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terça-feira, 26 de julho de 2011

Na Finlândia há exames e retenções, estúpida!

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Por Guilherme Valente

"A soberania do conhecimento é a única que nos resta"
J. Veiga Simão

1. QUANDO a ignorância, a leviandade e a audiência se combinam, a mistura é explosiva. Um exemplo: «na Finlândia não há exames nem retenções». Da AR ao comentário loiro numa televisão, a asneira tornou-se moda e arrogância.

Na Finlândia há retenções e exames. Não é por não haver a possibilidade de retenções que a escola na Finlândia é boa. É por a escola ser boa que as retenções são ali residuais. E a que se deve essa qualidade?

Em cenário de fundo, o respeito pela educação e o prestígio da escola. Os pais, em geral com instrução elevada, acompanham com exigência o trabalho escolar dos filhos.

Depois, a arquitectura do ensino, a cultura de exigência, a qualidade da formação dos professores, programas e currículos assentes nos saberes que contam (libertos das tretas, que impedem o trabalho e a concentração no essencial. Responsabilidade e responsabilização dos directores, que respondem perante o ministério e as «autarquias». Directores que não são eleitos pelos pares.

Quando, há anos, apontei para a necessidade da figura do director, acusaram-me de defender a escola «de antigamente». Escola de antigamente, alas, com que o Prof. Veiga Simão, com a sua Grande Reforma aliás, já acabara - a seguir - como escreveu, tão lucidamente, Sottomaior Cardia, foi só destruir esse projecto iluminado e corajosíssimo, que teria conduzido ao desenvolvimento do País.

(Hoje há directores nas escolas, embora a legislação que os instituiu limite a sua eficácia… ideologia oblige.)

2. Na Finlândia a educação é descentralizada, cabendo às autarquias uma grande responsabilidade na sua organização, que assenta numa autonomia estruturante das escolas.

Professores qualificados e respeitados. Numa escola hierarquizada, sob a orientação de um director, a quem cabe, em ligação com as autoridades locais, a contratação dos docentes. Mecanismos de apoio multidisciplinar para os alunos com dificuldades. Combate eficaz à retenção e ao abandono precoce. Ensino responsabilizante desde muito cedo. Uma aposta na qualidade e não tanto na quantidade (9 anos no ensino básico, sem horas excessivas na escola). Todos têm que contribuir para a qualidade do ensino: ministério, professores, alunos e pais. Uma rede de escolas «primárias», pequenas, muito ampla.

3. Com o CNE o ME estabelece a arquitectura nacional da educação, designadamente, os currículos nacionais, cabendo a cada escola complementá-los.

Escolaridade obrigatória até ao 9.º Depois, duas vias: científica (54% dos alunos), três anos, que termina com um exame nacional, base para a continuidade dos estudos; um ramo profissionalizante, de três anos, escolhido pela generalidade dos que não optaram pela via científica. Os que obtiverem uma qualificação profissionalizante adicional podem prosseguir estudos em escolas politécnicas ou em outras instituições de ensino superior. A escola, através da orientação permanente aos alunos e em contacto com os pais, encaminha-os para a via mais indicada para cada um.

(Durante anos, insistimos no facto da percentagem aberrante de abandono escolar em Portugal ser devida à inexistência de uma via profissionalizante. Uma escola igualitária - facilitista, ignorante, iletrada e boçal - gera, como entre nós se verifica, maior desigualdade social. O primeiro-ministro José Sócrates, parecendo perceber o problema, terá levado o ME a anunciar a possibilidade da criação de cursos técnicos profissionais nas escolas… nas escolas que tomassem a iniciativa de os propor. De facto o ME não disponibilizou os meios materiais e humanos que seriam necessários, devendo-se os cursos criados graças apenas à «carolice» de alguns directores e professores. Mas mesmo assim o abandono escolar diminuiu significativamente nas escolas que passaram a oferecer esses cursos. Na ocasião pensei tratar-se de sabotagem do que julguei ser um lúcido propósito do primeiro-ministro (até cheguei a manifestar-lhe apoio!), mas recentemente explicaram-me que a criação desses cursos não terá passado de um expediente para obter fundos da União.)

3. Na educação finlandesa não existe uma avaliação nacional de professores. A avaliação é feita nas escolas, presentes as características de cada uma, através dos resultados alcançados e do acompanhamento do trabalho dos docentes, que passa pelo director e pelo organismo de educação constituído no âmbito da «autarquia». Nada que lembre o modelo de avaliação imbecil, injusto, impraticável e desmotivador inesperadamente ainda em vigor entre nós.

4. Para transitarem, os alunos têm de obter aprovação em todas as disciplinas. Quando entram na escola percebem logo, portanto, ao que vão... A avaliação, realizada por cada escola, resulta de exames formais (no fim dos ciclos e com notas numéricas) e avaliação permanente, com provas regularmente realizadas.

5. Se não é possível, entre nós, reproduzir aquele cenário social de fundo, é no entanto, praticável e imperativo adoptar e adaptar a arquitectura do ensino, a cultura de exigência e responsabilização, que determinam a qualidade da educação na Finlândia, e… reproduzem, promovem, os valores que distinguem a sociedade finlandesa. Sem essa mudança de cultura e de ambiente nas nossas escolas – ensino centrado nos saberes que contam , valorização do papel do professor - servirá de muito pouco aumentar o número de aulas de Matemática e Português - apenas mais aulas… iguais, mais tempo de caos e frustração dos docentes.

Exemplo duma diferença exigida pelo estado concreto do nosso ensino: um regime correctivo intensivo de exames, instrumento de regulação incontornável, de responsabilização e incentivo de toda a vida escolar, que gerará, finalmente, os bons resultados.

