inépcia e desadequação nunca encontrou a fórmula de viver e de actuar perto das questões e do coração dos portugueses.
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«DN» de 5 Jan 11

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Sonata para um menino que está a chegar

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Por Baptista-Bastos

VENS JUNTAR-TE a nós e, em si mesma, a tua vinda é já um acto de comovente beleza. Há muito que te esperávamos, provindo dessa interminável sequência na qual se tecem os fios da nossa condição. As coisas não estão boas, por aqui. Mas os tormentos que nos assolam não calam a voz das nossas esperanças. Vem, menino. Pertences a uma estirpe que acendeu o seu lume em muitos campos alheios e fez um leito de nações num concerto de poesia que dura há séculos. Que quer, rigorosamente, dizer isto? Que o parágrafo das nossas vidas tem sido extenso e que, no encontro com os outros, alargámos os laços da nossa pessoal intimidade.

Vem, menino. Menino novo, cujo coração unânime vai bater como o coração de um anjo que sorri e nos acena. Sei que vais ser um menino feliz, como eu sou feliz ao escrever esta afirmação pausada. Menino feliz porque te espera um coro de risos, de faces radiantes; a paixão de quem quer dar tudo pela fortuna de te ter consigo e o regozijo de nos pertenceres para te pertencermos.

Há muito que te esperávamos. Há muito que te esperava, como o louvor de uma boa nova ou o sinal de uma luz rigorosa para a festa de todas as festas. E aí vens.

Já se sabe como é o mundo: sombrio e venal, cobarde e duro, obscuro e triste, glorioso e valente, tímido e arrogante, calado e grosseiro. Já se sabe. Mas a qualidade áurea das criaturas que o habitam e que o moldam, com a argila das suas individuais deficiências, faz com que, todos os anos, continuemos a acreditar. E assim nascem meninos como tu, produtos dessa crença confusa na concórdia que nos impele para todos os recomeços.
Em cada ano que atravessa outro ano renovam-se os risos, remoçam os alvoroços, renascem os velhos no olhar dependente dos meninos, porque os velhos são meninos que se prolongam na pontualidade e no espanto das coisas permanentemente inauguradas. A vida, como é hábito.

Espero-te com a emoção de quem viajou por muitos bares, muitas cartografias, por muitas palavras, por muitos socalcos. Mas não quero dar-te conselhos. Os conselhos são o modo de os antigos imporem uma ridícula superioridade. A expressão: "No meu tempo..." é o início de algo de enfadonho; a fastidiosa e inútil frase que pretende doirar o passado de misérias e afrontas. Como se isso fosse possível. O tempo é todo nosso, o teu e o meu, pode levar tudo, mas nunca lava tudo.

O mundo anda atrapalhado e aflito. Há quem pense que deixou de haver lutas e que a nitidez do entendível perdeu-se no opaco e na desistência. Vais ver que as realidades não são bem assim e que as razões da existência dispõem de argumentos poéticos com os quais se pode enfrentar a manipulação, a omissão, o medo e a mentira.

Não te demores.
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«DN» de 29 Dez 10

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O rebuçado

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Por Baptista-Bastos

ÍAMOS, OS CINCO,
nos Restauradores. O dinheiro era pouco e, por isso mesmo, rateado. Fazia frio e éramos felizes. Decidimos, dentro do frio e na nossa felicidade frugal, sentarmo-nos na casa dos sorvetes e comer meia cassata. Antigamente, no tempo do frio, ninguém, em Lisboa, comia gelados, e arrepiávamo-nos quando víamos, nos filmes, miúdos e graúdos a lamber cones de sorvete. Mais tarde, muito mais tarde, em Moscovo, surpreendi o deleite, para mim inaudito, de ver magotes de gente a medir-se com enormes invólucros de plástico repletos de sorvetes de várias cores. Caminhava pelas ruas cheias de neve, na companhia do meu amigo José David Lopes, camarada do Diário de Notícias, e resolvemos beber vodca pelo gargalo de uma garrafa avulsa, acaso como retaliação absurda pela quantidade de pessoas lambedoras de sorvete.

Mas, naquele dia, éramos os cinco e não havia infelicidade que nos tocasse no batente. Sorríamos uns para os outros, e eu estava com aquele orgulho, um pouco tolo, um pouco ufano, do patriarca que nunca se desentende da sua condição. Os nossos três rapazes estavam naquela idade em que a música dos sonhos nunca se esfuma e tudo é permitido e possível. A minha mulher, jovem, serena e vigilante, observava-nos a todos, e eu sentia a pulsão do imperativo que a animava. Um dia, pensei, hei-de escrever sobre este momento, no qual se desprende o íntimo de um coração, e se ignora a metáfora. Não sei se chegou a altura.

Ela e eu tínhamos combinado comprar umas prendas aos filhos, era Natal, e eu recebera um bónus do jornal onde trabalhava. Dava para muito pouco, o bónus, mas sempre dava para alguma coisa. Por outro lado, o nosso filho do meio decidira trabalhar, na quadra de Natal, numa empresa de mudanças, a fim de amealhar trinta contos, o preço de umas botas de bico longo, suas preferidas que eu detestava por as considerar grosseiras. Ele tinha 17 anos e contrariávamos essa ideia tida por nós como disparatada. Por fim, ganhara a sua perseverança, e lá andara, durante um período, a carregar móveis. A mãe, preocupada e inquieta; eu, um pouco orgulhoso.

Chupávamos a cassata, calculados no que fazíamos e exactos no prazer modesto, na felicidade pequena que nos abrangia. Eis senão quando o nosso filho do meio se ergueu, sorriso de ponta a ponta da boca, braços abertos na exuberância afortunada que até hoje se lhe mantém. "Ah!, ganda Gabriel!", exclamou, para outro rapaz que se lhe aproximava, também exuberante e também alegre. "É um amigo meu das mudanças." Abraçaram-se, no júbilo de um reencontro inesperado. O Gabriel meteu a mão no bolso. Procurava o que não descobria ou não tinha. Por fim, extraiu algo pequeno e, pelo seu olhar, fútil. Estendeu um rebuçado.

