terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O MENINO JESUS

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Por Maria Filomena Mónica

QUANDO a minha mãe morreu, deixou-me um Menino Jesus. Depois de alguma hesitação sobre o seu destino, segui o conselho das minhas netas e coloquei-o ao lado da árvore de Natal. Devido à composição da família moderna, com segundos e terceiros casamentos, tal é o número de avós que as criancinhas têm de visitar que, cá em casa, a Consoada tende a prolongar-se até aos Reis. Assim, em vez de apenas ser exibido um ou dois dias, o Menino fica na sala até o último embrulho desaparecer. Não tive outro remédio que não fosse o de me habituar à sua presença.

Da minha infância católica, ficaram-me vestígios nem sempre evidentes. Gosto de Anunciações, de Nossas Senhoras do Ó, de Anjos sobrevoando humanos. Sou capaz de ficar horas a olhar as madonnas de Filippo Lippi, as adolescentes com asas de Boticelli, o menino salvador do mundo de Josefa de Óbidos. Tantas saudades albergo do latim dominical da minha infância que, este Verão, dei comigo na Igreja de St Aloysius, em Oxford, pela qual, ao longo de trinta anos, passara sem jamais nela ter entrado, a fim de ouvir a missa celebrada segundo o antigo ritual. Uma vez em Lisboa, decidi rever os anjinhos, em talha barroca, que decoram a capela de Nossa Senhora da Piedade na igreja de S. Roque. E, chegada a quadra natalícia, considerei apropriado ouvir, vezes sem conta, o exaltante coro «For unto us a child is born…», do Messiah, de Handel.

Mas nada me comove tanto quanto o Menino Jesus da minha mãe. Com aqueles olhinhos de vidro, aquela tanga doirada e aquela camisinha decorada a estrelas, parece um menino qualquer, só que mais bonito. Depois de o ter retirado do armário, onde fica guardado durante o resto do ano, tive um sonho, no qual ele aparecia ao lado de um senhor desconhecido, que disse chamar-se Alberto Caeiro. O Menino vinha, com ele, a correr, rolando-se pela erva do jardim, arrancando as hortênsias dos canteiros, rindo-se com gargalhadas que ecoavam por todo o prédio. Tinha fugido do céu, após ter chegado à conclusão de que lá tudo estava em desacordo com as flores e as árvores e as pedras deste mundo. Descobrira que, no Paraíso, não o deixavam, como sucedia com outras crianças, ter pai e mãe. O seu pai era duas pessoas: um velho chamado José, um carpinteiro que não era bem pai dele; e uma pomba estúpida, que não era do mundo nem pomba. E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. Um dia, em que Deus estava a dormir e em que o Espírito Santo andava a voar, fora à caixa dos milagres e roubara aquele truque que permite a alguém fugir sem que tal facto seja notado. Em 2006, descendo pelo primeiro raio de sol, aterrou em minha casa.

Hoje, é uma criança saudável, alegre e brincalhona. Atira pedras aos gatos, rouba a fruta da nespereira e foge dos cães. Corre atrás das raparigas que, em rancho, vão pela rua, levantando-lhes as saias, porque sabe que elas não gostam e que toda a gente se ri do disparate. A mim, mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as tem na mão, conta-me que a Virgem Maria leva as tardes da Eternidade a fazer meia e que o Espírito Santo se coça com o bico. Quando adormece, levo-o, devagarinho, até à sua almofada carmim, decorada com um resplendor monumental. Vive na minha cave, entre garrafas de vinho do Porto vintage, que considera demasiado doce para o seu paladar, e meia dúzia de atoalhados de linho, que aprecia. No Natal, dá-me a mão, a mim e aos meus três netos, a Rita, a Joana e o Miguel, e vamos os cinco pelo caminho que houver, gozando o nosso segredo, que é o de saber que não há mistério no mundo e que tudo vale a pena.

O Menino e eu damo-nos tão bem que não nos interrogamos jamais sobre a sua origem. Ao anoitecer, conto-lhe histórias dos homens de carne e osso, sorrindo ele, porque tudo lhe parece incrível. Ri dos reis, que não são reis, e não gosta de ouvir falar de guerras, porque são cruéis. Às vezes, acorda de noite e vira os meus sonhos de pernas para o ar, batendo palmas. Quando morrer, depois de ter despido o meu cansado e humano ser, levar-me-á até ao meu prado favorito, perto do rio Isis, onde depositará as minhas cinzas. Eis a história do meu Menino Jesus. Por que razão não há-de ser mais verdadeira do que aquela que os teólogos nos impingem? A minha versão não teria agradado à minha mãe, mas, seja onde for que se encontre, pode estar sossegada. O seu Menino encontrou um lar onde se sente feliz.

«GQ» de Janeiro 2010