É tudo isto que, com o entusiasmo dos professores e a convergência patriótica das organizações sindicais e das associações de pais, gerindo bem e economizando milhões, este Ministro e este Governo novos, legislando como e quanto for necessário, seguramente querem e têm que realizar. Nunca um Ministro teve, como Nuno Crato, uma tão larga confiança dos professores, um tão largo apoio político e social para o fazer. Já. Mesmo que seja necessário assumir um ano escolar com atrasos e perturbação. Porque não poderá ser pacífico o extirpar da serpente…

«Público» de 24 Jul 11

domingo, 12 de setembro de 2010

Justa homenagem

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Por Guilherme Valente

JOSÉ SÓCRATES, no início do mandato anterior, preconizou e foi apregoando algumas medidas acertadas na área da educação. Medidas que há muito tempo, aliás, vínhamos defendendo. Algumas dessas medidas foram sacrilégio para os «especialistas», os ideólogos, a nomenclatura que manda no Ministério. Percebeu-se logo, portanto, que tais medidas iriam ser sabotadas. Foi o que aconteceu.

Que medidas foram essas? José Sócrates enumerou-as na homenagem recente à Doutora Maria de Lourdes Rodrigues: directores nas escolas; cursos profissionais; avaliação dos professores; educação ao longo da vida. E mesmo medidas mais específicas, como, por exemplo, o Plano de Acção para a Matemática.

Vejamos as medidas e a respectiva sabotagem:

1. Os directores nas escolas. Uma medida essencial. Mas foi sabotada, com a conivência ou a permissão da ex-ministra: quem decide na escolha a do director? Que autoridade lhe é confiada e que autonomia tem para a sua acção? Mesmo assim, os efeitos benéficos dessa medida logo começaram a manifestar-se, facto que, evidentemente, ameaça o poder controlador do "eduquês" e, por isso, sabe-se agora, com a criação criminosa dos mega-agrupamentos, preparam-se para desfazer tudo, substituindo a figura do director por comissões de instalação. Designadas por quem?

2. A formação profissional. Desde logo não fazendo o que devia ter sido feito, como estou farto de escrever: a oferta criteriosa, a tempo de prevenir o abandono, de uma via técnico-profissional, de exigência e dignidade iguais à via de acesso ao ensino superior, via que, na Finlândia é frequentada, aliás, pela maioria dos estudantes. O que passou a existir, predominantemente pelas antigas escolas industriais e comerciais, foi em larga medida criado e oferecido por iniciativa de directores e professores, graças ao seu espírito de iniciativa e dedicação, mas sem o empenhamento autêntico, muito pelo contrário, do ministério. Cursos improvisados aos quais não foram dadas condições mínimas de funcionamento, meios humanos e materiais indispensáveis, sem reconhecimento e dignificação pelo ministério. Há professores a ensinarem disciplinas de marcenaria sem saberem pregar um prego. Afinal, como afirmou um dia a Senhora que a Ministra agora homenageada colocou na presidência do Conselho Nacional de Educação, «todos os meninos podem ser doutores» (alguns até nem querem).

3. Quanto à avaliação dos professores, não foi necessário encomendar um modelo com a recomendação de que fosse tonto, absurdo e impraticável, para não funcionar. Bastou pedir aos especialistas que elaborassem um modelo.

4. Quanto à iniciativa das Novas Oportunidades, que na mente do Primeiro-Ministro poderá ter surgido como o embrião de uma imperativa formação ao longo da vida, nem vale a pena referir no que, na sua esmagadora generalidade, o Ministério da «Educação», a tornou. É o que se sabe.

5. O Plano de Acção para a Matemática, promovido alegadamente para resolver os problemas que os responsáveis pelos programas, pelas orientações curriculares e pela formação de professores tinham causado, foi confiado pela ex-ministra a quem? Precisamente aos mesmos, aos mesmíssimos responsáveis pela tragédia no ensino da Matemática.

A Senhora Doutora Maria de Lourdes Rodrigues mereceu bem a homenagem que lhe fizeram...

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A MISTELA DO 'EDUQUÊS'

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Por Guilherme Valente

«Os que negam a razão não podem ser conquistados por ela.» A. R.
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1. Só há um grande problema em Portugal, todos os outros derivam dele, serão resolvidos por acréscimo: a educação. O nosso défice público maior. No entanto, a solução desse problema fundador foi deixada a um grupo de pessoas de duvidosa formação, chocante insensatez, gritante incapacidade de gestão, desígnio ideológico inconfessável. Durante mais de trinta anos. Sobrevivendo a todas as mudanças de governo. Com uma continuidade como nunca se verificou noutra área governativa. Sem terem sido eleitas. Sem o seu programa ter sido votado pelos Portugueses. Impedindo a construção da escola do conhecimento e da exigência, que redistribuiria a cultura e qualificaria os Portugueses, esse grupo dos «especialistas» controla todo o sistema educativo, das estruturas de poder do Ministério à formação de professores. Recrutaram em todos os partidos, colocaram fiéis ou têm instrumentos nas Presidências da República. Na expectativa de eleições, preparam já a troca de cadeiras nos lugares mais visíveis no Ministério da Educação. À espera do próximo convertido ou «idiota útil» mais provável para ministro. Ninguém pode ambicionar uma carreira na educação sem aceitar o seu jugo. Uma «União Nacional».
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2. Confrontados com a tragédia dos resultados, que não os deixámos continuar a esconder, justificam o insucesso atribuindo-o a «cedências», «desvios» e «recuos» na realização do seu projecto. Devem ser assim interpretadas divergências recentes. E chegou a «justificação» mais sinistra: «Precisamos de mais tempo». Perante a sucessiva descida das notas de matemática, os responsáveis pelo Plano de Acção para a Matemática (os mesmos que causaram o descalabro) disseram… precisarem de mais anos (Expresso de 3/6/10, p. 18). Não chegaram trinta anos de experiência, um longo cortejo de vítimas? Pseudo-argumento, inverificável, fanático, que se conhece da História. No registo da política, como no da ciência, quando não se aceita a prova da realidade - neste caso o fracasso verificadíssimo da anti-escola imposta ao País - entra-se no reino das «ciências» ocultas. Também nesse sentido o eduquês é uma seita. Uma história conhecida ilustra a natureza irracional da falácia: Envenenado pela mistela do curandeiro, o doente acaba por ir ao médico. Levado o charlatão a tribunal, o que diz em sua defesa? «Se tivesse continuado a beber o meu remédio… acabaria por melhorar.» Até quando? Até morrer mesmo, pois não era remédio, mas veneno.
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3. Estúpida relativamente à escola de que o País precisa, mas perfeita relativamente ao projecto de sociedade que querem impor, a instituição do fim das retenções, agora tão atalhoadamente defendida (Expresso de 31/7/2010 e entrevista ao telejornal da SIC), é, afinal, a dose letal da mistela que faltava. Percebe-se o seu efeito num país como Portugal. Solução final há muito desejada pela seita, que, finalmente, um ministro e um governo lhes oferecem. Só num ensino, útil e digno para todos, que seja exigente desde a primeira aula, e, assim, gerador da auto-exigência de professores, alunos e pais, as retenções e o abandono seriam residuais. Uma escola em tudo o inverso da que temos. Mas mesmo nesse caso uma impossibilidade das retenções não devia ser formalizada.
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4. Do mesmo modo, a política dos grandes agrupamentos, vista como de poupança financeira, é, sobretudo, outra concretização do projecto ideológico imposto ao País: criam espaços anómicos, onde, sem regras, na dissolução do conhecimento que conta e dos valores que humanizam, na «libertação» dos ressentimentos, supostamente se diluiriam todas as diferenças, sociais, culturais, pessoais. Ao contrário, por exemplo, do que acontece na Finlândia, que tão mentirosamente referem.
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5. A minoria que foge ou sobrevive não chegará para resistir à aniquilação geral da inteligência e da vontade que tem sido perpetrada, para resistir à magnitude do que foi, agora, alegremente, prometido.
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«Expresso» de 21 Ago 10