"Bom Natal!", disse
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«DN» de 22 Dez 10

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A encruzilhada

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Por Baptista-Bastos

A AD, nas suas variantes e máscaras, foi sempre um equívoco. Por inconsistência ideológica, pela insatisfação dos seus próceres, cuja ânsia de poder sobrelevava as urgências nacionais, e pela obstinação absurda de que não encontrariam resistência. É um empreendimento que pretendia assegurar a continuidade -não se sabe bem de quê. Porque a História deixara de ser o que fora, e a crença na renovação de uma convergência de direita, que os seus entusiastas procuravam inocular ao "projecto", constituía uma espécie de sobressalto emocional. Todas estas ligações não só foram inúteis como se revelaram perigosas.

Ao que parece, os drs. Passos Coelho e Paulo Portas andam muitíssimo afobados em ressuscitar o cadáver esquisito. Não desejam, pelos vistos, seguir a parábola de Santo Agostinho sobre o ser e o ter; sobre o despojamento dos bens materiais em favor de uma empolgante ascensão espiritual. E cito Santo Agostinho porque eles o nomeiam, dizendo condenar a tirania das desigualdades. Mas a direita que representam é mais inclinada a ter - para desprezar o ser. E a referência ao teólogo é da ordem da retórica.

O futuro que se nos apresenta é de molde a causar arrepios. O "socialismo moderno", de José Sócrates d'après Tony Blair, tornou impossível a valorização de cada um (individual ou de grupo), fechado numa indiferença social e numa soberba que recusaram os princípios fundamentais da solidariedade. Ninguém acredita no que diz inflamado e assertivo, este estranho primeiro-ministro. E Passos Coelho nada promete de benéfico: quer privatizar a saúde, a educação, a Segurança Social, os transportes, e transformar o País numa empresa gerida através do manual do "mercado". Os elos que caracterizaram a civilização comunitária foram sistematicamente destruídos. Esta democracia de superfície é uma aliada do capitalismo e dos defensores do controlo civil. Mário Soares disse, há dias, que é preciso bater o pé à direcção da União Europeia. Como?, se foi com as traições "socialistas" e com a abdicação dos antigos valores que a direita mais caceteira tomou conta do Parlamento em Bruxelas. Quem manda e quem nos manda é o Partido Popular Europeu, cuja solidez reside não apenas na sua força como na debilidade asténica da esquerda.

Podemos mudar o sentido das coisas? Podemos. Basta que as nossas escolhas sejam racionais e que não temamos o risco de desafiar. Sophia de Mello Breyner, num dos seus mais belos poemas, escreveu: "Nestes últimos tempos é certo que a Esquerda muita vez / Desfigurou as linhas do seu rosto / Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita / Degradação da vida que a Direita pratica?"

Que a voz da poetisa ecoe como uma advertência e que saibamos merecer a grandeza da sua dimensão.
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«DN» de 15 Dez 10

domingo, 12 de dezembro de 2010

Informar é muito perigoso

Julian Assange entregou-se às autoridades inglesas, e os Estados Unidos manifestaram, de imediato, um contentamento um pouco pacóvio. Assange, australiano, fundador do WikiLeaks, revelou, através de um “site”, montes e montes de documentos, que põem em causa a seriedade e a decência, não só dos meios diplomáticos, mas, sobretudo, dos governos, especialmente dos governos norte-americanos.

Assange fez o que a Imprensa deveria ter feito. Acontece um porém: ele não procede à triagem ou à selecção dos documentos; essa tarefa é-nos atribuída, com a responsabilidade que acarreta. A questão talvez resida aí. Mas, pergunta-se: um jornalista, pelo facto de o ser, está acima do que se entende ser a cidadania do comum dos mortais?

A montanha impressionante de informação, pela quantidade e qualidade, é de molde a fazer estremecer os governantes de actuam na perversidade da sombra e do silêncio, preferindo a omissão, a trapalhice e a indignidade à transparência e à clareza que são atributos da democracia. Mas, na verdade, onde paira a democracia? Que nação do mundo pode arrogar-se à exemplaridade de ser “democrática”?

Através daqueles testemunhos ficámos a saber que George Bush, pai e filho, são criminosos de guerra, culpados de medonhas atrocidades e de cometimentos políticos que não deixam os céus sossegados. Sabia-se, clara ou vagamente, do sucedido no Irão e no Iraque; das negociatas dos sinistros Rumsfeld e Cheney, cujas mãos estão encharcadas de sangue. Mas a natureza minuciosa dos seus crimes estava mergulhada nesse aluvião de mentiras e de omissão com que as Administrações nos EUA articulam e escoram as suas políticas.

A imoralidade faz parte do nosso universo consuetudinário. Já se sabia. Como já se admitia que a política é assim mesmo, sem rosto e sem vergonha. Porém, a riqueza de pormenores contida nas informações de Assange, as características descritas acerca de governantes, ministros, reis, rainhas e primeiros-ministros, aterra as almas mais sensíveis. É uma vistoria de ordem moral que os embaixadores fizeram, ou continuam a fazer, aos dirigentes dos países onde se encontram. Se há informações cuja importância é discutível, outras fazem lembrar as dos tempos de John Edgar Hoover, o todo-poderoso chefe do FBI, que chantageou, ameaçou e obrigou ao exílio ou ao suicídio centenas, senão milhares, de norte-americanos. É essa prática doentia e inquietante que parece não ter sido extirpada do corpo político da sociedade dos Estados Unidos.

O caso da WikiLeaks merecia um estudo cuidado dessas escolas de “comunicação social”, que têm sido viveiros de limitações, de regras apertadas, sem fins úteis à vista. E a detenção do australiano tem passado em silêncio. Acusado de crime de abuso sexual, está na cara que a perseguição, o acosso e a prisão de Assange configura uma vingança e esclarece o poder de certas potências. É claro que a proposta do Kremlin, em favorecer uma proposta para que Julian Assange seja candidato ao Nobel, é tão absurda, tão ridícula e tão infantil como o cerco e a prisão de que ele foi vítima.

O australiano é acusado de quê? De pôr em risco a segurança mundial e de facilitar a vida ao terrorismo? Sejamos sérios. E nem o encarceramento de Assange faz terminar as funções para que o WikiLeaks foi criado. Aliás, o próprio Assange já disse que a informação vai prosseguir, e que nada nem nenhum poder, político ou outro, conseguirá amordaçar a verdade dos factos. Caluniado, insultado, ameaçado de morte e de sevícias, Julian Assange não deixa de protestar as suas convicções morais. E, convém, não esquecer, que vai acontecer aos dirigentes de “The New York Times”, “The Guardian” ou “El Pais”, três dos mais conceituados jornais planetários, que publicaram as informações reveladas pelo australiano?

