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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O ano em que a crise ganhou

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Por Rui Tavares

NUNCA GOSTEI da frase “a única coisa a temer é o próprio medo” que Roosevelt disse no seu discurso de investitura no mês de março de 1933, em plena Grande Depressão. Nunca gostei da frase porque a achava pirosa, o que é uma péssima mania; eu era novo e não queria admitir que uma boa parte das coisas verdadeiras e/ou importantes acabam por força sendo pirosas. O problema das pessoas novas é — mais do que não terem experiência — não terem imaginação para recriar mentalmente um momento em que uma frase destas possa ganhar todo o seu sentido.

(O problema das pessoas velhas é igualmente falta de imaginação. Por experiência a mais ou a menos, a falta de imaginação é sempre um problema.)

Pela mesma mania, nunca gostei de outra frase, desta vez dita por Lula quando perdeu uma eleição: “o medo ganhou à esperança”. Parecia-me, igualmente, uma frase pirosa. Mas acontece o medo ganhar à esperança, tal como acontece ficarmos tolhidos pelo próprio medo. Agora sei, porque o vi acontecer.

Esta crise formou-se subterrânea desde a década de 1980, e nos primeiros anos deste milénio era já inevitável e (digam o que disserem) previsível. Foi aliás, prevista: a única questão era saber se a queda ia ser dura ou suave. Quando, no verão de 2007, a bolha imobiliária americana deu os primeiros sinais de rebentar, ficámos à espera: agora íamos saber.

Ainda assim, durante um ano inteiro esta crise foi observada em embrião por uma minoria de curiosos, enquanto ainda era teimosamente negada pelos poderosos, cuja frase de eleição era: “os fundamentos da economia são sólidos”. Ah, sim! Chegou setembro de 2008 e os alicerces da economia desmoronaram-se sob os nossos olhos. Uma série de falências em cadeia teria levado bancos e seguradoras para o buraco se as suas perdas não tivessem sido, no fundo, nacionalizadas. E quando se experimentou deixar cair um banco aparentemente dispensável — o Lehman Brothers — a economia mundial viu o abismo. A crise foi tão má como nas piores previsões.

Logo no fim desse ano de 2008, apesar de tudo, a sociedade reagiu e, num primeiro combate, a crise apanhou um belo soco no olho. A eleição de Obama foi uma vitória da esperança contra o medo, a frase não deixa de ser pirosa, mas foi o que foi. E até achámos que estávamos preparados para fazer frente à crise. Não seria fácil mas conhecíamos o exemplo histórico da Grande Depressão, sabíamos o que estava em causa, tínhamos alguma ideia do que fazer e, sobretudo, os erros da ideologia dominante estavam identificados.

Era cedo para cantar vitória; como num daqueles jogos de futebol em que uma equipa voluntariosa mas desorganizada marca um golo nos primeiros minutos, o resto do tempo tem sido passado a ver a vantagem fugir, primeiro, e uma derrota avolumar-se depois.

Nos EUA, Obama passou este tempo todo com medo de tudo: da Fox News, do Tea Party, de ser acusado de ser “socialista”. Logo no início do mandato, recusou nacionalizar os bancos por parecer uma coisa “não-americana”. Roosevelt não teve medos desses quando, poucos dias depois de chegar à presidência, fechou todos os bancos por uns dias e reabriu apenas os que se revelaram sólidos.

Na Europa, a influência do medo tem sido ainda mais penosa. Não é um medo-pânico, como talvez devesse ser, mas uma cobardia instintiva, feita de receio, mesquinhez e paralisia. Em 2010 instalou-se, e não se vê como vamos sacudir esta coisa de cima dos ombros.

Sabemos como estas coisas continuam: com um enfraquecimento da cidadania, primeiro, e da democracia depois. Eu, apesar dos sinais, ainda me recuso a admitir que a democracia não seja mais forte. Mas pode ser que — tendo vivido em democracia desde os dois anos de idade — simplesmente me falte imaginação.
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RuiTavares.Net

sábado, 11 de dezembro de 2010

O nosso teste

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Por Rui Tavares

O PROBLEMA é quando o segredo se torna a regra e não a exceção, como demonstram os documentos até agora divulgados pela wikileaks.

“Vastos ataques por parte de uma China que tem medo da internet”. Este era o título do New York Times na passada sexta-feira.

No seu contexto, vale tudo o que se tem dito nos últimos dias sobre a wikileaks, cujos documentos — ironicamente — o New York Times usava para narrar a repressão chinesa, em 2009, contra o Google.

Nesse mesmo dia um poderoso senador americano exigia que todas as companhias do seu país cessassem contactos com a wikileaks. Extraordinariamente, elas obedeceram. A Amazon tirou a página da wikileaks da rede. Outra empresa abateu-lhe o endereço. Outra ainda apagou “as visualizações de dados” — gráficos e não documentos classificados — que se encontravam no site. Seguiram-se ataques informáticos em massa. A wikileaks desapareceu. Umas horas depois reapareceu na Suíça, depois sumiu, apareceu de novo, e continua intermitente.

O Departamento de Estado dos EUA proibiu os seus funcionários de consultarem o site, mesmo que a partir de casa. Segundo a Universidade de Columbia, notificou estudantes para que não citassem a wikileaks nas suas páginas de twitter ou facebook, se quisessem preservar as hipóteses de um dia conseguirem emprego na administração. A Biblioteca do Congresso impediu o acesso à wikileaks a partir dos seus computadores.

(Na Europa, um ministro francês declarou inaceitável que a wikileaks pudesse alojar-se na França. Ao menos neste caso, a empresa francesa a que ele se referia respondeu de forma digna: senhor ministro, queixe-se a um juiz.)

Em poucos dias passámos da desvalorização — “isto não tem nada de novo” — ao mais vasto ataque por parte de governos que têm medo da internet. A China é aqui? Esse é o nosso teste.

E, no entanto, ninguém parece notar uma coisa simples: a cultura de secretismo faz mais mal do que bem.

Há segredos justificados e/ou necessários: a posição de tropas em tempo de guerra, a identidade e localização de fontes, e alguns dados sobre as vítimas ou testemunhas de crimes. O problema é quando o segredo se torna a regra e não a exceção, como demonstram os documentos até agora divulgados pela wikileaks.

Vamos recapitular algumas das coisas que já aprendemos: que os diplomatas americanos tinham ordens para recolher dados pessoais e biométricos dos dirigentes das Nações Unidas (uma violação à Convenção de Viena de 1961); que havia um “espião” dentro do governo de coligação na Alemanha, — que aliás já teve de se demitir; que o governo alemão foi pressionado com ameaça de retaliações políticas para que abandonasse o caso de um desgraçado merceeiro que foi preso e torturado por agentes secretos americanos, estando inocente de qualquer crime; que a procuradoria-geral espanhola foi pressionada num caso semelhante, e para limitar as ações do juiz Garzón.

Há mais; e só foram disponibilizados menos de mil documentos de entre os 250 mil totais. Os restantes 99,5% estão a ser tratados por cinco dos mais prestigiados jornais internacionais. As autoridades americanas tiveram oportunidade de fazer comentários e correções (e, no caso do New York Times, fizeram-no). Ao contrário do que dizem aí, isto não é vandalismo. A wikileaks publica o resultado do trabalho que esses jornais têm feito, com a edição e correção entretanto feitos.