domingo, 4 de julho de 2010

Dois logros do "eduquês"

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Por Guilherme Valente

1. Ensina-se, supostamente, a «aprender a aprender». Mas não se ensinam os conhecimentos que os alunos precisam de aprender. Ensina-se, supostamente, a «aprender a aprender» matemática. Mas o que é preciso mesmo é aprender matemática.

O «aprender a aprender» tornou-se moda por soar bem e prometer o «milagre» de se poder aprender tudo sem ter de se aprender nada.

O eduquês substitui o que importa ensinar pelas técnicas e métodos que supostamente permitiriam aprender tudo sem esforço.

Dois exemplos reveladores do logro:

Se eu pretender recrutar um tradutor de inglês, não indagarei se os candidatos sabem «aprender a aprender», mas se sabem, pelo menos, inglês e português.

Se a Carris precisar de um motorista, não perguntará aos candidatos se sabem «aprender a aprender», mas se têm carta de condução e experiência de conduzir.

2. As «competências» são outro logro, que engana o incauto porque a expressão tem um significado próprio que o senso comum instantaneamente apreende e valoriza. Mas o que é um indivíduo competente? Alguém que adquiriu e domina conhecimentos e técnicas e é capaz de os aplicar no exercício eficaz de uma função. Haverá alguém competente, seja no que for, sem conhecimentos?

O que será uma competência em Filosofia Medieval? Só pode ser o conhecimento do pensamento dos filósofos da época e do contexto em que foi elaborado. O que exige tê-los estudado, dominar o latim, grego, história, etc. E ser competente em física quântica? E a cozinhar uma boa caldeirada?

Também o candidato a um curso universitário de Física deverá ter adquirido os conhecimentos que permitem responder à exigência de aprofundamento e especialização que pressupõe. Não chegará que saiba «aprender a aprender», pede-se-lhe que já tenha aprendido muito.

3. Importante não é o modo como se ensina e aprende, mas o que efectivamente se ensina, aprende e exercita. E é só o aprender muito que potencia a capacidade para aprender mais e diferente.

O método é um «caminho». As técnicas e meios de ensino devem ser adoptados e mesmo construídos em função das matérias e dos alunos. A pedagogia é uma disciplina respeitável, mas auxiliar, não é o objectivo do ensino.

4. Ora, como a pedagogia parece ser o único conhecimento que os «especialistas» da educação supostamente dominam, valorizam-no até ao ridículo, garantindo, assim, o poder e o emprego.

É esse o programa dominante na maioria dos cursos de formação de professores, que lançam no ensino vagas de docentes, grande parte sem poderem ensinar nada, por saberem muito pouco do que deveriam ensinar.

Mas como o ME é controlado pelos mesmos que os «formaram», fica tudo em casa, isto é, a escola e a «avaliação» não podem deixar de ser o que, com raras excepções, são.

Se o leitor quiser saber até que ponto o rei vai nu, peça a um desses novos docentes, ou a um dos pobres bons professores a quem é imposta a cartilha, um exemplo de uma «competência». Aposto que será: a «leitura de um horário de comboio»…

Refeito do choque, pergunte, a seguir, como se avalia a competência em História, Física, Electricidade…

5. O «aprender a aprender» e as «competências» são um pico da pedagogice, logros que servem ao eduquês e aos «especialistas» para que não se ensine, não se aprenda, nada possa ser avaliado.

São, afinal, manifestação da desvalorização relativista do conhecimento e do professor, da aversão rousseauniana aos «saberes letrados», supostamente origem da desigualdade e da desarmonia social. Tornar todos iguais, é o projecto inconfessável do eduquês. Mesmo que para isso seja preciso condenar todos à ignorância, à boçalidade e à miséria.

Todos?
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«Expresso» de 3 Jul 10

segunda-feira, 14 de junho de 2010

YES, MINISTER! (?)

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Por Guilherme Valente

O EXEMPLO da Finlândia é muito referido, mas poucas vezes com rigor.

Também a Senhora Ministra referiu a Finlândia na Assembleia da República. Na Finlândia não há retenções, afirmou, parecendo querer dizer não existir essa possibilidade naquele país. E nem um deputado lhe pediu para esclarecer o que terá pretendido afirmar. Nos debates parlamentares nunca foi feita, aliás, a pergunta iluminante de toda questão da educação: em que tipo de sociedade quer o «eduquês» obrigar os Portugueses a viverem?