Informar é perigoso. Para alguns. E depende sempre da informação que se presta.

Falecimento de um homem de bem

Com 92 anos e uma vida rodeada de respeito e de honra, faleceu, há dias, Avellar Soeiro, o primeiro ‘public relations’ português, que conferiu à profissão os galões de dignidade e de prestígio de que a profissão necessitava. Nos anos de 60, estando ele no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, onde desempenhou nobilitantes tarefas, convidou-me e ao Daniel Filipe, a organizar um gabinete de Imprensa, que promovesse as Primeiras Jornadas Luso-Brasileiras de Engenharia Civil. O Daniel e eu estávamos em situação económica dificílima, acrescida, no meu caso, de me ter envolvido em acções políticas directas. Avellar Soeiro conhecia o caso. E contratou-nos. Devo dizer que o nosso trabalho, apoiado e estimulado por Avellar, constituiu um êxito muito grande. No decorrer dos anos via-o, ocasionalmente, nas Portas de Santo Antão, e trocávamos as palavras que a nossa amizade e a cordialidade que nos era própria exigiam e explicavam. Sentia, sempre e sempre, uma grande emoção ao vê-lo e ao conversá-lo.

Monárquico, culto, elegantíssimo de trato, também eu pressentia nele a estima com que me dignificava. Sem nunca fazer referência às minhas convicções e, naturalmente, nem eu às dele, recordávamos a amizade nascida em circunstâncias tão estranhas quanto adversas. Recordo, com emoção e orgulho, o homem de bem, o português exemplarmente raro e o querido amigo que perdi.
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«J. Negócios» de 10 Dez 10

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A herança

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Por Baptista-Bastos

A PASSAGEM do 30.º aniversário da morte de Francisco Sá Carneiro determinou uma volumosa série de artigos, livros, documentários, depoimentos, notas, observações. A hagiografia em detrimento do conhecimento do homem e da sua circunstância. E a insistência no adensar do mistério de Camarate, que uns dizem ser acidente, e, outros, atentado. Sou favorável à reabertura de todos os inquéritos e investigações. O carácter dubitativo em que a questão assenta impede qualquer tropo de verdade que sossegue os espíritos mais sobressaltados.

Sá Carneiro morreu novo e esse facto inspirou a compaixão e alimentou o mito. Seria bom que soubéssemos o que está por detrás desses sentimentos, e qual a natureza dessas devoções. Os "viúvos" e as "viúvas" das celebridades não conseguem dissimular a ânsia de protagonismo, à sombra dos venerandos finados. Chegou-se ao ponto de se fazer vaticínios temerários, com a condicional a servir de pretexto. "Se" Sá Carneiro fosse vivo, como seria o País, hoje? O absurdo como molde da realidade e manifesto subterfúgio para a manipulação.

A verdade é que Sá Carneiro não era consensual, tanto no País como no partido que fundara. E não teve tempo nem, decorrentemente, oportunidade de provar uma estirpe de estadista ou uma compleição de político. Arrebatado, autoritário, impositivo, impulsivo e, diz quem o conheceu, um ser despótico que não ocultava a irritação quando contrariado. Possuía uma ideia de Portugal e um projecto inovador e socialmente equilibrado e justo para o País? Os seus textos não são concludentes. A sua conduta ideológica, emaranhada. Tanto social-democrata como demoliberal. Dependia dos humores. Dispunha de um pessoal conceito de liberdade e uma teimosia formal, calculada e dispersa, que desconcertava os seus próximos. Essa ciclotimia provinha, sem dúvida, da rígida educação católica, um espartilho sufocante de que nunca, em definitivo, se libertou. Mesmo quando a bela, doce, inteligente e culta Snu lhe iluminou a vida e lhe despertou a ideia de que a felicidade pode não ser ilusão e, por vezes, aparece em qualquer idade e vicissitude.

Resta-nos admitir que as coisas possuem, quase sempre, uma relação clara ou subtil, e que a História é uma deusa cega. O legado de Francisco Sá Carneiro está centralizado no "eu", e na invasão da esfera pública pela esfera privada. A lógica desse procedimento leva à desvalorização ou à mediocretização do mando. O resultado está à vista: Cavaco, Santana, Durão são produtos do mesmo molde, crias da mesma matriz. Definem-se pela ausência do sujeito de razão, e pela expressão de um equilíbrio muito frágil entre a sua identidade íntima e as representações da realidade.

Que fundada dimensão possui esta herança?
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«DN» de 8 Dez 10

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A generosidade e o rancor

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Por Baptista-Bastos

E, DE REPENTE, abriu-se o caminho de uma vida generosa. O português com extremas dificuldades veio socorrer o português com fome. A grande força espiritual que se move nas horas de desespero, e parecia ameaçada de inanidade, irrompeu no último fim-de-semana. Uma ruptura surda com a indiferença, uma explosão de solidariedade, a contrariar os sinais do tempo e a cupidez que nos tem sido inculcada. As toneladas de comida entregues ao Banco Alimentar podem não constituir a fulguração de uma felicidade perpétua, mas representam sentimentos que rasgam os silêncios de uma sociedade cercada.

A ideologia dominante, que estimula o individualismo, a insensibilidade social e a neutralidade cívica, não sai derrotada desta acção, nem esta experiência de generosidade resolve o drama português. Se a boa vontade não é esclarecida, e os limites do amparo não forem definidos pela política, o balanço da iniciativa apenas momentaneamente é positivo.