Há justificação para que estes segredos em particular fossem ocultados dos cidadãos? Não há; e o facto de o terem sido só torna a democracia malsã e a diplomacia cúmplice.
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RuiTavares.Net

domingo, 5 de dezembro de 2010

Um inestimável serviço à democracia

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Por Rui Tavares

QUE FOI AGORA? Quando a wikileaks publicou documentos das guerras do Iraque, — incluindo um vídeo que mostrava assassinatos cruéis e gratuitos por parte das tropas americanas — a resposta foi que “era verdade mas não era notícia”. O Pentágono, com a ajuda de um jornal preterido na divulgação, tentou alegar que a wikileaks estava a pôr vidas em risco e não a salvá-las (recuaram meses depois, quando já não era notícia). Agora, a divulgação de 250 mil de documentos diplomáticos também tem sido alvo de tentativas de desvalorização, desde os que dizem que “isto tudo já se sabia” até àqueles que acham que “há segredos importantes que é preciso guardar”.

Reparem como estes argumentos são contraditórios: se “isto tudo já se sabia” é porque não são “segredos importantes”, sacou?

Ora, por mais que “achemos que sabemos” o que pensam os sauditas acham iranianos, não conheço nenhum jornalista que não ficasse doido por uma citação do rei saudita chamando ao Irão “a cabeça da serpente”. E quanto à falta de interesse público, vejamos o príncipe André de Inglaterra justificando subornos no Cazaquistão — país de onde, uns meses mais tarde, saiu o homem que lhe comprou uma mansão por quinze milhões de libras, mais três milhões do que o pedido —; será que o contribuinte inglês e o cidadão cazaque, pelo menos, não têm interesse em saber como se faz uma “diplomacia económica” que tresanda a corrupção?

Como nota futura, duas coisas só aparentemente menores chamaram a minha atenção.

Em primeiro lugar, as ordens que diplomatas norte-americanos receberam para coligir informação pessoal (número de cartão de crédito, número de passageiro frequente, dados biométricos, senhas de email) de altos-funcionários internacionais, e em particular de Ban Ki-Moon, o secretário-geral das Nações Unidas. Esta ordem, provavelmente ilegal, não significa apenas que os diplomatas fazem espionagem (sabe Zeus que farão então os espiões). Com alguns desses dados, é possível saber muito sobre uma pessoa: por onde andou e que coisas comprou, se empresta dinheiro ou tem falta dele, em que hotel ficou e quem mais estava no quarto. Não precisa de ser nada muito profundo; mas saber que o ministro x tem uma amante (ou um amante) pode vir a dar jeito um dia.

Não gostei de saber que os EUA recolhem deliberadamente estes dados, e por uma razão: são os dados que, nos casos “SWIFT” ou “PNR”, eles pretendem ter de milhões de cidadãos europeus como você ou eu. Os dados “PNR” — de passageiros, incluindo cartão de crédito e email — são guardados em servidores nos EUA e tratados antes de você embarcar num avião; os dados “SWIFT” — basicamente, as suas transferências bancárias na Europa — já são enviados para os EUA à razão de noventa milhões de mensagens por mês.

E aqui vem a segunda parte. Os documentos agora revelados mostram que quando o Parlamento Europeu chumbou o acordo SWIFT, em fevereiro, os EUA desenvolveram pressões junto dos governos, em particular do alemão, para que estes “controlassem” os seus eurodeputados. É uma pena, aliás, que as fugas de informação se fiquem por fevereiro; é que em maio um acordo levemente diferente foi a votos e passou: que pressões terão ocorrido dessa vez, nomeadamente junto da presidência espanhola?

O futuro da liberdade passa pela segurança e pela integridade dos nossos dados pessoais — e não sei se os EUA, depois de terem perdido 250 mil dos seus documentos secretos, estarão em condições de garantir qualquer delas.
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RuiTavares.Net

domingo, 28 de novembro de 2010

Em greve

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Por Rui Tavares

HÁ 17 ANOS, salvo erro, passei este dia em frente à Assembleia da República, numa manifestação de estudantes contra o aumento das propinas.

Não éramos muitos; mas estávamos determinados a ficar ali o tempo que fosse preciso. Tinha havido um jogo de avanços e recuos com a polícia nas escadarias do parlamento. Eles ganharam. Ao fim da tarde, estávamos arrinconados no pequeno largo cá em baixo das escadarias de São Bento.

De repente, sem dar aviso, avançou sobre nós a polícia de choque. A intenção era limpar o largo, e conseguiram-no. Alguns de nós fugiram pela rua de São Bento. Outros — entre os quais eu — pela Rua do Quelhas. A violência foi inesperada e, mais do que desproporcional, injustificada. Num recanto ajardinado da Rua do Quelhas lembro-me de ter visto em espasmos e com dificuldade de respiração uma miúda frágil e perfeitamente inofensiva.

Portugal não tinha então — e não voltou a ter, valha a verdade — hábitos de repressão policial sistemática e agressiva. Ficámos surpreendidos, embora pouco tempo antes de nós tivesse acontecido com os trabalhadors da TAP. Pouco depois viria a acontecer, de forma mais séria, com os trabalhadores da Pereira Roldão na Marinha Grande. E depois, de forma grave e mesmo criminosa, na repressão aos acontecimentos da Ponte 25 de Abril.

Desde então, muitos governos nossos têm caído, cada um à sua maneira: em fuga ou em farsa. Mas nenhum como esse governo terminou com aquela mistura de agressividade, repressão e teimosia, com um bocadinho de burla e faturas falsas à mistura.

O primeiro-ministro era Cavaco Silva. O ministro do interior era Dias Loureiro.

É curioso ver como parte dos nossos problemas têm as suas raízes naqueles tempos. Quando nos aumentavam as propinas e tornavam os estudos mais caros, os ministros de Cavaco diziam-nos que seríamos compensados com empréstimos bancários. A sugestão era: endividem-se para estudar, antes de se endividarem para comprar casa. Esses estudantes estão hoje sub-empregados ou no estrangeiro, e as dívidas acumulam-se.

O outro lado dessa moeda foi a banca, com a sua mistura de irresponsabilidade, promiscuidade com a política e práticas predatórias — tudo tão bem representado pelo mesmo Dias Loureiro que Cavaco Silva manteve até à última no Conselho de Estado já em pleno caso BPN.

A última Greve Geral convocada por duas centrais sindicais foi em 1988, mais uma vez no tempo de Cavaco Silva, e um dos poucos sucessos da oposição nesses anos.

As coisas mudaram muito entretanto. Esta é provavelmente a primeira Greve Geral para essa geração de há dezassete anos, e para os jovens que vieram depois dela. Estes já não são o trabalhador clássico, mas uma nova mão-de-obra precarizada e subaproveitada — as vítimas do neoliberalismo, e da crise do neoliberalismo.

E esta é também uma greve geral em que não há um único adversário definido. Não basta escolher um primeiro-ministro mal-amado. À nossa frente está uma constelação de ideias erradas, debilidades institucionais em Bruxelas, egoísmos nacionais na Europa, os termos enviesados de uma competição injusta com a China — e as nossas boas velhas dificuldades estruturais.