Na Finlândia existe a possibilidade de retenção. Mas o objectivo e a qualidade do ensino; a preparação dos professores e o reconhecimento da sua função inestimável; as regras, a direcção e o ambiente nas escolas; a responsabilidade exigida aos pais; a exigência desde o primeiro dia de aulas, reduzem as retenções a uma percentagem residual.

Na Finlândia a escola é a sério. Tudo está organizado para os professores ensinarem, os alunos aprenderem, para ninguém ficar para trás.

Em Portugal, pelo contrário, o facilitismo é cultivado desde o primeiro dia de aulas. E logo interiorizado por todos: alunos, pais e professores. (Para o bem e para o mal, é uma característica dos seres humanos: adaptarem-se depressa.) O resultado não pode ser outro.

A escola finlandesa é o inverso da escola em Portugal. E a medida agora anunciada – possibilidade oferecida aos alunos de 15 anos retidos no oitavo ano de poderem «saltar» para o décimo (e porque não aos de 14 anos?) – é um exemplo expressivo dessa diferença.

Medida injusta, por não ser oferecida a todos de qualquer ano (e os melhores conseguiriam avançar); inútil se os exames forem sérios; irreflectida por abalar sem mais a própria arquitectura do tempo de escolaridade.

Pareceu-me, aliás, haver constrangimento e confusão na defesa feita pela Ministra desse «milagre». Por isso pergunto: quem manda no ME?

Será seriamente imaginável que alunos reprovados (apesar do facilitismo todo) no 8º. ano, possam aprender num ano a matéria do 8º. e do 9º?. E se passarem no «exame sério» do 9.º e reprovarem no 8.º? E os pobres dos professores que os apanharem no décimo?

"Exames” em vez de exames, é o que virá. Prepara-se, portanto, mais um grande êxito… estatístico. É para isso esta medida. E não se faz o que devia ser feito: a oferta criteriosa, a tempo de prevenir o abandono, de uma via técnico-profissional, de exigência e dignidade iguais à via de acesso ao ensino superior, que, na Finlândia é frequentada, aliás, pela maioria dos estudantes.

O que é oferecido em algumas escolas, por iniciativa de directores e professores que vivem quotidianamente essa falta gritante, sem o empenhamento autêntico, muito pelo contrário, do Ministério, não pode responder a essa necessidade imperiosa. Mas mesmo assim - ouçam-se essas escolas – esses exemplos, que a nomenclatura do Ministério teve de aceitar que surgissem e procura sabotar, a funcionarem sem o reconhecimento, os meios humanos e as condições mínimas, provam a razão dos que durante todos estes anos combateram pela oferta de uma via de ensino técnico profissional no sistema educativo: a sério, qualificada, exigente e dignificada.

Impõe-se, pois, a pergunta, para muitos retórica: a Senhora Ministra está com ou contra o eduquês? Quer continuar a nivelar por baixo? Partilha o igualitarismo, anti-cultura, anti-conhecimento, loucura de tornar todos iguais? Ou, pelo contrário, quer uma escola de liberdade que revele e valorize as capacidades, interesses e vocação de todos, até ao limite do possível? Uma escola que reduza as desigualdades, ou esta escola de mentira, de ignorância e de exclusão que as agrava? Anti-escola que tornou Portugal no país mais desigual da União, com excepção da Polónia.

Tem um projecto para fazer sair o ensino público das trevas?
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«Público» de 14 Jun 10

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Resposta com esperança... [Ver NOTA]

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Por Guilherme Valente

COMO ACREDITO na inteligência, não consigo imaginar que alguém conscientemente se queira enganar a si próprio. Proponho, por isso, ao comentador que leia e considere, sem preconceitos, com espírito aberto, este meu texto.

1. O que incomodou no meu texto anterior (*) não foi a história pessoal a que recorri. O que incomodou foi aquilo que a história me ajudou a transmitir com clareza. Vou repetir: o eduquês quer tornar toda a gente igual, mesmo que para isso tenha de reduzir toda a gente à ignorância e à boçalidade.

O que terá doído foi a evidência que referi: a realização desse projecto horroroso e inatingível (por isso delirante) conduziu e conduz inevitavelmente ao nivelamento por baixo, ao facilitismo sempre crescente. Diminui todos os alunos, mas prejudica sobretudo os mais desfavorecidos, as crianças pobres, de famílias pouco instruídas, sem meios ou conhecimentos para procurarem outro ensino, no país ou no estrangeiro. O delírio igualitarista agrava as desigualdades.

Note-se que esse projecto, para poder ser realizado, como foi sendo realizado, não podia (nem pode) ser assumido. Se o fosse, depararia, naturalmente, com a oposição geral do Pais. Pelo contrário, tinha de ser disfarçado, no discurso e com os recuos tácticos convenientes, usando o apoio dos idiotas úteis, dos ingénuos e dos oportunistas, matéria-prima que, como se sabe, num país com o grau e a qualidade de instrução do nosso, não falta.

E foi por isso, e é por isso, por não poderem assumir tal projecto (que não teriam argumentos para justificar, acrescente-se), que nunca responderam à nossa crítica, fazendo passar a ideia de que não somos especialistas, de que não temos credibilidade para falar dos problemas de educação. Na verdade, como se sabe, embora seja muito esquecido e pouco praticado entre nós, o que vale é a qualidade dos argumentos não o estatuto ou a cara de quem os emite. E o que está em causa discutir, aliás, exige apenas inteligência, cultura geral e sensatez. De qualquer modo não trocaria o meu currículo, de formação académica e profissional, por mil currículos dos «especialistas» do Ministério.

(Note-se, de passagem, que para quem impõe o regime das «competências», para quem desvaloriza a cultura letrada, para quem quer acabar com as elites, para quem quis impor a participação de miúdos de dez anos na direcção das escolas, e dos alunos do secundário na elaboração do programa dos cursos e na definição de modelos de avaliação, a contradição é gritante. Na verdade, o que querem, afinal, é uma sociedade igualitária em que sejam eles os únicos… desiguais. Também não é novo na História. )

Por outro lado, o facto de hoje, num país da União Europeia, depois da experiência do PREC, tal projecto ser inimaginável, fez com que o eduquês contasse com a distracção ou a indiferença de quase todos nós.