O sistema de ganância, de dissolução de valores, destruiu os laços relacionais formativos dos povos e das instituições. É necessário não só renunciar mas, sobretudo, combater esta doutrina que não concilia o respeito mútuo com a dimensão e as exigências civilizacionais. As nossas heranças só serão desiguais quando desinvestimos no carácter humanista da condição a que pertencemos. As decepções e as insatisfações permanentes talvez justifiquem algumas das nossas debilidades morais, como a indiferença ante o sofrimento dos outros. Mas não podem nunca caucionar a duplicidade dos nossos comportamentos nem a capitulação das nossas batalhas.
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NO MOMENTO - O Miguel Sousa Tavares fez publicar, na gazeta semanal onde costuma deixar as escorrências a que chama artigos, um texto sobre a greve, cujo teor me abstenho de qualificar. A meio, insere um comentário, pretendidamente espirituoso, à minha crónica da última quarta-feira. Não lhe acerta uma. Deseja, apenas, fazer chicana. E demonstra uma impiedosa crueldade para quem gosta de prosa escorreita e asseada: não consegue escrever com tino, brio e gramática. Aquilo é um emaranhado de disparates, de espinoteantes tolejos, e apenas traduz a conjunção do que de mais retrógrado existe na sociedade. Ele é o xamã dessa tendência. Como só o leio quando se me refere, obriga-me, nessas funestas ocasiões, ao penoso exercício de tentar perceber o que quer dizer. Saí da árdua leitura em estado de exaustão. Sobre manifestar uma atroz inimizade com a língua portuguesa, o pobre homem é desprovido do mais escasso pingo de humor. E não é difícil descortinar, no seu carácter amolgado, sinais de ressentimento, de rancor e de despeito. É só. Mas acaso seja necessário, voltarei a tão encantador assunto...
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«DN» de 1 Dez 10

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Mudar a vida, transformar o mundo

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Por Baptista-Bastos

PODEM NÃO ESTAR de acordo, e ainda bem!; podem, por vezes, ser mal-educados e até grosseiros, quando ocultam a cobardia no anonimato - mesmo assim, desde que inteligentes, vale a pena lê-los. Ao longo de uma vida de combates e causas tenho sido objecto de comentários azedos e indecorosos. Não me afectam. Já o disse e escrevi em amiudadas ocasiões. Evidentemente, as injúrias ficam com quem as pratica e, acaso esses correspondentes fossem decentes e dignos, escrever-me-iam directamente. O meu correio electrónico está aposto no final das crónicas que subscrevo. E tenho por costume responder a toda a gente.

Mas há políticos, comentadores, analistas, jornalistas que são objecto de frases escabrosas, comportando insultos pessoais. Há quem não aguente esta onda de canalhice. Ainda há tempos, uma jornalista conhecida solicitou, à direcção do diário onde trabalha, a supressão dos "comentários" que leitores desbocados faziam electronicamente. Eram pequenos textos absolutamente repugnantes. Os artigos dessa jornalista atingiam os objectivos a que se propusera: zurzir nos lombos de reaccionários, de biltres e de safados. Estes reagiam com a cobardia de quem não dá a cara.

O escrevinhador anónimo não fornece, somente, a dimensão do infame. Trata-se de um espírito doente, da ordem da psiquiatria, a que os psiquiatras atribuem uma catalogação específica. O correio electrónico quase se transformou num confessionário de medrosos (e de merdosos), habitualmente ressentidos, de Direita, antigos legionários e filhos e netos de pequenos fascistas de trazer por casa.

Há artigos e ensaios que explicam estas situações. A circunstância de não haver regulação permite que indivíduos caluniem todos aqueles que entendam. Geralmente, pessoas de quem não gostam, por este ou aquele motivo, por esta ou por aquela razão. Frequentemente, essas aleivosias seguem a dignidade do visado, pegam-se-lhe como lapas e prejudicam, profundamente, a pessoa e as famílias.

Tenho para mim que a gravidade da questão reside, essencialmente, aí. E como sou absolutamente contra qualquer espécie de censura, prefiro o carácter fraudulento e desprezível do canalha anónimo do que a redução do que ele diz a uma mordaça.

A existência, e a prática, do leitor inteligente permitem que a discussão atinja níveis elevados. No caso vertente, há correspondentes (não me refiro a blogues, bem entendido) cujo grau cívico, intelectual e cultural é tão baixo que repugna. Não é de estranhar. O nível de leitura dos portugueses é baixíssimo; a escolaridade obrigatória não é nada obrigatória; os seus interesses limitam-se ao conhecimento dos nomes dos futebolistas, aos clubes a que pertencem ou a que vão pertencer; e a ter comportamentos selváticos, antes, durante e depois de certos desafios.

Digamos, sem rebuço, que o português comum ignora o que se passa em Portugal nos domínios da política, da arte, da literatura, da ciência. O programa da RTP-1, "Quem quer ser milionário" é elucidativo. Às perguntas mais rudimentares sobre História, Geografia, os concorrentes respondem com autênticas bojardas. E muitos deles possuem cursos superiores!

Na quarta-feira, p.p., o "Público" noticiava que jovens, dos mais qualificados que até hoje existiram no nosso País, estão em debandada para o estrangeiro. Não são nenhum daqueles que aparecem no tal programa, certamente. Mas a imagem de Portugal é-nos também devolvida pela Imprensa que temos. Um Imprensa acrítica, preguiçosa, notoriamente tendenciosa e sempre, ou quase sempre, favorecedora de quem está no poder - ou para lá caminha. O contra-senso é que, entre os mais novos, há excelentes jornalistas… e péssimo jornalismo.

Há dias, o meu velho camarada Germano Silva, grande jornalista e admirável historiador da cidade do Porto, telefonou-me. Discreteámos, levemente, sobre as coisas gerais e sobre o jornalismo em particular. Ele, como eu, não ocultámos a nossa perplexidade ante a regressão que a Imprensa portuguesa tem assinalado, nas duas últimas décadas. Regressão intelectual, moral, ética e estética, estilística, filosófica. Que aconteceu? Uma apressada "licenciatura" em comunicação social e logicamente, uma aberrante entrada nos jornais de pessoas mal preparadas, que são exploradas até ao tutano e, a seguir, atiradas pela porta fora.

O desleixo, a preguiça mental, a mediocridade instalaram-se em todos os sectores da vida nacional. Quando escutamos o prof. Medina Carreira há quem o acuse de apocalíptico e negativista. Porém, ele toca nas questões fundamentais do nosso viver. E há anos que no-lo diz, servindo-se de um idioma luminoso e extremamente pedagógico. Quantos políticos encartados se exprimem com a clareza meridiana de que Medina Carreira é exemplo?, quantos? Acrescente-se que ele é um homem sério, digno e fecundo porque nos ensina sem nada pedir em troca.