O sentido de uma greve, no entanto, continua o mesmo. É o povo parar e perguntar — sem os nossos braços que fariam vocês? Para quem governam afinal? Chegou o momento de o usar.
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RuiTavares.Net - 25 Nov 10

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Dois anarquistas conversando

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Por Rui Tavares

NO FINAL de fevereiro de 1861, Pierre-Joseph Proudhon — que era uma das maiores celebridades filosóficas e políticas da Europa — recebeu a visita de um jovem conde russo. Este russo já tinha passado por algumas mudanças. Fora militar e participara na repressão a revoltas no Cáucaso, mas agora tinha pretensões literárias. Tivera um filho bastardo com uma camponesa, de entre os servos “propriedade” da sua família. Mas estava agora noivo de uma jovem da corte, dezasseis anos mais nova do que ele. As coisas pareciam mais encaminhadas. Nasceriam filhos, muitos; quando em Moscovo, a família daria festas no palacete; passariam grandes temporadas em Iasnaia Poliana, no campo.

Ainda assim, Lev Nicolaievitch Tolstói, o jovem conde russo, trinta e três anos, não sabia que fazer da vida. Proudhon — um tipógrafo, filho de um tanoeiro, que aprendera latim sozinho e se tornara famoso pelos livros e jornais como a primeira pessoa a dizer-se “anarquista” — encorajou-o a fazer aquilo que ele já queria. Se não isso, para quê atravessar a Europa e visitá-lo?

Aquilo que Tolstói queria era voltar a casa, libertar os seus servos, libertar as suas propriedades — no fundo, libertar-se a si mesmo. Por isso ganharia a incompreensão da família e dos seus pares, e a da igreja ortodoxa russa.

E também queria fazer escolas, ideia que Proudhon aplaudiu. No regresso, Tolstói abriu uma dúzia delas onde os filhos dos camponeses e os seus próprios filhos estudavam segundo um método que ele próprio ia experimentando.

E queria ainda escrever romances. Proudhon estava a terminar um tratado de política chamado Guerra e Paz. Tolstói gostou do título, e roubou-lho para um romance. Proudhon, que tinha proclamado “a propriedade é o roubo”, não se queixaria. A Tolstói — que viria a recusar os lucros dos seus livros — não passaria outra coisa pela cabeça.

Passo muitas vezes, de bicicleta, pelo prédio onde isto aconteceu. É o número 16 da Rue du Conseil, em Bruxelas, onde Proudhon vivia exilado sob nome falso. Nenhuma placa lembra o encontro.

Há tempos um dos três apartamentos do prédio estava para alugar. Fingindo-me interessado, liguei para a imobiliária e marquei um encontro. O agente trazia debaixo do braço notas que andava a compilar sobre livros de psicologia. Uma amiga que me acompanhava, para disfarçar o meu embuste, lá perguntou umas coisas sobre o soalho e as áreas da casa. Eu deixei-me ficar na varanda, de onde se via uma enorme nogueira no quintal das traseiras.

Pergunto-me por vezes o que diriam eles se tivessem continuado aquela única conversa que tiveram. Que diriam sobre a Europa, sobre a Rússia, a Tchetchénia e o Afeganistão e os EUA e a China e a Crise. Que diriam da cimeira da NATO e a polícia prendendo “anarquistas”?

Enfim, naquele dia fiquei só olhando para a nogueira, na casa onde talvez — a probabilidade é de 33,3% — se tenham encontrado ambos.

Regressado à Rússia, Tolstói viria a tornar-se mais famoso — como escritor, filósofo e anarquista — ainda do que Proudhon. Nos cinquenta anos seguintes, escreveu livros, renegou livros, disse-se cristão, foi renegado pela igreja — até hoje. Até ao dia em que, irritado com tudo, fugiu de casa aos oitenta e dois anos. Procurava libertação e paz. Morreu em fuga, numa estação de caminhos-de-ferro, fez anteontem cem anos.
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RuiTavares.Net - 23 Nov 10

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Há palavras a menos na política portuguesa

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Por Rui Tavares

SEJAMOS HONESTOS, Cavaco Silva se pudesse sufocaria estas eleições no berço porque, simplesmente, é o que lhe dá mais jeito.

Faltam palavras na política portuguesa. Por exemplo, palavras como “sonso”. E falta utilizar essas palavras quando Cavaco Silva, atual presidente da República e candidato à sua própria sucessão, diz que “há palavras a mais na nossa vida pública”.

Cavaco Silva está a matar, devagarinho, qualquer hipótese de termos uma campanha presidencial esclarecedora.

Fá-lo porque nunca entendeu o valor do confronto de ideias; Cavaco Silva não é, essencialmente, um pluralista. Sempre insistiu que duas pessoas confrontadas com os mesmos dados têm a mesma opinião. Isto significa que não entende porque têm os outros outra uma opinião diferente da dele; essa é uma realidade que ele aceita (se aceitar) a custo, e que portanto não se percebe como pode prezar. Adicionalmente, sempre atacou a retórica, ou seja, o lado público e discursivo da política, que é o alicerce da democracia. Não reconhece que a vida pública precisa de palavras a mais, todas diferentes, algumas erradas, para se aperfeiçoar.

Mas, sejamos honestos, Cavaco Silva se pudesse sufocaria estas eleições no berço porque, simplesmente, é o que lhe dá mais jeito. Com a mobilização a zero, não há surpresas; o ideal seria que ninguém reparasse que há eleições. Não haver cartazes nas rua é um bom começo, principalmente quando se tem a TV e os jornais todos os dias assim: “Cavaco defende previsibilidade”, “Presidente recomenda precaução”, “Cavaco Silva condecora empresários” Ui, que profundo.

Isto não é programa político nem plataforma eleitoral e, acima de tudo, é demasiado mau para ser verdade. E porquê? Porque uma eleição é um momento supremo de clarificação para uma sociedade; nós gastámos os nossos cartuchos já no ano passado e o país ainda precisa de saber o que lhe vai acontecer. O próximo presidente vai, talvez, dissolver o parlamento, assistir à entrada do FMI e ver a União Europeia desmanchar-se ou mudar.

Qualquer candidato que não fala claramente sobre estas coisas está a faltar às suas obrigações para com o eleitorado.

Na crónica da semana passada sobre a “austeridade”, cortando caracteres para que coubessem na coluna, acabei por suprimir um parágrafo. Dizia assim:

“Além disso, a Irlanda já fez todos estes cortes, e os mercados não a deixam em paz. É até a nossa principal esperança para ir à nossa frente no caminho da bancarrota Como os irlandeses já sofreram demasiado, não lhes desejo essa sorte.”

Hoje, estou arrependido. Deveria ter deixado essa frase e acrescentado que Portugal deveria ter um plano para quando isso acontecesse.

Infelizmente, como lembram no blogue de economistas “Ladrões de Bicicletas”, o único plano de Portugal é dizer que é diferente da Irlanda, tal como o único plano da Irlanda é pedir que não a confundam com a Grécia, e o plano da Espanha é explicar que nada tem a ver com os outros.