Mas se não podia ser assumido «oficialmente» pela nomenclatura do Ministério, a verdade é que os teóricos mais puros e duros do eduquês não resistiram a irem revelando nos seus escritos, mais ou menos explicitamente, esse projecto impensável (ver a antologia organizada por Nuno Crato, O Eduquês em Discurso Directo, Gradiva).

E, assim, o projecto pode ser realizado com uma continuidade que nunca qualquer outro programa político teve depois do 25 de Abril, sobrevivendo a todas as mudanças de governo, aos vários ministros da educação, à tragédia gritante, sempre a agravar-se, dos resultados e do abandono escolares, do ambiente insuportável em muitas escolas, à frustração e à desistência de inúmeros professores, à evidência crescente dos seus efeitos devastadores na realidade económica e social do Pais.

2. Repetido o que quis afirmar no meu texto, pergunto ao Senhor Eduquês que o comentou (trato-o assim por não saber o seu nome): é verdadeiro o que afirmo ou é falso? Se é falso explique então, a todos nós, claramente, qual é o projecto do eduquês do Ministério. E diga-nos de que outro modo poderemos interpretar os escritos dos representantes puros e duros do eduquês coligidos no livro de Nuno Crato.

Aliás, como muito pertinentemente foi referido noutro comentário, quem tem de responder a estas questões é a senhora Ministra da Educação. Tem de dizer claramente ao País de que lado está, o que pensa do eduquês e como vai agir relativamente ao seu domínio total do sistema educativo. Dizer muito claramente, qual é, afinal, o seu projecto, que intenções tem.

3. Um mundo de clones é o mundo em que o eduquês gostaria de nos pôr a viver. Com essa nomenclatura iluminada a mandar em nós, claro. Como aconteceu sempre nas tragédias históricas em que a experiência foi tentada.

Mas é, felizmente, um mundo impossível. Felizmente, porque para mim não é um mundo desejável. Não quero ser igual a ninguém. «Não sei por onde vou, não sei para onde vou, mas sei que não vou por aí» são versos de José Régio.

4. Dito isto, vou tentar mostrar (permita-se-me a especulação um pouco naive a que vou recorrer) que o projecto igualitarista é irrealizável. Mas, antes disso, quero lembrar que mesmo quando se apresentou como um projecto generoso acabou sempre, historicamente, quando as circunstâncias o permitiram e não foi travado a tempo, na crueldade mais odiosa. Não podia ser de outro modo, como facilmente se compreende. Um dos exemplos mais recentes é o do Cambodja de Pol Pot: começou na escola e terminou nos campos de extermínio. Não é ficção aquilo de que falo.

Assim:

a) A primeira condição para realizar a igualdade de todos os seres humanos teria de ser a «construção» de pessoas (pessoas?) geneticamente iguais. O que é uma impossibilidade absoluta. Repare-se, no entanto, que foi esse o projecto do nazismo. Eliminar todos os que não pertencessem a uma suposta raça ariana. Começou pelos judeus e, por meio da esterilização, pelos ciganos e deficientes. E começou sem que quase ninguém imaginasse que poderia tomar conta da Alemanha, sem que fossem levadas a sério as suas primeiras manifestações. Lembram-se do filme Cabaret?

b) Mas mesmo que essa impossibilidade fosse realizada, seria necessário muito mais, designadamente: impor a toda a gente a mesma alimentação, obrigar toda a gente a viver no mesmo sítio, a ter os mesmos mesmos vizinhos, os mesmos encontros e desencontros, o mesmo número de irmãos, a mesma longevidade de toda a família (eu perdi o meu pai aos oito anos e sei como isso marcou o meu destino), os mesmos amigos, as mesmas viagens, a mesma namorada, os mesmos livros, os mesmos filmes (é por isso que os regimes totalitários impõem a censura e queimam os livros), o mesmo Benfica, a tropeçar as mesmas vezes, a ter ou a não ter os mesmos acidentes, etc., etc., etc. Percebe-se certamente o que caricaturalmente estou a tentar explicar.

Leonardo da Vinci teve onze irmãos. Sabe-se o nome de algum deles? Se conseguíssemos fabricar um Einstein geneticamente igual ao original, não conseguiríamos com isso outro Einstein como o que existiu. Percebe-se porquê, não preciso de pormenorizar mais.

Uma loucura, um delírio, portanto. Mas sabemos que foi tentado. E sabe-se a dimensão de sofrimento que causaram as experiências de concretização dessa loucura. E lembramo-nos dos nomes dos «demiurgos» que as impuseram.

À esquerda ou a à direita - o totalitarismo não é de esquerda nem de direita – a explicação remete sempre para a avidez de poder, o ressentimento, a insegurança pessoal (enfim, não quero, nem seria a pessoa indicada para avançar as explicações do totalitarismo, do delírio ou da simples insensatez), rapidamente transformados em cegueira fanática, inevitável escalada de imparável violência, imposta, porventura, pela lógica de ocultação e justificação. Como é possível que alguém ainda se iluda e isso se possa repetir, se esboce, ou simplesmente se deseje? (Valerá a pena ler, a propósito, o pequeno, mas muito interessante, livro de ensaios de Umberto Eco, Cinco Escritos Morais, Difel.)

O problema e o desafio não é tornar todos iguais. O problema e o desafio é o das condições da liberdade para todos.

A liberdade não pode existir na imposição de um padrão, numa realidade em que «a obediência a um padrão é a única forma considerada verdadeira de auto-afirmação, onde aquilo a que se dá o nome de liberdade não é a possibilidade de agirmos no interior de um qualquer vazio, por reduzido que seja, reservado à nossa escolha pessoal, sem interferências dos outros». A essência da "liberdade livre" (a expressão feliz é de outro poeta, António Ramos Rosa) está na possibilidade de escolhermos o que queremos ser, porque o desejamos, sem coerção, sem opressão, não absorvidos num grande sistema… inexoravelmente totalitário.