A crise moral do País é muito mais grave do que dizem os preopinantes que por aí pululam. Os exemplos, maus, vêm de cima. Como é que os diferentes ramos sociais poderiam ser diferentes? Que fazer? Mudar a vida, transformar o mundo.
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«J. Negócios» de 26 Nov 10

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Isabel de braços cruzados

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Por Baptista-Bastos

A PALAVRA greve comporta em si um prestígio e uma emoção transversais a várias gerações. E contém uma forte componente moral que se não restringe, unicamente, a opções ideológicas ou a orientações partidárias. A greve é contra alguém? É. Contra as iniquidades, as prepotências, a soberba e as injustiças do poder político. A de hoje faz de nós sujeitos representativos do combate a uma crise de valores e a padrões exportados - cidadãos que não querem ser governados assim.

Desde rapaz, na Redacção de O Século; nas tipografias onde paginava jornais; nas conversas com aqueles homens que recusavam a agressividade das classes dirigentes - desde esses tempos da minha educação sentimental, soube de greves lendárias, e da heroicidade incomum de gente comum. E aprendi a desprezar delatores, fura-greves, "amarelos".

Quando nisso me falavam, os velhos jornalistas não deixavam de nomear aqueles que haviam traído os testamentos e abjurado do sentido das coisas decentes. Guardo um montão de histórias e não esqueço as diversas formas de perversão com que muitas vezes alguns de nós foram confrontados.

No Governo de Sá Carneiro, quando este preparava uma lei que punha em causa liberdades recentemente conquistadas, o Sindicato dos Jornalistas organizou uma greve. Pela situação conflitiva em que vivíamos, as circunstâncias que precederam essa greve pertencem ao historial das nossas lutas e das nossas revoltas. Mas a adesão foi impressionante. Nas oficinas gráficas do semanário O Jornal editou-se uma folha protestatária, e os jornalistas desceram à rua apregoando a natureza do seu combate. "A democracia em perigo!", "Mil e oitocentos jornalistas defendem o que nos querem roubar!" O Jornal da Greve era pago pela generosidade dos transeuntes, atraídos por aquela estranha forma de representação. O João Paulo de Oliveira e eu fomos destinados para o Largo do Camões; depois, despacharam-me para o Parlamento, onde o próprio Sá Carneiro me comprou um exemplar e por ele pagou cinco contos.

As horas eram de exultação e de fervor. Contávamos as percentagens, somávamos os números e a quantidade dos aderentes. O Dia furou! O Dia está a trabalhar! Até que veio a informação lacónica e grandiosa: "Isabel Valadares entrou em greve." A única mulher de O Dia cruzara os braços e seguira as instruções do sindicato. A jornalista desdenhara das consequências advenientes do seu comportamento e contrariara as próprias características ideológicas do jornal, em nome de valores mais profundos. É um momento inesquecível, pelo que simboliza de consciência de uma razão intensa.

Lembro-me muitas vezes deste episódio. Em nome dele e em recordação grata da Isabel Valadares, poiso as palavras e entro em greve.
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«24 Nov 10

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Coitado do Sócrates!

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Por Baptista-Bastos

O MINISTRO Luís Amado andou por aí a dizer umas coisas. Certa gazeta semanal publicou as declarações e provocou um alvoroço que a natureza do facto não justifica. Que disse o ministro Amado? Na pureza do seu parecer, a salvação da pátria residia numa "grande coligação". Mais adiantou que, se circunstâncias anómalas assim o determinassem, Portugal sairia do euro. O tal sinédrio político seria, naturalmente, constituído pelo PS e pelo PSD. Desassossegado, o dr. Portas comunicou estar "disponível" para colaborar em tão admirável iniciativa.

Os banqueiros ficaram entusiasmadíssimos. O dr. Salgado, sempre exíguo de palavras, de semblante permanentemente carregado, impecável no penteado e na contenção do gesto, aplaudiu a virtuosa ideia e entendeu que gente daquela índole e estirpe merecia figurar na galeria dos santos.

Em Macau, aonde fora, sobretudo, pedir algum dinheiro emprestado, o eng.º José Sócrates não dissimulou a surpresa causada pelas declarações do ministro Amado. Infere-se, pois, que estas haviam sido proferidas à sua revelia. Longa e funda ruga de preocupação sulcou-lhe a testa. Inesperadamente, abria-se um capítulo de rebeldia na organização coesa do seu Governo.

A humilhação veio a seguir. O dr. Passos, sereno, elegante, sorridente, ajeitando a melena, apareceu e disse que coligações nem pensar, sobretudo com o PS de Sócrates, aprazível como uma catástrofe. Nesta excitação dos episódios e no grito emancipador do ministro Amado pode talvez descortinar-se o mal-estar no Governo, no partido, no grupo parlamentar, no secretariado, na minoria. Avantaja-se, nas sombras da intriga, nos silentes movimentos da conspiração, a ideia de que Sócrates já não é preciso para coisíssima nenhuma. E que, para se salvar alguma coisa, a tese de Lampedusa toma forma e conteúdo.

Se Sócrates não foi prevenido, pelo ministro Amado, das pesadas declarações que iria proferir, então, o caso arroga um relevo inquietante. Configura uma conjura do interior, destinada a isolar, cada vez mais, o primeiro-ministro. Aliás, este sente as teias com que o tentam envolver: tanto no PSD como no PS. A "coligação" não é, somente, uma proposta imaginativa. E se encontra muitas reservas e resistências, em todos os azimutes, há quem perceba que o PSD não obterá maioria absoluta nas eventuais futuras eleições. Os que mandam em Portugal nunca deixaram de agir consoante os seus particulares interesses.

O País está profundamente enfraquecido. Reflecte as ruidosas contradições do nosso tempo, as convulsões sociais, e a crise do sistema que roça os limites do suportável. A classe dirigente sabe muito bem que uma "coligação" não resolve o problema, prolonga-o no tempo, até se tornar numa simples questão privada. Até lá...
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«DN» de 17 Nov 10

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A consciência do tempo

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Por Baptista-Bastos

HÁ SEMANAS que temos vindo a ser submetidos a um processo de intimidação mental e de asfixia social, que largamente ultrapassa os limites do suportável. O fantasma é o FMI, intermitente como todos os fantasmas, a ameaçar-nos de medos maiores do que os medos habituais no viver português. Vem, não vem, está para vir, não virá. Esta dialéctica absurda é alimentada pelas nossas fraquezas perante conclusões aparentemente inexoráveis. Estamos nos antípodas do clima de serenidade, necessário a quem não renunciou da faculdade de se refazer para continuar a lutar por um mundo melhor. Mas a angústia metódica que nos inculcam, com estribilhos assustadores e práticas políticas temíveis, deixa marcas.