Têm razão no fundo. A Irlanda de sonho dos neoliberais tem pouco a ver com a Espanha superavitária de há dois anos, ou com a Grécia de contas fraudulentas, ou o nosso Portugal que tão bem conhecemos e nos aflige.

Mas estão errados na forma. A forma como o euro está feito prejudica todas as economias periféricas, e estas têm de se juntar para dizer isto mesmo. Não precisam de mais do que fazer uma reunião em qualquer das capitais e escrever uma declaração simples. Berlim e Paris não podem mandar sozinhas em prejuízo imediato dos outros, e ruína final de todos.
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In RuiTavares.Net

domingo, 14 de novembro de 2010

A lição de Lula e o teste de Obama

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Por Rui Tavares

HÁ UNS MESES, no Rio de Janeiro, ouvi Lula explicar como entendia ele ser de esquerda, ou por outras palavras, como entendia ele a sua esquerda: “é fazer primeiro o necessário, começando pelo mais simples; depois é fazer o possível; logo, logo, o impossível vai estar acontecendo”.

Lula defendia que esse modus operandi o distinguia da esquerda de “à europeia”, que se caracteriza por aceitar as estruturas de poder como elas estão, mas também da esquerda “Chico Alencar”, do nome de um político brasileiro que saiu do PT para fundar o Partido Socialismo e Liberdade, que deseja chegar ao socialismo “de uma vez só” (na descrição de Lula, que talvez não fosse a dos sujeitos em causa).

Lula ia pontuando a sua explicação com exemplos adequados a qualquer pessoa e plateia. Fazer o necessário era começar pelos mais pobres; contrariamente ao que se costuma pensar, fazer política começando pelos mais pobres não é um bicho-de-sete-cabeças. “Na verdade é muito simples”, dizia Lula, “é fazer saneamento básico sempre e só fazer viaduto quando é preciso”. “No passado”, continuava ele repetindo uma das suas bengalas de linguagem que mais irritam a oposição, “os prefeitos só queriam fazer viaduto porque podiam por lá o nome deles e todo o mundo via; não queriam fazer saneamento básico porque corre enterrado e não dá votos. Mas com o saneamento básico feito é menos criança pobre que corre descalça e pega doença; com a bolsa-família é mais criança pobre que estuda; portanto, é muito simples”. Da mesma forma Lula passava para o possível e, concluía, “como vocês estão vendo, logo-logo o impossível vai estar acontecendo”.

O impossível, de certa forma, aconteceu. Quem diria que o Brasil iria chegar a 2010 como uma respeitada potência global? Nos últimos 16 anos a democracia brasileira tem funcionado bem — e lembrem-se que o ponto de partida foi Collor de Mello. Fernando Henrique Cardoso fez também o necessário: domar a hiperinflação. Lula fez o possível: tirar 20 milhões da pobreza. Se Dilma Rousseff no futuro próximo (e talvez Aécio Neves num futuro hipotético) domarem a corrupção e a violência nas grandes cidades — aí está o impossível que nós gostaríamos de ver acontecer.

Como se desenrascaria Obama no teste do necessário-possível-impossível desenhado por Lula? É cedo para dizer.

Desde logo, Obama começou pelo impossível: ser eleito. Fez apenas parte do necessário: a reforma do sistema de saúde. Fez apenas parte de outra parte do necessário: a reforma do sistema financeiro, na qual deveria ter ido mais longe com uma nacionalização-reprivatização de alguns bancos e com um estímulo à economia adequado à dimensão da catástrofe. E fracassou completamente em outra parte do necessário: fechar Guantánamo e limpar os estábulos de Áugeas do complexo militar e de informações americano, ainda dominado pela doutrina do medo que vem de Bush.

Naquilo em que Obama sofreu nesta eleição, pode argumentar-se que foi porque procurou demasiado o centro, permitindo que os seus adversários o caracterizassem como fraco e fugissem ainda mais para a direita.

Mas isso não é causa para nenhum regozijo. Não há Lulas no hemisfério Norte. Quem se queixa de Obama, olhe para a paisagem que temos: Sócrates, Sarkozy, Merkel, Barroso, Cameron e quejandos. Obama está à esquerda de todos, e mais ainda de uma dinâmica política americana ameaçada por um extremismo de direita agressivo e completamente desligado da realidade. Se Obama falhar o teste, pode ser culpa dele; mas o mal será de nós todos.
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In RuiTavares.Net

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Em dívida

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Por Rui Tavares

NO TEMPO das manifestações na Praça Tiananmen, em junho de 1989, quase ninguém sabia o que era a internet. O email era também praticamente desconhecido; ainda não havia web, muito menos twitter ou facebook. Raras pessoas tinham visto um telemóvel, e ninguém adivinharia que enviar mensagens de texto viria a ser um dos seus usos mais populares. Mesmo a televisão de notícias, com o seu ciclo de 24 horas por dia, estava apenas a começar. Era muito mais fácil encerrar um país e fazer com que as notícias pingassem a intervalos cada vez mais reduzidos.

Mesmo assim, seguimos os acontecimentos na China com invulgar intensidade, primeiro, e ansiedade depois. Muitos talvez — como eu — pela rádio, nos noticiários de hora a hora — ou já seriam de meia em meia-hora? — enquanto uma minoria talvez tivesse televisão por satélite e canais internacionais. A informação não era contínua; era aos soluços, intermitente, e escassa. Irão ser tolerados os manifestantes? Não estarão eles demasiado audaciosos? Conseguirão vergar o regime? O que explicará este compasso de espera? O que fará o exército? Está confirmado que já há tanques nas avenidas?

Foram chegando então as notícias, cada vez mais seguras, de que tinha havido um massacre na praça.

O movimento foi, porém, mais vasto do que os acontecimentos daqueles dias. Os “mártires de Tiananmen”, como lhes chama o Nobel Liu Xiaobo, pediam apenas aquilo que a nenhum cidadão pode ser negado: liberdade de associação, de manifestação, de expressão e de informação. Isso faz deles património não só do povo chinês mas da humanidade inteira.

Restou-nos a fotografia — e um filme curto — do “homem do tanque”, no qual um desconhecido segurando dois sacos de compras se posiciona calma e metodicamente em frente a uma coluna de tanques. Os tanques desviam-se, ele acompanha. Os tanques ameaçam, ele insiste. E depois os tanques param porque algum soldado lá dentro terá sentido que não conseguiria matar ali aquele homem. Houve muitas tentativas para encontrar a identidade e confirmar o seu destino, que eu saiba sempre infrutíferas. Será melhor assim; seria bom que o “dissidente desconhecido” fosse simplesmente a corporização de algo que existe em cada um dos humanos.

Trata-se, quanto mais pensamos nisso, de um documento simples e muito perturbador. A realidade lembra-nos todos os dias que nós humanos estamos predispostos à obediência; e ali está a prova em contrário, contra todas as evidências mesmo, de que afinal um desobediente consegue deter um império. Coisa difícil de acreditar.

