segunda-feira, 19 de abril de 2010

Falar com os Mortos

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Por Maria Filomena Mónica

QUANDO ESTA REVISTA ME TELEFONOU a convidar para escrever sobre uma medium, a minha reacção inicial foi negativa. Para minha surpresa, ainda não tinha desligado o aparelho e já dera comigo a dizer que sim. Apesar de avessa a fenómenos sobrenaturais, tinha curiosidade em observar alguém que supostamente fala com os mortos. Devo confessar que nem sempre fui descrente. Durante a adolescência, passei até por fases místicas. Aos 13 anos, após me ter apaixonado pela vidente Jacinta, sofri uma aparição. De cada vez que entrava na capela do colégio, julgava que Nossa Senhora sorria na minha direcção. Irradiando orgulho, anunciei às minhas amigas ser uma vidente, um segredo que estupidamente partilhei com a Madre Superiora, a qual se mostrou tão zangada comigo quanto os jacobinos, em 1917, com os pastorinhos, quando estes apregoaram ter visto, em cima de uma azinheira, «uma senhora mais branca do que o sol». A freira comunicou o facto à minha mãe, a qual, apesar de dirigente da Acção Católica, me preveniu que, se tal voltasse a suceder, ficaria de castigo. Foi quanto bastou para acabar o devaneio transcendental. Com base na obra de B. Russell, Why I am not a Christian, passei de uma fé infantil para um ateísmo consolidado. Tudo o que não fosse susceptível de ser metido num silogismo era, para mim, uma invenção de mentes subdesenvolvidas.

Antes de começar a busca de um médium, fiz o trabalho de casa, uma tarefa necessária, pois, no meu espírito, tudo - conversas com mortos, hipnotismos, fé no paraíso - andava misturado. Na Era Moderna, a ideia de ser possível falar com mortos surge com Franz Mesmer (1734/1815), o qual inquietou a Europa com as suas exibições. Em meados do século XIX, esta «ciência» era tão popular que, no seu exílio de Jersey, Victor Hugo se convenceu não só que, através de «tables tournantes», ouvira uma filha morta, mas o poeta André Chénier, guilhotinado quarenta anos antes. Actualmente, é fácil rirmo-nos, mas, durante o século XIX, tal foi a quantidade de experiências que surtiram efeito - o telégrafo, a electricidade, o telefone - que os contemporâneos não sabiam em que acreditar.

Médicos consagrados como Charcot (1823/1893) andavam a tentar legitimar a hipnose como cura para a «histeria», uma doença que, por se imaginar ligada ao útero, era vista como essencialmente feminina, tendo conseguido que as suas teses fossem aceites pela Academia Francesa de Ciência. Curiosamente, foi um padre português, o abade de Faria (1746/1819) quem introduziu o método em Paris, mas não foi ele que ficou na História de Portugal, mas Sousa Martins (1843/1897), um professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa, ainda hoje venerado por espíritas, como se pode ver pelo elevado número de lápides junto da sua estátua, no Campo dos Mártires da Pátria.

O meu percurso racionalista não favorecia a localização de um médium. Apenas conhecia uma pessoa que, em tempos, utilizara um bruxo, mas, quando a contactei, disse-me que o mesmo já tinha morrido. Lembrei-me de ir ao Google, colocando as palavras apropriadas – médium, vidente, espíritas – mas apenas descobri notícias sobre a próxima visita do Papa a Fátima, um anúncio do astrólogo-médium-vidente «Fofana» (que prometia êxito de casos amorosos ao fim três dias) e um sítio com o título «A tua minhoca é grande?». Não era obviamente aqui que resolveria o problema. Durante alguns dias, consultei os anúncios dos jornais, mas, em vez de bruxas, só encontrei cus, anunciando coisas como «Xupaxupa Nat Atraz Adoro 20p Lida Dou Detalhes». Eis se não quando, em conversa telefónica com a minha irmã Isabel, esta me disse que a amiga, com quem estava a almoçar, tinha uma filha que acreditava em bruxas. Era um começo: que se revelou promissor.

Depois de ter pedido uma sessão privada através de email, e de ter depositado 100 Euros no NIB indicado, tudo se passou rapidamente. Ia ser recebida pela médium inglesa Anne Germain. No dia 22, dirigi-me ao Dafundo. Vítima de mais um desastre, levava algumas compressas na boca. Em vez de ter ido para casa descansar, como o cirurgião dentista me aconselhara, calcorreei uma rua perto do Aquário Vasco da Gama. Cheguei vinte minutos antes, pelo que tive tempo de sobra para elaborar as perguntas que desejava fazer. Consistiam elas em saber o que pensava Eça de Queirós de sua mãe - um assunto que, há mais de cem anos, apaixona os queirozianos - e se alguém me tinha rogado um praga, a única explicação possível para a sequência de maleitas - um estiramento de tendões, a deslocação de uma omoplata, a destruição de três cervicais, o congelamento de um ombro, enxaquecas intoleráveis e a destruição da raiz de um dente - que, desde o Verão, sobre mim se abateu.