No último Prós e Contras, o sistema que nos conduziu a esta miséria foi colocado em questão. A falência de um modelo sem piedade e desprovido de outro objectivo que não seja o da acumulação de riqueza atravessou os depoimentos. Uma filosofia que paralisa e obriga à servidão, oscila entre o terror e a barbárie. Alguém, piedosamente, tentou dizer da necessidade de "humanizar o capitalismo". Pode "humanizar-se" um sistema cujas origens se baseiam, exactamente, no seu contrário? Um pouco por todo o lado, a contestação contra a preeminência do "mercado" sobre a razão dos valores morais atinge aspectos significativos. Os sinais que a época nos fornece são evidentes. E a própria Igreja, por natureza prudente e extremamente discreta, começa, aqui e além, a dar mostras da sua inquieta perplexidade.

Há semanas, a convite do Montepio Geral, desloquei-me ao Porto, a fim de debater, publicamente, com o bispo D. Manuel Clemente o problema da fome e da exclusão social. Há uma forma degradada de vida que a violência do neoliberalismo transformou em "normalidade". O bispo defendeu o espírito de entreajuda, tese também advogada por D. Carlos Azevedo, no Prós e Contras. São paliativos que nada solucionam e apenas evocam um conceito de caridadezinha, amiúde execrável. A Igreja tem de ser compelida, e até arrastada, pelo movimento das ideias, a encorajar o protesto generalizado e a indignação colectiva. Não deve quedar-se, através de murmúrios compassivos, pela solidariedade inócua com o sofrimento. O essencial está em causa. A boa vontade não chega. É outra expressão do quietismo, a forma mais sórdida de cumplicidade, e outro modo de disciplina férrea, com que as classes dominantes impõem as suas leis e regras. Reformar quê? Quando, na realidade, estamos a falar do demoníaco, contido numa ideologia que introduziu, como modelo de sociedade, a resignação e o aviltamento progressivo da condição humana. O campo da nossa batalha não é a procura do eterno: é a consciência do nosso tempo.
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«DN» de 10 Nov 10

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A velha e a sabedoria

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Por Baptista-Bastos

AS TELEVISÕES procuravam saber o que as pessoas pensavam dos apertões que o Orçamento previa e propunha. A resignação ou a indiferença resignada, como queiram, pareceu-me ser a nota dominante. Eis que a câmara fixa a velha. A velha semelhava uma personagem de Raul Brandão: só osso, susto e dor. Transfigurada de ventos, de afrontas, de insultos. A pergunta da jornalista sobressaltou-a. Talvez a entendesse como estranha e excessiva. Olhou a rapariga, ergueu o dorso curvado, recuperada uma antiga dignidade, e respondeu: "O que eu queria é que eles me deixassem em paz."

Eles. A abstracta identidade dos que nos mandam, nos julgam, nos submetem, nos mentem, e reescrevem, permanentemente, o nosso destino. Aquela velha seca e altiva, despertada, por uma pergunta inofensiva, para a responsabilidade de ter opinião, era a representação de uma nobreza e de uma decência que temos vindo, lentamente, a perder.

A velha não aceitava; a velha não admitia que fizessem dela o troço reles e desprezível de um aglomerado amorfo, ao qual tudo se faz e tudo se aplica. "O que eu queria é que me deixassem em paz." Mas, como a não deixavam em paz, ela reagia impelida pela raiva da impotência e pelo protesto que a debilidade não conseguiu aniquilar.

A raiva é surda e silenciosa. Acumula-se com as decepções, com a soma dos infortúnios, com a desatenção e a incúria que nos votam. Naquela expressão ("eles") tão difusa quanto marcada pelo ferrete da ignomínia habitava o desprezo que ninguém resgata. Culpados de tudo, sobretudo de não gostarem de nós, de nos omitirem, de cancelarem aquela velha ensombrecida pela idade, pelo enigma e pelo desalento, "eles" cercam-nos, assassinam a parte mais asseada das nossas vidas, destroem-nos como relação social.

A dramática frase da velha comportava, em si, os indeterminados sinais que favorecem a ruptura de uns com os outros. A legitimidade das normas foi substituída por uma ideologia que estimula o domínio do dinheiro sobre os valores. A democracia, afinal, só existe, privadamente, para uma dúzia de famílias que manda em Portugal e dispõe, como cães-de-fila, de pequenos servos para todo o serviço.

"Eles" não passam de paus mandados, os quais sustentam o dispositivo de poder que mantém a casta, a casa e o sangue. É instrutivo seguir a trajectória de quase todos os antigos dirigentes políticos, depois do "cumprimento" de funções. A especificidade da sociedade democrática foi, simplesmente, absorvida pela vitória do "mercado" com os seus guardiães implacáveis e os pequenos ou grandes ajustes que o sistema exige.

A frase da velha é, também, uma forma de resistência. Resistência à infâmia com que "eles" nos pretendem envolver.
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«DN» de 3 Nov 10

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A quem serve o interesse nacional?

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Por Baptista-Bastos

A EXPRESSÃO "interesse nacional", muito em voga nos últimos tempos, é recuperada do discurso que marcou os anos salazaristas. Acontece que Salazar escrevia bem e assimilava melhor, leitor com mão profusa do Padre Vieira, o que melhora o estilo e ajuda os labirintos da metáfora. Os senhores que se servem, agora, da locução, nada sabem de metáforas, de Vieira, e muito menos das inclusões que tal alusão comporta e envolve. E, involuntariamente, são netos de Salazar. A árvore da língua exige a consciência de a saber afeiçoar às circunstâncias, neste caso políticas. A articulada ignorância que demonstram causa um cansaço interminável a quem é medianamente letrado.