Nos anos seguintes, a China mudou muito. Ficou mais rica e poderosa; os ingénuos do capitalismo acreditaram que com o dinheiro viria a democracia, que “a China ficaria mais parecida connosco”. Afinal, foi o contrário que aconteceu. Nós é que estamos agora mais parecidos com a China, mais dispostos a trocar democracia por dinheiro — por exemplo dispostos a deslocar uma manifestação, em Lisboa, para que os dirigentes chineses possam viver no seu mundo de deferência e fantasia.

Sim, eu sei. Estamos endividados e os dirigentes chineses fazem o favor de comprar a nossa dívida. Por mim, podem comprar toda a dívida que quiserem. Isso não apagará a dívida maior, mais profunda e impossível de pagar que temos ao homem do tanque.
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In RuiTavares.Net

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A tragédia desejada

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Por Rui Tavares

É ESTRANHO dizê-lo, mas se o orçamento (previsto) fosse apenas injusto, nós já nem daríamos por isso. O nosso país é injusto há muito tempo; nos últimos anos só pontualmente e parcialmente contrariou essa tendência.

Mas é preciso dizer que este orçamento não é só injusto; é errado.

É perturbante pensá-lo, mas se este orçamento fosse apenas errado talvez nos limitássemos a encolher os ombros. Este país tem vivido com mais políticas erradas do que certas. E por vezes o errado é a única coisa que existe.

Mas é preciso insistir que este orçamento não é só errado; é trágico.

E por aí adiante. Essa tragédia vai ser feita de muitas micro-tragédias: quem tem um mínimo de noção de como vive em Portugal a maioria das pessoas só pode ficar arrepiado com o que aí vem. Isto não é só injusto, errado e trágico. Isto vai ficar muito pior.

E mesmo isso não é o pior. O pior é a forma tonitruante, insistente e demagógica como isto foi matraqueado nos últimos tempos. Num momento da verdade como este, esperaríamos que ao menos aqueles que passaram os últimos anos clamando por esta receita (cortes de salários, recessão induzida) sentissem a credibilidade em risco. Neste particular, eu já não tenho quaisquer ilusões. O pensamento do status quo é, afinal de contas, isso mesmo. O partido que mais pediu por austeridade — o PSD — faz agora uma tremebunda birra, como se a não quisesse aprovar. Os profetas do sofrimento já sabem o que vão dizer quando isto falhar, até porque é o mesmo de antes: que não sofremos o bastante. Fica sempre bem.

Em vez de nos salvar, esta receita vai aproximar-nos do agravamento da dívida, da bancarrota e da liquidação total. A primeira obrigação de quem discorde é dizer isto mesmo. Que ao menos fique registado. Nem todos os economistas, políticos e comentadores achavam o mesmo em Outubro de 2010.

Mas não chega. Se o caminho que nos trouxe até aqui foi errado, é preciso explicar como teria sido melhor. E para mostrar outro caminho, não adianta olhar apenas para as estreitas ravinas que delimitam o percurso nacional e que fazem crer que cada passo que demos foi inevitável. É preciso olhar para o mapa. Neste caso é, inevitavelmente, o mapa da Europa.

Os líderes políticos e a opinião tiveram um ano inteiro para poder olhar para esta crise como resultado das debilidades institucionais europeias. Na fase crítica, os nossos governos tiveram o último semestre para montar uma resposta a estas debilidades: levando o Banco Central Europeu a comprar dívida soberana diretamente (em vez de fazer disso um belo negócio para os privados), emitindo eurotítulos que permitissem àUE ter uma política expansionista na escala continental em que ela é globalmente sustentável. Havia oposição? Claro. Mas eles (Sócrates, Zapatero, Sarkozy) falharam miseravelmente no debate; nem sequer o trouxeram para a opinião pública europeia, onde ele poderia ser ganho.

E mesmo dizer isto não chega. Agora que estamos onde estamos, é preciso dizer como se poderia reagir de uma forma mais justa: fazendo os bancos pagar os mesmos impostos que as outras empresas, acabando com o desperdício nas parcerias público-privadas, mantendo a rede de segurança para a população mais pobre.

Onde é injusto, há que mostrar como poderia ter sido mais justo. Onde é errado, é preciso dizer como poderia ter sido de outra forma. Onde vai ser uma tragédia, é essencial demonstrar que poderia ter sido uma oportunidade. Fazer mais justo não teria apenas sido menos errado. Teria sido melhor.
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In RuiTavares.Net

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Outonal

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Por Rui Tavares

DURANTE O VERÃO, Pedro Passos Coelho começou a parecer-se com o tipo que ganhou o euromilhões mas não teve tempo para levantar o prémio.

Semanas ou meses antes, com um empurrãozinho do caso PT/TVI, o poder ter-lhe-ia caído no colo. As sondagens eram boas, Pedro Passos Coelho teria chegado a primeiro-ministro se as eleições tivessem sido antecipadas naquela altura. Mas ele preferiu esperar que o governo “caísse de maduro”, no que aliás tinha o acordo da maioria dos comentadores da sua área política, ou preferiu “cozer o governo em lume brando”, como dizem os sabichões destas coisas, ou ainda, noutra frase também muito usada nestas ocasiões, “decidiu que não era o seu momento”.

Passos recuou quando era possível fazer cair o governo por causa de um caso político de interferência nos media, de grande ou plausível gravidade para a maioria do eleitorado, desligado da crise do euro, e que acima de tudo parecia ser responsabilidade exclusiva do primeiro-ministro. Pessoalmente, Passos Coelho tinha tudo a ganhar e pouco a perder, mas não teve aquele instinto matador que um político talentoso supostamente tem de ter. Só não precisaria de ter ficado em pânico depois.

Passado alguns meses, Passos Coelho tem aos olhos do eleitorado a mesma credibilidade que tem Sócrates — se pensarmos bem, até custa a crer que tenha caído tão rápido – a que se acrescenta a perene característica de qualquer líder do PSD: são todos tão nabos que parecem ter sido escolhidos na prateleiras da mercearia e não nas diretas do partido.

As sondagens são agora ambíguas ou mesmo más para ele e serão piores os resultados eleitorais se as eleições se derem após uma crise política na qual ele tenha responsabilidade pessoal. Essa crise política estaria diretamente relacionada com a crise orçamental, que certamente agravaria; num momento em que os “mercados” já desejam ver a situação do país como desesperada, Passos Coelho daria uma ajuda a que ela se tornasse efetivamente desesperada.

Acresce a isto que Passos Coelho provocaria esta crise chumbando um orçamento que parece feito de acordo com os desejos da área opinativa do PSD, mais do que qualquer outra. E achará ele que este é o seu momento?

Reformulando a pergunta: Passos Coelho não quis fazer cair o governo num momento que era de responsabilização mínima e ganho máximo para ele, e agora arriscaria fazê-lo num momento que é de responsabilização máxima e resultados mínimos ou até negativos? Não faz sentido. E, como não faz sentido, eu diria que não vai acontecer, e que Passos Coelho estará preparando por estes dias um recuo airoso. Para a próxima, poderá até poupar-nos ao drama preliminar, que só lhe dá a imagem de um líder intempestivo — ou seja, aquilo que o eleitorado já tem e não deseja.