O sonho da harmonia universal não será realizável, mas a redução das desigualdades sociais deve ser um objectivo sempre presente, que só pode ser realizado pela educação, oferecida a todos, apoiando mais os mais desfavorecidos, os que tenham maior dificuldade em progredir, uma educação dirigida ao que é distintivo da nossa humanidade: à inteligência, que só pode gerar solidariedade; realizado pela afirmação e a defesa intransigente dos direitos e dos grandes valores humanos; pelo aprofundamento da democracia.

Claro que o caminho da liberdade e do progresso não é, como bem sabemos, um caminho sem escolhos. É um caminho de combate, foi para muita gente, um caminho de grandes sofrimentos, de avanços e de recuos, mas chegámos aonde chegámos.

Como disse Churchill e vem a propósito lembrar, não se encontrou até hoje melhor solução, apesar das limitações e dos obstáculos que revoltam e é preciso enfrentar e superar. De qualquer modo, o que haverá mais para fazer na vida se não caminhar…

Educação, insisto, centrada no que se dirija ao córtice cerebral, o «lugar» onde a matéria se converte em consciência, o reino da intuição e da análise crítica, onde surgem as ideias e a inspiração, a matemática e a música. O córtice que controla a nossa vida consciente. Que distingue a nossa espécie. Cerne da nossa humanidade. Que produziu a civilização. Um ensino centrado no conhecimento, na exigência intelectual e na responsabilidade humana, nas suas várias dimensões.

Percebe-se, assim, também, porque são um logro, e humana e socialmente um crime, as «novas» teorias pedagógicas.

Sabemos que esta ambição humaníssima tem de ser um combate diário de cidadãos informados e, por isso, com consciência crítica. Construindo a confiança que é condição do progresso pessoal e social. Cidadãos que "aprendam a aprender" (outro slogan mentiroso do eduquês…) da única maneira que há para o conseguir: aprendendo, adquirindo os conhecimentos que contam e lhes permitem pensar criticamente a realidade, conhecimento que transforma, valoriza, a inteligência. Como explicou muito claramente Carl Sagan, parecendo estar a enfrentar o tal slogan absurdo, mas que ouço ser repetido por tanta boa gente que devia compreender o logro: «A informação a que temos acesso é o índice da nossa inteligência». Percebe-se, pois, porque é um crime a desvalorização do conhecimento e dos saberes, a atrofia da memória, estúpida ou perversamente programada, perpretada na escola.

É por isso que para mim só há um grande e fundador problema em Portugal: o do baixíssimo nível de instrução dos Portugueses. Resolvido esse, todos os outros se resolverão por acréscimo. É esta a grande dívida pública, monstruosa, endémica, de Portugal. Que em cada dia se está a agravar (ao contrário do que me dizem ter dito no dia 26, na televisão, surpreendentemente para mim, o Professor Marçal Grilo). É este o grande défice cívico de todos nós.

E pronto, vou para férias. Felicidades para todos, mesmo para todos.
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NOTA: O título completo deste 'post', tal como foi afixado no De Rerum Natura, é: «Resposta com esperança a quem comentou a minha história em vez de enfrentar com argumentos o que eu disse sobre eduquês». Trata-se de uma resposta de G.V. a um leitor que, nesse blogue, discordou do texto anterior, que também foi afixado no Sorumbático e se pode ler [aqui] e [aqui].

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Acabar com os «ricos» em vez de acabar com os «pobres»

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Por Guilherme Valente

O MEU PAI, advogado em Leiria, encarnou o melhor do espírito da República, de que foi militante intrépido. Um liberal social - expressão que encontro para o designar, pelo que dele ainda pude conhecer e, sobretudo, pelo que dele me contaram -, combateu pela democracia e a igualdade social, sofreu, foi preso e deportado. Nunca confundiu as ideias com o carácter das pessoas que as defendiam, respeitou sempre e teve o respeito dos adversários, alguns deles seus grandes amigos. Com a minha Mãe, pessoa humilde, quase sem instrução, mas de fina inteligência e fé, estiveram sempre ao lado dos mais desfavorecidos. Isso mesmo foi gratamente lembrado por Amigos meus num encontro recente na nossa Leiria.

O meu pai matriculou-me na escola de Santo Estêvão, a escola primária frequentada pela gente mais pobre da minha Terra. Nessa escola confirmei o que aprendi com ele, com as suas palavras e o exemplo da sua vida: a inteligência, a generosidade, a lealdade, o sentido de justiça, o espírito de aventura, o sonho, não são qualidades sociais, são qualidades humanas.

Muitos dos meus colegas, queridos Amigos que nunca esquecerei, se não a maioria, iam descalços para a escola.

Um dia, ao fim da tarde, quando brincava com alguns deles na pequena quinta onde nasci, o meu pai chegou e viu que eu me tinha descalçado também, descoberta e prazer do miúdo que eu era. À noite, tranquilamente, disse-me: «O que tens de fazer não é tirar os sapatos, mas fazeres sempre o que estiver ao teu alcance para que toda gente possa andar calçada».

Se o leitor substituir «sapatos» por «conhecimento» compreenderá o que pode ser uma metáfora expressiva do crime que continua a ser cometido no nosso sistema educativo. Em vez de calçar todos os alunos, o eduquês, o Ministério, empenham-se em tirar os sapatos a todos.

E a verdade é que se não conseguem, felizmente, acabar com os «ricos», porque estes têm os meios que têm e podem procurar o ensino privado ou estudar no estrangeiro, conseguem, estão a conseguir tornar todos mais «pobres», descer o nível de todos, mas prejudicando sobretudo os mais pobres, os que entram na escola quase sem nada e a abandonam, quase todos, sem coisa nenhuma. Não é óbvio?

(Para quem, tendo acompanhado o que escrevi, não tenha percebido o que eu e os meus amigos designamos com a expressão eduquês (Marçal Grilo criara-a para designar apenas a linguagem frequentemente incompreensível e iletrada dos «especialistas» da educação), digo, sumariamente, que é uma mistura de ideologia igualitarista – reaccionária aos valores da modernidade, geradora, afinal, como se sabe, de maior desigualdade - e teorias pedagógicas ditas «novas», mas velhíssimas, que frequentemente ocultam ou disfarçam uma grande ignorância e ausência de domínio do conhecimento e dos saberes que contam, que era suposto e é imperativo a escola transmitir e promover.)