Em nome do "interesse nacional", duas vistosas delegações (do PS e do PSD), procuram, no sigilo de enternecedoras conversas, salvar a pátria da derrocada. Os drs. Teixeira dos Santos e Eduardo Catroga são criaturas estimáveis. Em épocas diferentes já tentaram dar sentido à vida portuguesa, e contribuir para a nossa felicidade, mas, lamentavelmente, tudo piorou depois das suas influências. Sempre em nome do "interesse nacional", têm mantido o statu quo, de que são crias e guardiães. As preocupações de ambos nada têm a ver com a renovação do presente. As reuniões apenas tentam dirimir a questão do poder. O conceito de "interesse nacional", na acepção mais nobre, implica a regulação dos laços sociais, e a capacidade de reformulação do sistema, a fim de se definir o que deve ser realizado. De contrário, é um conceito abstracto, porque dele é expulsa a população, permanentemente desrespeitada nos seus direitos e espoliada das suas prerrogativas fundamentais. O "interesse nacional" corresponde ao interesse de uma minoria, cuja natureza de classe (não receemos a noção) invadiu tanto o campo privado como o público. Não há identificação possível entre o tão declamado "interesse nacional" e aquilo que, directamente, diz respeito a todos nós. Nós pertencemos a outra história. À daqueles que pagam a factura pelos crimes que outros, impunemente, cometeram. Não sei muito bem qual o "interesse nacional" que os representantes dos dois partidos em conclave estão a defender, a preservar, a resguardar. A hegemonia do PS e do PSD é balizada por um conservadorismo absolutamente imoral porque gerador das mais atrozes desigualdades. Os drs. Catroga e Teixeira dos Santos não estão ali para reforçar o vínculo social dos portugueses, para melhorar a nossa vida. Estão ali com sentimentos de pacotilha, combinados na ideologia dominante, e cujos resultados estarão sempre esvaziados de substância, pelo carácter dos objectivos visados: manter o sistema a todo o custo. Sabemos o preço desse custo e a índole desse sistema.
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«DN» de 27 Out 10

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Os culpados escapam sempre

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Por Baptista-Bastos


O ORÇAMENTO, aquilo que dele conhecemos, impõe-nos a obediência total a uma tremenda iniquidade. Falemos de servidão, afinal o que as circunstâncias favorecem: não podemos desobedecer porque o imposto de submissão, engendrado pelo Governo PS, abate-se sobre nós, e responsabiliza-nos sob a fórmula de "o interesse nacional". Expressão cuja lógica é a de comprometer toda a gente menos aqueles que, rigorosamente, são os culpados. O clamor de protestos que se escuta por aqui e por ali conduz-nos ao carácter relacional do poder. E induz-nos a reflectir sobre a sua natureza. No caso português, sobre a monstruosidade das suas aberrações.

A crise do sistema prolonga a argumentação deste Governo que não soube prever as condições históricas, nas quais o capitalismo se movia, e oculta as suas derivas e as suas incompetências com uma retórica "balsâmica". Ouve-se o primeiro-ministro e não se consegue descortinar onde está o "normal" e o "patológico". Mas também não distinguimos os objectivos de Passos Coelho, com o carácter das suas ofensivas sociais e a qualidade da democracia que diz defender. Que raio de democracia é esta, a de Passos, e aquela sob cujo paradigma temos vivido?

A encruzilhada na qual o País convenciona a sua perplexidade é bem pior do que a questão económico-financeira. É a ausência de alternativa. O Governo estrebucha. O PSD não serve. O rotativismo resultou neste imbróglio onde inexiste a racionalidade política, e as excrescências do improviso e as técnicas impositivas (para não dizer: repressivas) se sobrepõem aos próprios conceitos de democracia. Quando vinte por cento da população vivem abaixo do limiar da pobreza, e cerca de 600 mil portugueses estão desempregados; quando a nossa mocidade vai embora e licenciados ganham a vida nas caixas registadoras de supermercados, está estabelecida uma desapropriação social horrorosa. Goste-se ou não, foi-nos imposta uma forma de sociedade totalitária, sob a capa de "democracia de superfície". Nem o PS nem o PSD contrariaram a perda de valores e de padrões, comum à hierarquização do dinheiro que a nova ordem económica incutiu e estimulou.

As nossas sociedades actuais ainda dispõem das virtualidades, intrínsecas à ética republicana e à moral democrática? Em Portugal, muitos que beneficiaram da ruptura do 25 de Abril não são aqueles que pela liberdade se bateram e inúmeros perigos correram. Não há um destes, um sequer, que tenha três e quatro reformas; ou que receba, mensalmente, 3500 contos (moeda antiga) de pensão vitalícia e actualizada, por seis meses de funções numa poderosa instituição bancária pública.

Vê-se a dificuldade da questão. Mas alguma coisa tem de ser feita. Os bárbaros estão às portas de Bizâncio.
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«DN» de 20 Out 10

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Virar tudo do avesso

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Por Baptista-Bastos

O PARADIGMA DE SOCIEDADE sob o qual temos vivido está a esboroar-se. E parece não haver resposta imediata para esta nova desagregação histórica. Em termos políticos somos herdeiros de um enredo corrompido que nos fez viver entre a opressão e o medo, o ódio e a resignação. Quem nos tem dirigido não possui estofo de estadista nem a dignidade de confessar a sua impotência. As últimas décadas são cerzidas com remendos, mistificações, ideologias esgotadas, sem nenhum dos dirigentes ter, alguma vez, apostado, seriamente, na verdade e na liberdade. Sem o menor rebuço nem a mais escassa repulsa, os governantes do PS e do PSD restauraram, nos últimos trinta e tal anos em que se sentaram no poder, o reino da indecisão, da infelicidade e da renúncia.

Os três ex-presidentes que foram ao Prós e Contras (RTP1, dia 11 de Outubro, p.p.) sublinharam essas características, e apenas nos incitaram a resistir e a procurar entender o mundo que nos foi imposto. Nenhum deles falou em resignação. Mas, como não estavam ali para pregar a virtude, nem para evocar excitações antigas, repetiram que a natureza do que nos acontece exige que impeçamos o mundo, o nosso pequeno, assustado e aflito mundo, de se desfazer totalmente. Como? De uma forma ou de outra disseram-nos que a "classe política" é um desfalecimento de causa, e que temos de nos haver e ungir com o que há. O que há, porém, é muito mau. Paciência, é assim.

O paradigma económico, social, político e cultural em que vivemos soçobra a olhos vistos. E ninguém analisa, explica e debate a origem do mal. Os nossos intelectuais mergulharam na nostalgia demencial dos seus insuportáveis universos e das suas angústias insignificantes, desligados das obrigações difíceis que, moralmente, lhes são exigidas. O jornalismo não explica porque não sabe. É penoso ler o que preopinantes impreparados escrevem sobre o que nos rodeia e, afinal, nos limita e escraviza. Os sinais do tempo não se reflectem numa imprensa pejada de comentadores do óbvio, notoriamente inclinada para um só lado da história. As televisões atingem os níveis da desonra. Não são, exclusivamente, "telelixo", constituem, em boa consciência, humilhações que nos infligem.