De forma que a conclusão para Pedro Passos Coelho deveria ser, agora sim: este não é o seu momento. Nos próximos tempos ele terá de esperar. Também, que diabo, isto não é como ter perdido o bilhete do euromilhões premiado e não ter mais do que uma probabilidade infinitesimal de voltar a ganhar. Para mal dos nossos pecados, e de forma quase independente dos talentos que qualquer político tenha, quem for líder de um dois grandes partidos em Portugal arrisca-se sempre a chegar a primeiro-ministro.
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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

100 anos e um dia

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Por Rui Tavares

PARECE QUE a Iª República cometeu o grande pecado de ser uma balbúrdia, — mas por oposição a quê? Pelos vistos, deve haver quem ache que o resto do mundo era, naquele primeiro quartel do século XX, uma espécie de pacífico jardim.

Não era; desde ocupantes de cargos eleitos a cabeças coroadas, do primeiro-ministro de Espanha ao arquiduque da Áustria, houve homicídios para todos os gostos naquela época. Não excederam, contudo, a morte massificada da gente comum; entre os anos de 1914-1918 — não tinha a nossa República quatro anos — houve simplesmente uma Guerra Mundial, neste continente e nas suas colónias. Quando essa Grande Guerra e a sua estúpida e inútil mortandade acabou, tinham acabado também vastos impérios: o dos Czares, varrido por duas revoluções e desmembrado; o Austro-Húngaro, despedaçado; e pouco tempo depois o Império Otomano. No culminar desse processo, fez-se o ensaio geral aos genocídios que seriam levados às maiores consequências nos meados do século XX europeu. A República Portuguesa lá aguentou, mas entre a Iª e a IIª Guerra Mundial nasceram o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, e regimes seus aparentados — como a ditadura nacional em Portugal — um pouco por toda a Europa. Desfez-se o sonho da Sociedade das Nações. Como eloquentemente diz a historiadora Zara Steiner, esta foi a época em que — por quase todo o mundo e sobretudo na Europa — “as luzes falharam”.

Perante isto, — ou melhor, esquecendo isto — há gente que faz da leitura da Iª República uma única lenga-lenga sobre como os líderes políticos portugueses da época eram defeituosos. Pois eram. Sem querer ser preciosista, esse é exatamente o sentido da República: sermos governados por gente imperfeita.

Precisamente porque não existe gente perfeita, nem gente que herde a predisposição para governar vitaliciamente um país, o princípio republicano é o de que nem o nascimento nem a classe social devem vedar alguém de eleger e ser temporariamente eleito.

Isto é uma coisa boa, e uma coisa simples. Às vezes há coisas assim. É pueril alegar que ser governado pelo filho do rei da Casa de Bragança tivesse sido melhor do que ter sido governado pelos Srs. Teófilo Braga ou Bernardino Machado, mas quer o sentimento anti-progressista que rasguemos as vestes por cada vez que este país deu um salto político. Pelo grande gozo que é “irritar a esquerda”, pratica-se o contorcionismo da mioleira. Mesmo assim, o liberalismo continua a ser melhor do que o absolutismo; e a república melhor do que a monarquia, a democracia melhor do que a ditadura. Melhores porque regimes mais livres e mais iguais, mais próximos do princípio de que a sociedade se pode — e deve — auto-governar.

Isto não faz destes regimes isentos de críticas; mas fá-los certamente dignos de comemoração, dignos de serem lembrados em conjunto. Mas, lá está; Pedro Passos Coelho faltou ontem ao lugar onde se proclamou a República; como a direita portuguesa em geral faz por ausentar-se do 25 de Abril. É uma atitude de ignorância voluntária que só poderia desculpar-se se ao menos fosse clara e assumida.

Mas enfim, não se pode exigir vontade a quem não a tem. A melhor comemoração da República é viver querendo governar-nos a nós mesmos. Uns dias melhor e outros pior, lá vamos insistindo.
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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Bingo!

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Por Rui Tavares

LÁSTIMA É QUE, quando num dia futuro se fizer a história das presidenciais de 2011, vá passar despercebido o vigoroso momento de viragem que foi a passada sexta-feira. Efetivamente, foi nesse 10 de Setembro de 2010 que ocorreu a publicação de uma crónica de Vasco Pulido Valente em que este profetizava que “Alegre vai a caminho do desastre e não percebeu”.

Deveria até ser alcandorado a tradição eleitoral, no mesmo patamar das straw polls das aldeias do Maine nos EUA ou das previsões do polvo Paul na Alemanha, o impreterível facto de que em Portugal nunca nenhuma vitória eleitoral, — em verdade, nunca nenhum facto político —, se pôde dar sem que o Vasco Pulido Valente que todos conhecemos e amamos não lhe prognosticado a sua evidente impossibilidade. Manuel Alegre tem ainda muito caminho para percorrer; mas pode já respirar de alívio por saber que este primeiro escolho lhe foi removido.

Com infalível falibilidade, note-se, a previsão de Vasco Pulido Valente não vale só pela forma, mas também pelo conteúdo, a saber, que “o dr. Manuel Alegre condenou anteontem a decisão dos ministros das Finanças da União Europeia de impor um “visto prévio” ao Orçamento dos países-membros”. O problema não é ser isto incorreto — “formalmente, Manuel Alegre tem toda a razão” — mas que a “atitude de Alegre” o “torne assim, indiscutivelmente, o candidato do Bloco”.

Vale a pena perder algum tempo descendo a estes pormenores.

Para ser justo, é enfermidade crónica do comentarismo político (de que eu não juro que não padeça) pretender que os candidatos digam ou não digam isto ou aquilo por razões táticas — para se distanciarem ou não deste ou daquele partido, por exemplo. Às vezes estes conselhos ganham até a forma de suposta preocupação desinteressada pelo destino de um candidato, aquilo que em inglês ganhou o nome de “concern trolling”.

Mas isto é esquecer um singelo motivo pelo qual um candidato a Presidente deve dizer certas coisas: por ter “toda a razão”, formalmente ou não.

E no caso, Manuel Alegre tem toda a razão substancialmente também. O “visto prévio” de Bruxelas aos orçamentos nacionais é um problema de democracia essencial para o futuro de Portugal e da Europa. Um candidato que não tenha opinião sobre ele, e que não faça disso um tema de campanha, estará a menosprezar o eleitorado e a trair o cargo para que se candidata ainda antes de lá chegar.

A opinião de Manuel Alegre é diferente da posição oficial do governo e semelhante à posição do BE? Tanto pior, ou tanto melhor, como quiserem. Haverá na campanha muitas ocasiões para Alegre tomar posições próximas do PS e distantes das do BE. Para dizer a verdade, qual é o eleitor que se rala com isso? A única preocupação que devemos ter com Manuel Alegre, como com qualquer candidato, é que as suas posições sejam apenas idênticas — não às do partido X ou Y — mas às de Manuel Alegre ele-próprio. É por isso que temos eleições presidenciais uninominais. E a propósito: alguém se lembra de como Barack Obama “caminhava para o desastre” por ter sobre a Guerra do Iraque uma posição contrária à do seu partido? Pois é.