A ideia de «falar» com Eça de Queiroz era adequada, uma vez que, em 1892, na companhia do Embaixador português Emídio Navarro, também ele se entregara a joguinhos espíritas. A 17 de Julho, numa carta a Oliveira Martins, contava que tinha feito umas experiências com chapéus, mas que nada resultara. Depois, relatava ter Emídio Navarro aparecido em sua casa, muito impressionado, após uma «previsão do chapéu que surdiu certa». Nessa ocasião, trazia «uma mesa, uma verdadeira mesa de espiritismo, com todas as comodidades para a manifestação dos espíritos». Com o seu ar irónico, Eça acrescentava: «Mas esse móvel teima escandalosamente em permanecer imóvel ou então nada mais faz do que predizer catástrofes para a Nação; e, como para pessimista, basta o Navarro, removemos essa mesa de profecia para a condição subalterna de mesa de chá».

Ao tocar a campainha, notei que estava nervosa: ia sozinha para um encontro com uma bruxa e o dente doía-me cada vez mais. Só ao quarto toque a porta se abriu. O medo desapareceu, quando vi Anne. Não usava um chapéu negro em bico, não envergava saias orientais e não estava maquilhada de roxo. Por outro lado, a sala não ostentava uma mesa de três pés, não havia bolas de cristal a cirandar por ali nem uma panela a fumegar, como na cave da vidente Ulrica, em O Baile de Máscaras, de Verdi. Apenas notei, em cima da mesa, uma garrafa e dois enormes copos de água. Sentámo-nos, sem mais ninguém presente. A não ser, claro, os espíritos.

Sabendo que eu falava inglês, tudo se passou nesta língua. Fiz-lhe as perguntas que tinha preparado, mas Anne advertiu-me para o facto de não poder responder a nenhuma, por nada me ligar a Eça e por ela não lidar com «pragas», rogadas ou não. Depois de eu lhe ter confessado ser a primeira vez que recorria a um médium, explicou-me que tal não constituía problema, pois apenas se limitava a transmitir o que «os espíritos» tivessem para me dizer. Em suma, não precisava de fazer perguntas, o que me convinha pois as compressas quase me impediam de falar.

Fiquei, sentadinha no sofá, a ouvir o que esta mulher, de branco vestida, me comunicava. Não fez trejeitos, não imitou vozes de homens, não recorreu a truques. Depois de umas interrupções, durante as quais supostamente ouvia os tais espíritos, falou-me de pessoas que, se estivessem vivas, teriam uma idade avançada – uma delas poderia ser a minha mãe – de um homem constante – poderia ser o meu pai – das minhas ansiedades – um dos espíritos disse-lhe ser eu uma «worrier» - dos meus netos – que me dariam a paz de que necessito – e do espaço, repleto de livros, que habito. Depois de alguma informação sobre o amor, o reconhecimento e a gratidão que a tal senhora de idade por mim tinha, explicou-me que não me preocupasse, porque a dita me indicaria as respostas que eu andava a buscar nos livros. Foi aí que a interrompi para lhe dizer que não queria que o «espírito» se envolvesse nas minhas investigações, ao que ela me respondeu, com voz doce: «Não, o espírito não a quer dirigir, não há perda de livre arbítrio, fique descansada». Antes de sair, apenas lhe disse que continuava céptica e que ela era inteligente. Após o que, com ar seguro, me deu um CD com a gravação da conversa.

À porta da sala, encontrei a sua agente. Como Lisboa é uma aldeia, contou-me que vivera, durante anos, na minha rua, que conhecia a minha filha e que a sua cunhada era a filha da amiga da minha irmã. Várias hipóteses me ocorreram para o facto de Anne saber que estou rodeada de livros: ter ido à Internet consultar o meu curriculum vitae (uma professora tem livros em casa, não é?) ou ter a sua agente lido as minhas memórias. Mas esta explicação não era plausível, pois eu só fora admitida após uma desistência súbita na «lista de espera» das consultas com Anne, a qual ultrapassa já as duas centenas.

Em resumo, eis o que observei. Muitas das frases que Anne proferiu ao longo da conversa devem aplicar-se a mais de metade da população, mas ela consegue transmitir a sensação de sermos únicos. É tentador acreditar que um «espírito», qualquer «espírito», nos ama, nos admira e nos está agradecido. Saí de lá espantada, mas não convencida. Sei que a minha mãe não comunica comigo, nem através da Anne nem de ninguém, porque morreu, em 2006, jazendo o seu corpo no cemitério de Águas Belas.

No que diz respeito ao sobrenatural, sou de granito. Deve ser por isso que me reconheço na resposta que Kant deu à pergunta, que lhe foi feita, em 1784, sobre o significado da palavra Iluminismo: «Representa a ultrapassagem da imaturidade imposta. Imaturidade quer dizer a inaptidão para usar a capacidade de raciocínio sem uma direcção exterior imposta por outrem.» Como ele, penso que devemos ousar conhecer. Claro que é apetecível crer que são os residentes do Hades ou os astros celestes que determinam o nosso destino. A ideia de sermos responsáveis pelo que fazemos é aterradora. Daí que os seres emocionalmente mais frágeis possam sentir a tentação de se refugiar neste tipo de crenças. Uma coisa vos garanto: nem a pomba fala com os cardiais reunidos no Vaticano, nem os mortos comunicam com os anónimos que, em desespero, a eles recorrem.
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«Sábado» 31 Mar 10