Soares, Eanes e Sampaio desconhecem como dar a volta ao texto no qual fomos enredados. A padronização do mundo, inculcada pelo capitalismo vitorioso, favorece não só o "pensamento único" (de que tanto se falou, há anos, com presunção e ignorância) como a democracia de superfície e a abdicação de pensar. Evidentemente, há perigos ocultos e ameaças latentes. Eanes falou nas explosões sociais inorgânicas que podem pôr em causa a própria definição de sociedade, tal como a entendemos. Pergunta-se: e essa não será a solução, virar tudo do avesso?
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«DN» de 13 Out 10

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A efeméride grandiosa

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Por Baptista-Bastos

A I REPÚBLICA durou dezasseis anos, cercada por inimigos poderosos. A Igreja, as monarquias circundantes, as conspirações e os revanchistas ajuramentados foram insistentes e infatigáveis nas tentativas de demolição. A História faz exigências isentas de considerações afectivas, e as suas subjectividades não implicam a adesão passiva nem escolhas racionais. É impressionante o rol de problemas enfrentados, em tão curto tempo, pelo novo regime. No entanto, execre-se ou não esses anos tumultuosos, exalte-se ou verbere-se as decisões tomadas, uma evidência ergue-se entre as demais: aquela gente era virtuosa, possuía convicções e, cada uma a seu modo, consoante as origens de classe, tinha projectos para a pátria.

Entre as grandes fotografias da época, que Benoliel fixou para a eternidade, há uma que me comove particularmente. Um batalhão vai para a guerra, os soldados são muito novos, e há algo de grandioso na cena: correndo ao lado do namorado, uma pequena portuguesa despede-se dele com a dor e o susto reflectidos no rosto. Ele toca-lhe levemente no queixo, a ternura a invadir o espaço, impetuosa e sublime. Só quem não quer não vê aqueles gestos subtis e demorados, a atravessar o tempo e o silêncio. A imagem devolvida de uma República jovem, que contrapõe aos limites da idade o exacto poder da sua força.

Foi essa força que aguentou aqueles dezasseis anos extraordinários. Há mais biografia naquela foto de Joshua Benoliel do que a bibliografia até agora publicada, plagiada de uns e de outros autores e consagrada ao simbolismo de estar a favor ou contra. Naquele par de amorosos, a fazer lembrar, também, Marc Chagall, condensa-se a espessura de um certo barroquismo ascético nascido não, somente, da idade jovem mas, sobretudo, da possibilidade de uma crença que ressoa na aparente mudez da imagem.

A ida para a guerra de 1914-18 constituiu, porventura, o abandono da nossa inocência. E foi um acto político de extrema importância. Portugal, parado pela oligarquia, dominado pela superstição romana e pelo hissope, sacudia o corpo e caminhava impelido pela sua própria têmpera. É uma história por contar, fora das abjectas interpretações da Direita, um episódio paradigmático no qual avulta um estadista proeminente, do melhor que o País produziu: Afonso Costa.

O que a República realizou, entre convulsões, intrigas, guerras, guerrilhas e sangue derramado pertence ao nosso património comum. Num sentido global de modernidade, a República possibilitou escolhas afirmativas que têm resistido a tudo: omissões, calúnias, infâmias. Amiúde subscritas por "historiadores" sem vergonha, sem decência e sem moral.

(À memória de Carlos Ferrão, grande jornalista republicano)
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«DN» de 6 Out 10

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Rapaziadas

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Por Baptista-Bastos

AS ÚLTIMAS SEMANAS foram copiosas em demonstrar que Portugal é um país para se levar pouco a sério. Dois rapazolas transformaram-no num terreiro de berlinde, cada um com um abafador que destinará quem venceu. O pior é que ninguém ganha e todos estamos a perder. Um deles possui um sentido circense que legitima todo o faz-de-conta. O outro manifesta uma devoção ingénua pelo poder que, na realidade, não possui. Ambos resultam desse milagre convencional que nos fez reféns de dois partidos desprovidos de grandeza, intelectualmente asténicos e politicamente impostores.

Na verdade, os dois partidos nunca foram grande coisa. Nas paredes das suas sedes estão retratos poéticos daqueles que os dirigiram. Percorremos o olhar por esses rostos líricos e chegamos a conclusões deploráveis. Poucos socialistas e poucos sociais-democratas. Há nomes cuja evocação lembra épocas festivas. Foram eliminados: eram socialistas ou sociais-democratas de intenção e decisão, coisa que não interessava a quem na sombra agia. É uma época ilustrada pela má-fé e frustrada pela traição.

Os dois mancebos que jogam o berlinde correspondem a uma inconsciência dócil, que opera no contexto histórico, e se esclarece nas relações de poder. São semelhantes na leviandade e na carência de conhecimentos. Nada mais do que isso. Não é só serem incredíveis. Sobretudo, são imaturos, ignorantes e tragicamente incapazes. Um deles já deu o que podia dar. E atingiu as funções que assume por completa ausência de antagonista. A dr.ª Manuela era um susto; e os seus antecessores, personagens menores de uma pungente ópera-bufa. Quanto ao outro rapazola, rapidamente se percebeu tratar-se de um moroso equívoco, uma bizarra consequência de época e, sobretudo, um produto incapaz de se conduzir a si próprio.

Estamos perante um imbróglio perturbador. E o dilema é este: como se passa do patológico para o normal? Ignoramo-lo. Desde a aparição mística do dr. Cavaco que aumentou o perigo de uma sociedade amolgada. Aquele senhor alimentava (e alimenta) um distorcido entendimento do que é a democracia. A década em que foi primeiro-ministro saldou-se pela recusa da modernidade e pela imposição de uma rigidez emocional que ainda hoje persiste. Pedra e betão substituíram a alma e a coragem.

As rapaziadas a que temos assistido procedem dessa cultura de ilusionismo que conduziu à relativa despersonalização do português, o qual vira no 25 de Abril uma porta de esperanças. O dr. Cavaco nada tinha ou tem a ver com o apostolado da liberdade. Ele nunca mexeu uma palha com esse objectivo. E até chegou a inventar uma rústica e grotesca história que o ungia como mosqueteiro da democracia. As rapaziadas destes rapazolas provêm da mesma matriz.
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«DN» de 29 Set 10