O que nós deveríamos estar a perguntar é: que pensa Cavaco Silva sobre o visto prévio de Bruxelas ao orçamento do seu país, que vai estar em cima da mesa precisamente ao tempo das eleições?
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domingo, 5 de setembro de 2010

Lições de há cinco anos

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Por Rui Tavares

HÁ CINCO ANOS, mais ou menos, a política portuguesa estava assim. Mário Soares tinha apresentado a sua candidatura à Presidência da República, instado por José Sócrates entre outros, e entre outras razões porque havia sondagens (algumas delas publicadas, as outras confidenciais) que o davam como vencedor das eleições e, se não isso, pelo menos o único candidato capaz de interromper um passeio tranquilo de Cavaco Silva até Belém.

Ato contínuo, o PCP e o BE apresentaram os seus candidatos, os mais fortes que tinham, mas que de certa forma se anulavam mutuamente: os líderes. As candidaturas de Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã foram o equivalente, em xadrez eleitoral, a uma troca de rainha por rainha. Um esforço de soma zero.

Qualquer destes três candidatos, de uma forma ou outra, se sacrificou pelo seu partido.

Entretanto, Manuel Alegre apresentou-se correndo por fora e acabou por ter o melhor resultado da esquerda. E Cavaco Silva foi eleito à primeira volta, sim, mas com a maioria mais reduzida de qualquer eleição presidencial da democracia. O passeio tranquilo esteve a pouco mais de meio ponto de se perder.

O que se passou? Para mim, erros de leitura de dois géneros, aliás já evidentes na altura.

O primeiro foi um erro na leitura das sondagens, especialmente visível no resultado de Mário Soares, muito pior do que o esperado.

O que uma leitura simplista das sondagens esquece é que quando colocadas perante hipóteses que consideram implausíveis, as pessoas permitem-se dar respostas igualmente implausíveis. Como ninguém acreditava que houvesse mesmo possibilidade de Soares querer ser de novo presidente, as pessoas tomavam a liberdade de dizer que era isso mesmo que prefeririam. (É o caso, quanto a mim, das sondagens em que um grande número de portugueses aparece dizendo que quer ser espanhol: a verdade é que ninguém considera que a hipótese esteja mesmo em cima da mesa.)

Mas os políticos que decidem com sondagens na mão, como era Sócrates na altura (e foi Guterres antes dele) cometem este erro crasso de acreditar mais no número do que em tentar interpretá-lo.

O segundo erro foi na leitura das próprias eleições presidenciais, que são eleições muito especiais onde se revela aquilo que eu considero (porventura isoladamente) um entranhado republicanismo dos portugueses, que afinal vivem numa República com cem anos, e uma das mais três mais antigas da Europa. Os portugueses não gostam de mais do que uma reeleição (Soares que o diga) tal como não gostam de dinastias políticas (João Soares que o diga) tal como não gostam de ver candidaturas “do partido” em eleições pessoais (o PCP e o BE que o digam).

Curiosamente, os analistas que aplaudiram a escolha de Francisco Lopes pelo Comité Central do PCP parecem ter esquecido esta lição de há cinco anos. O resultado pode ser pior o melhor, mas o que interessa é se a candidatura tem condições para ter relevância para lá de um quadro partidário. Caso não tenha, é uma candidatura para picar o ponto.

Estas eleições, contudo, não podem ser para picar o ponto. A crise económica e o impasse político fazem delas um momento essencial para definir o que vai ser o país na próxima década. Cavaco e Alegre têm mais diferenças entre si do que, por exemplo, Sócrates e Passos Coelho. Antes do debate entre eles começar, as sondagens de 2010 estão tão incompletas como as de há cinco anos.
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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Pancada no pequeno

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Por Rui Tavares

O QUE A FRANÇA está a fazer é ilegal, uma clara violação dos tratados e do espírito fundamental da União Europeia. A Comissão Europeia, que é suposta ser a “guardiã dos tratados”, não se insurge. Durão Barroso está silencioso.

Sabem o que eu gostaria de ser? Um colunista de direita.

Se eu fosse um colunista de direita poderia comparar a minha ida ao Algarve para férias, — de avião, e em primeira classe — com o avanço do exército nazi pela Europa fora (o leitor que achar isto impossível faça o favor de ler a crónica de Vasco Pulido Valente de ontem).

Sendo um cronista de esquerda, não posso sequer comparar o salazarismo com o fascismo. Porém, se fosse um cronista de direita poderia defender que o salazarismo foi o primeiro construtor do estado social, um grande escolarizador e, se tivéssemos dado uma chance (mais outra) ao marcelismo, uma quase democracia civilizada. (O leitor que achar isto impossível faça o favor de ler o ensaio de Rui Ramos sobre Salazar no “Atual” do Expresso).

Sendo um cronista de esquerda, não tenho estas liberdades: devo até justificar-me por tudo e um par de botas, do PREC ao Guterrismo. Ora, se eu fosse um colunista de direita, teria o problema correspondente resolvido. Poderia simplesmente declarar que não existe nenhum partido de direita em Portugal, que o PSD e o CDS são na verdade socialistas, e que nenhum deles é digno das minhas extraordinárias ideias. (O leitor que achar isto impossível leia qualquer crónica de Henrique Raposo no Expresso).

Sabem o que eu não queria? Chatear-vos nas vossas férias, reais ou simplesmente imaginadas. Mas cá vai disto.

Em Portugal, que é a nossa província, um membro do governo que é Secretário de Estado da Segurança Social anuncia uma poupança de dez milhões nos Rendimentos Sociais de Inserção, afetando em período de crise 44% dos beneficiários desta prestação, que estão entre as pessoas mais vulneráveis do país. “Compromisso cumprido”, afirmou o Secretário.

O mesmo governo promete pensar em começar a estudar formas de baixar os custos com a renovação do seu parque automóvel, que são de 7,5 milhões de euros anuais. Isto é capaz de ser coisa mais demorada.

Na Europa, que é o nosso mundo, o governo francês continua com a sua política de repatriação de ciganos romenos. A imprensa ajuda sendo eufemística — ninguém usa a expressão “limpeza étnica” — ou incorreta — aqui ou ali vai aparecendo a expressão “imigrantes ilegais”.

Vamos ser rigorosos sobre o que isto é e o que não é. Não, não se trata de imigrantes ilegais: os cidadãos romenos são comunitários e têm direito à livre circulação pelo território da União. E, sim, isto é uma limpeza étnica, ou seja, uma expulsão de um dado território de uma população circunscrita por critérios étnicos.

Como seria de esperar, a Itália de Berlusconi já manifestou vontade de seguir o exemplo francês. Quando a Croácia entrar na União Europeia, até 2012, ouviremos discursos sobre o caminho que ela fez desde as limpezas étnicas dos anos 90. Da maneira que as coisas estão, parece-me que é antes a UE que vai aderir à Croácia dos anos 90.

O que a França está a fazer é ilegal, uma clara violação dos tratados e do espírito fundamental da União Europeia. A Comissão Europeia, que é suposta ser a “guardiã dos tratados”, não se insurge. Durão Barroso está silencioso. Dá-se tempo a que Sarkozy faça o seu número para as sondagens.

Bom regresso de férias. Reabriu a época da pancada no pequeno. Na verdade, acho que nunca chegou a fechar.
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sábado, 28 de agosto de 2010

A nossa agente em Petersburgo

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Por Rui Tavares

CLARO, QUEM MELHOR denuncia a identidade dos nossos espiões é sempre o ministro da tutela, desde Veiga Simão que publicou uma lista com os nomes deles, a Augusto Santos Silva que anteontem anunciou que ia enviar espiões militares para o Líbano.