Supostamente em nome da não discriminação de quem não tem acesso à cultura em casa, o eduquês desvaloriza, reduz até ao ridículo (ao trágico, na realidade; ver as aberrações das provas, lúcida e corajosamente criticadas por Nuno Crato), suprimem a cultura, desvalorizam os saberes, o conhecimento que conta. Estupidificam para anular as diferenças, em vez de elevar todos, apoiando (como deviam, mas não sabem ou não querem fazer) os que apresentam mais dificuldades. Odeiam e impedem a escola e o ensino que revelaria as diferentes capacidades e vocações de todos, uma escola e um ensino que procurasse levá-las tão longe quanto cada um pudesse e quisesse.

Claro que o eduquês convém a muita gente, porque há sempre quem prefira não fazer nada, não assumir responsabilidade nenhuma, e o facilitismo, que a lógica do eduquês impõe, suscita e convive bem com isso. Foi também por isso que lavrou como um incêndio.

Cúmulo de delírio fanático, de estupidez que «mata». Que «mata» pessoas e está a matar o País.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

'EDUQUÊS', O PRINCÍPIO DO FIM?

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Por Guilherme Valente

DEMORARAM, mas são boas notícias! Afinal o doutor Daniel Sampaio (tem nome e respeito-o) também é um crítico do eduquês (ver Pública, 16/5/10). Apesar de se tratar, como escreve DS, de um grupo de intelectuais, cujo nome não refere, que «'sabem' tudo sobre a escola», da «pressa crítica» que diz terem, do seu «discurso pessimista», do «narcisismo solitário e redutor das suas opiniões», «de se considerarem os únicos que têm razão», DS partilha, afinal, críticas que fazem ao eduquês. E isso é que importante! E vão aparecer mais. Não é novo na História. Pressinto que no final irá restar apenas a doutora Ana Benavente. Um mérito dela, talvez. «Sê tu próprio», exortava-se na Grécia Clássica.

O resto do que DS escreve, sem conseguir iludir quem conheça o pensamento e a acção do tal grupo de intelectuais cujos nomes DS omite, é irrelevante e será, porventura, do foro das afecções que os psicólogos costumam resolver. Os médicos não estão imunes à doença.

Apenas umas breves notas sobre contradições e erros mais gritantes:

DS afirma estar com os professores, mas umas linhas antes atribuíra a responsabilidade da indisciplina às «hesitações dos docentes» (com amigos assim…). Porém, em breve também nisso irá concordar connosco: na forma, no grau, na generalização como se manifesta, a indisciplina é um produto do eduquês. É mesmo um instrumento ao serviço do seu projecto insensato. Uma táctica que também não é nova na História. Esta é, digamos, a «causa formal». A «causa eficiente» é a desvalorização do papel do professor, a sua desautorização, o seu desprestígio aos olhos dos alunos, dos pais e da sociedade, perpretados pelo Ministério e os seus «especialistas» Tudo ligado à desvalorização relativista do conhecimento e da sua transmissão, ao facilitismo, enfim.

Como pode haver disciplina se defendem e impõem que se aprenda a brincar? Se vêem a indisciplina e, por isso, a suscitam, como revelação desejável de traumas e ressentimentos sociais? A verdade é que o sentido do bem e do mal, a inteligência, o sentimento e o juízo de justiça, não são qualidades sociais ou de riqueza, são qualidades humanas, que os pobres também têm. As crianças e os jovens não são insectos, como o eduquês as trata.

Estar ao lado dos professores é promover as condições para o ensino de qualidade que os realiza e dignifica. Pergunte-se aos professores.

E mais: não se percebe se DS reprova ou não a tolice ou o expediente das «competências»; se acha bem a «escola exigente, organizada e geradora de conhecimento e de progresso» (transmissora de conhecimento, precise-se).

Fala ainda na «exigente burocracia ministerial» - está a louvar ou a criticar a burocracia? - que «fez com que predominasse o pessimismo». Não se percebe aonde quer chegar. E - fantástico, mesmo que seja tão tarde - afirma que a «a escola deve garantir um mínimo de conhecimentos que possibilite aos jovens que não pretendem continuar a estudar a aprendizagem de um ofício que lhes permita um percurso de autonomia digna». Ora, os tais intelectuais «narcisistas» não se têm cansado de propor isso desde há muitos anos (DS esteve ausente no estrangeiro?), mas de modo muito claro e coerente: uma via técnica-profissional, com dignidade, qualidade e exigência iguais às da via de acesso ao ensino superior, oferecida aos jovens por iniciativa e com o apoio criterioso das escolas, a tempo de evitar o abandono, as retenções, ou os diplomas mentirosos que não correspondem a qualificação nenhuma. Uma via como existe, por exemplo, na Finlândia, sendo ali frequentada, aliás, pela maioria dos estudantes. A Finlândia, que gostam tanto de citar, mas citam quase sempre erradamente.

DS acusa esses intelectuais «redutores» de não apresentarem soluções. Não têm feito outra coisa se não sugerir soluções, desde logo mostrando o que é o eduquês. DS escreve como se fosse ele a ter proposto os exames sérios e universais e as vias técnico-profissionais, que agora diz defender.

E que soluções avança DS? Repare-se na solução que dá para a indisciplina: «A disciplina só será alcançada com um esforço conjunto dos professores, alunos, e pais». E o Ministério? Pensei que acrescentaria: colocando os alunos e os pais no mesmo plano dos professores… Como se os alunos fossem iguais aos professores, mas não.

Um ensino «que inclui», diz DS? Com 40% de abandono escolar? Ouvi o Senhor Primeiro-Ministro falar em 30% (deve continuar a ser, portanto, mais de 40%), como se isso, tanto quanto percebi, fosse um êxito. E com que qualificações reais sai do sistema a maioria dos que não o abandonam? Não conheço hoje na Europa sistema de ensino que produza mais exclusão do que este do eduquês.

