domingo, 31 de agosto de 2008

É de mestra! (*)

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QUANDO, POR FIM, chegou a altura de passar a escrito as peripécias que acabaram de ler, peguei no meu computador portátil, procurei um banco numa boa sombra de um jardim sossegado e, inspirado pelo canto dos passarinhos e pelo grasnar dos patos, comecei a trabalhar, entusiasmado.
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Ora, a certa altura, apercebi-me de que uma velhinha, tão pequenina quanto espevitada, se sentava ao meu lado, começando de imediato a espreitar e a bisbilhotar o que eu estava a escrever; e o facto de o monitor ser de matriz activa permitia que ela, mesmo de um ângulo desfavorável, pudesse ver tudo à sua vontade.
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«Que diabo!» – pensei eu – «Como é que ela se pode interessar por um assunto destes, em que quase só se fala de bits e de bytes?!».
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Porém, como não quis ser malcriado, não comentei nem resmunguei e fiz os possíveis por me concentrar no trabalho que tinha de fazer.
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No entanto, apesar dos meus melhores esforços nesse sentido, o certo é que, devido ao nervoso miudinho que se tornara incontrolável, começaram a aparecer mais erros do que o habitual. Felizmente, o corrector ortográfico que eu havia instalado ia corrigindo tudo automaticamente, pelo que a grafia errada apenas se mantinha visível no monitor durante uma curta fracção de segundo.
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Mesmo assim, o diabo da velhinha era terrivelmente perspicaz, pelo que comecei a ver que, a breve trecho, ela produzia surdas interjeições de desagrado quando eu me enganava!
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Era apenas um «Tch...! Tch...!» – seco, mas sumamente irritante!
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A certa altura, não aguentando mais, decidi-me a fechar ostensivamente o computador e a sair dali, não escondendo o meu desagrado pela situação. E foi nessa altura, quando lhe ia deitar um olhar raivoso à laia de despedida, que sucedeu o mais incrível:
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Apesar dos muitos anos decorridos, descobri então que a senhora era, nem mais nem menos do que a D. Judite, a minha antiga professora de escola primária, e que me reconhecera!
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- Seu maroto... – comentou ela, sorrindo – Estás muito crescido!
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Vieram-me as lágrimas aos olhos e fiquei sem palavras!
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- Tenho estado a ver-te a escrever... – prosseguiu – Sabes? Merecias 20!
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«Coitadinha...» – pensei eu – «Mal ela sabe que era o corrector automático do processador de texto a trabalhar!»
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Mas uma surpresa maior veio logo a seguir:
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- Jeremias, grande maroteco... Julgas então que eu não conheço o Word e essa função do auto-correct, hem?!
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Fiquei banzado! E ainda eu não tinha fechado a boca de espanto quando ela concluiu, ao mesmo tempo que me dava dois beijinhos de despedida:
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- Vai-te lá embora, que tu bem merecias 20... reguadas!
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(*) - Capítulo XIV, com que termina o livro «Jeremias dá uma mãozinha», de CMR, Ed. Plátano, 2006.
Para receber uma versão de distribuição restrita, enviar um e-mail para medina.ribeiro@netcabo.pt escrevendo, em 'assunto', o título do livro.

4 comentários:

Rosa Silvestre disse...

É mesmo de mestra! Idoso não deveria ser visto como sinónimo de ignorante ....se tivermos em atenção que os idosos de antigamente eram sinónimos de sábios ....

Carlos Medina Ribeiro disse...

Tem toda a razão!

Assim, e no seguimento deste seu comentário, muito em breve, no Sorumbático, farei um 'passatempo com prémio' em que será oferecido o livro «A Ciber@vó», de Joviana Benedito.

Quer fazer de júri?

Rosa Silvestre disse...

Okey!

Carlos Medina Ribeiro disse...

Rosa Silvestre,

Envie-me então o seu endereço de e-mail para

medina.ribeiro@netcabo.pt

para eu a poder contactar quando chegar a altura de organizar o passatempo.
Talvez seja só na semana que vem, pois neste momento estão a decorrer 2 (com o Travessa do Ferreira), e se calhar amanhã há o "Acontece..." das terças.