Atente-se na irresponsabilidade mais gritante: a aprendizagem da leitura e da escrita, os níveis de «iliteracia», palavra importada para evitar o termo português que toda a gente perceberia: analfabetismo funcional. Segundo o estudo comparativo mais recente, um estudo oficial, muito eduquês, aliás, na trapalhada nada inocente do seu conteúdo e da sua escrita iletrada, a percentagem de iliteracia (na verdade puro e simples analfabetismo, perguntem aos docentes) é em Portugal de 60%!!!. Num Pais em que o analfabetismo é desde sempre a grande chaga, não seria a alfabetização real do País o grande desafio a empreender e a estar há muito vencido?

Continuo a pensar que o Primeiro-Ministro quis enfrentar o problema, como indica o facto de terem sido anunciadas algumas medidas acertadas, que há muito vínhamos propondo. Mas foram logo neutralizadas na sua concretização. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com a avaliação: inventou-se um modelo absurdo, impraticável. Provavelmente para distrair o País do essencial.

Fez-se muito, diz o doutor DS. Não fez. Fez-se apenas o que a mudança dos tempos impôs.

Não se aproveita nada? Não, não se aproveita nada. Quando não se consegue o mínimo, é preciso varrer tudo. Ou melhor, aproveita-se apenas a resistência de grandes professores, as suas práticas, o seu exemplo.

Grandes professores que resistem e continuam a salvar muitos alunos. Estive com Professores assim, recentemente, numa escola pública da Caparica, com professores e alunos que todos os dias enfrentam e vencem o delírio ou a insensatez do eduquês imposto pelo Ministério.

Tenho procurado explicar a natureza do eduquês, a essência do problema da educação em Portugal. Natureza que, por ser impensável, poucos compreenderam. E o eduquês pôde, assim, ocupar o sistema educativo, dominar as escolas de formação de professores, impor a ideologia e as teorias educativas que têm impedido a construção da escola que é imperativa para o progresso do País. Quando acabará o delírio ou a insensatez? Quem pára a besta?

Pessimista é quem desiste de lutar, quem se cala perante o mal, acabando, assim, por servi-lo. «Pessismistas», «redutores», «narcisistas», hoje os adjectivos são outros, mas o método velhíssimo. Argumentos, venham os argumentos e os factos.

terça-feira, 20 de abril de 2010

A Lei da Escola Segundo o Eduquês

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Por Guilherme Valente

1. Contra o silêncio e a indiferença, é preciso dizer que as duas mortes agora acontecidas são extremos dramáticos, picos na violência que cresce em muitas das escolas públicas. Mas nem estes casos extremos obrigaram o eduquês a mudar o discurso:

No caso do docente de Sintra, a DREL terá colocado psicólogos na turma em causa «com medo de que haja um sentimento de culpa». E não deveria haver? Não é esse o único sentimento aceitável, o mínimo que na circunstância se deve esperar? Não deve esse sentimento ser mesmo suscitado em todos aqueles jovens e nos responsáveis da escola e do ministério? Ou a escola deixou de ser, de repente, a tão badalada «comunidade educativa»?

«Trata-se de jovens que são na sua generalidade bons alunos e que não podem transportar na sua vida uma situação de culpa que os pode vir a condicionar pela negativa», disseram.

Nem mesmo a morte obriga o eduquês a pôr a mão na consciência. Ou será que estas mortes devem ser atribuídas à natureza?

2. Também Daniel Sampaio (DS), escreveu o inimaginável sobre o assunto (Pública do dia 14 de Março).

Apesar de conhecermos as suas ideias, lemos com perplexidade o que seguramente terá indignado a generalidade dos pais que diariamente são obrigados a deixar os filhos nas escolas públicas e dos professores que nelas resistem ao intolerável.

«Querer uma escola controlada pela polícia [quem é que alguma vez defendeu isso?] em que ninguém possa desobedecer ou contestar as regras, é acabar de vez [pasme-se!] com esse território de liberdade segura que caracteriza o nosso sistema educativo (…)». (Sublinhados meus).

Mas vale a pena continuar a citar DS:

«É que há em todas as escolas comportamentos que podem ser considerados violentos, mas que não são bullying [cabe ao especialista, portanto, dizer se é dor a dor que deveras sinto – meu Deus!]: a escola reproduz a sociedade [a escola do eduquês sim, até agrava mesmo o pior da sociedade; a boa escola que queremos, pelo contrário, enfrentaria o que na sociedade não é desejável] e esta não é serena [serena?], por isso são frequentes as piadas, as troças e até um insulto passageiro ou um empurrão, sem que isso seja muito grave.»

Passaria por humor, não fosse experiência de medo de tantos jovens, a preocupação de tantos pais, o receio de tantos professores, relatados todos os dias pela comunicação social. Gostaria de saber em que escola estudaram os filhos de DS.

A mansa palavra de (omitir?) clínica não consegue esconder o gelado alheamento da realidade. E, a seguir, DS prescreve a receita fácil para o caos… que também ele próprio, porventura sem se aperceber, tem ajudado a instalar.

Eu sei que o psicólogo é DS, mas desta vez sou eu a fazer o diagnóstico: continuamos perante uma estranha dificuldade do homem inteligente que é em ver a realidade. Quanto à cura, sinceramente, gostaria de não perder a esperança de boas notícias.

4. Estes textos chocantes, nas circunstâncias quase pornográficos, são, como tantos outros do mesmo teor, exemplos reveladores: o eduquês gosta da indisciplina, e, assim, vai encorajando a sua manifestação.

E assim vão fazendo o seu tricot teórico os mais ou menos discretos companheiros de jornada do eduquês, ajudando, voluntária ou ingenuamente, a impor a escola má que todos os dias atira para a ignorância, a desqualificação, o abandono e a exclusão gerações e gerações de crianças dos estratos sociais mais desfavorecidos, agravando assustadoramente as desigualdades, privando-as do ascensor cultural e social único que um bom ensino público - condição da sociedade civil - seria para elas.

Quem disse ser preciso muito tempo para se verificar o resultado do que se faz na educação?

Acolhidas e cultivadas na escola do eduquês, a ignorância e a violência explodem na sociedade. Mas não era isso o que o eduquês pretendia?
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In Público e De Rerum Natura