“Temos de ir beber um copo com o gajo do SIS”. “Com o gajo do quê?”. “Do SIS, pá, com o nosso espião”. “E tu sabes quem é?”; “toda a gente sabe”; “toda a gente, como?”; “oh pá, toda a gente: os estudantes de piano, os de matemática, e o português que veio para cá atrás da namorada — todos”. “Mas então o gajo revela assim a identidade?”. “Eh pá, tens que ver que ele está um bocado dependente de nós” — o meu interlocutor encolheu os ombros — “é que o gajo do SIS não sabe falar russo”.

Estávamos numa cidade de cujo nome não quero recordar-me, mas onde falar russo não era insignificante. Bastava aguçar os ouvidos: toda a gente ali falava russo — menos eu e o gajo do SIS.

Dias antes eu tinha estado na famosa MGIMO, a escola diplomática russa a que também chamam “fábrica de espiões”. Ali não se aprende só o idioma; conversei vinte minutos com um tipo de perfeito sotaque beirão até lhe perguntar se ele não era da Mealhada (gosto de identificar sotaques como há quem goste de decorar matrículas). Resposta dele: “não, sou de Moscovo mesmo”. Ainda boquiaberto, mas seguro dos meus conhecimentos de português brasileiro, dei por mim a confirmar “você é carioca, certo?” junto de um outro que deveria ser de Vladivostok.

Mandar para a Meca da espionagem um desgraçado que nem fala a língua local só se pode explicar por ele, em Lisboa, ter irritado um chefe qualquer. Mas ninguém merece. A história é talvez apócrifa; eu não cheguei a conhecer o nosso tuga que foi para o frio. Mas ocultei-a até hoje por cautela com a segurança dele, não fosse perder-se no caminho para casa com um vodca a mais e cair às águas de um rio que não posso identificar.

Claro, quem melhor denuncia a identidade dos nossos espiões é sempre o ministro da tutela, desde Veiga Simão que publicou uma lista com os nomes deles, a Augusto Santos Silva que anteontem anunciou que ia enviar espiões militares para o Líbano. Estou convencido de que o ministro nos dirá que não há problema nenhum em pôr de sobreaviso as pessoas que queremos espiar. Nesse caso, estou em boa companhia para o que vou fazer a seguir.

Dias depois, conheci a nossa agente em São Petersburgo. Vou revelar aqui o nome dela: Elena Golubeva. Linda, como é da praxe: mais de oitenta anos, olhos espertos e uma voz delicada.

Não, não é agente do SIS, embora fale russo melhor do que eles — e, pensando bem, melhor português também. Que eu saiba não recebe um centavo do nosso governo. O que é pena.

Há sessenta anos, Elena Golubeva descobriu a língua portuguesa. Foi a primeira pessoa a traduzir Fernando Pessoa na URSS. Camões, também. E nunca mais parou. De Torga e Saramago até aos novíssimos como Gonçalo M. Tavares. Persistente, doce, a princípio sozinha, foi reunindo uma tribo da lusofonia. A ajuda de um estudante português de música é preciosa; a visita de um escritor é um tesouro. Ali numa sala pequenina da Universidade de São Petersburgo, rodeados pelos departamentos poderosos em dinheiro e meios (espanhol, inglês, alemão) eles vão mantendo a chama acesa.

Desde que a conheci que abri uma excepção e faço campanha para que lhe dêem uma medalha no 10 de Junho. Ela preferiria que lhe enviassem livros, ou um leitor do Instituto Camões.

E é assim, caro Ministro: também conheço uma luso-libanesa com o curso da faculdade de letras; fala um árabe perfeito e tem rudimentos de persa. Mande-a para uma boa universidade em Beirute. Mas se quer um conselho, esqueça isso dos espiões até deixar de ser irremediavelmente nabo.
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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Diógenes Laércio

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Por Rui Tavares

HÁ DOIS DIÓGENES importantes na antiga filosofia grega. Um deles é Diógenes o Cínico, que vivia como vagabundo, andava nu pelas ruas, fazia as necessidades onde calhava, e dormia dentro de uma barrica. A sua indiferença aos preceitos da sociedade está na origem do nome cínico, que não quer dizer aquilo a que estamos habituados, mas vem de kynikos, palavra grega relativa ao cão. Diógenes de forma tão livre e liberta como a de um cão — daí “cínico”, ou canino. Foi também o primeiro filósofo a declarar-se “cosmopolita”, cidadão do mundo. Diz-se que o imperador Alexandre o Grande pediu para o ver e lhe perguntou se ele queria alguma coisa. Diógenes disse-lhe que a única coisa que desejava do imperador era que ele se afastasse do Sol (Diógenes não queria estar à sombra). Alexandre proclamou: “Se eu não fosse Alexandre, gostaria de ser Diógenes”. Diógenes disse-lhe: “estou à procura dos ossos do teu pai” — o rei e voraz conquistador Filipe, da Macedónia — “mas não consigo distingui-los dos de um escravo”.

O outro Diógenes é Diógenes Laércio, historiador da filosofia, ou melhor, biógrafo de filósofos. Tenho lido partes das suas “Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres” nos últimos dias.

Quando não sobra muito da obra de alguns dos filósofos, Diógenes Laércio é considerado uma fonte essencial, talvez a única em alguns casos. Por vezes tem uma ou duas páginas sobre um obscuro pré-socrático. Outras vezes dedica um “livro” inteiro (na verdade, um capítulo) ao chefe de uma escola. Tem, por exemplo, uma das mais completas biografias de Epicuro. Dedica também um livro aos estóicos.

Tanto estóicos como epicuristas almejavam alcançar um estado definido pela palavra grega “ataraxia”. Em português diríamos “imperturbabilidade”. A imperturbabilidade está descrita no famoso poema de Ricardo Reis chamado “Os Jogadores de Xadrez”, que começa assim:

........“Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
........Tinha não sei qual guerra,
........Quando a invasão ardia na cidade
........E as mulheres gritavam,
........Dois jogadores de xadrez jogavam
........O seu jogo contínuo.”

E que vale a pena ler até ao fim.

A coisa melhor de ler Diógenes Laércio é ver um desfile de doutrinas filósoficas, cada uma não só com seus postulados, mas também com o seu temperamento, as suas semelhanças, as suas rivalidades.

(Aristóteles disse uma vez que ensinava “porque seria vergonhoso calar-me e deixar falar Xenócrates” — certamente um filósofo que desprezava — dando uma excelente explicação de porque falam muitas pessoas que falam sobre, por exemplo, política.)

De ser muito usado por filósofos sisudos, às vezes temos de Diógenes Laércio uma ideia também sisuda, e errada. Vejam uns excertos desta biografia de Epiménides, filósofo da ilha de Creta:

“Mudou de rosto e de cabelos da seguinte forma: seu pai enviou-o um dia a procurar uma ovelha; ele entrou numa caverna e ali adormeceu durante cinquenta e sete anos. Uma vez viajou para Atenas e negociou um tratado de paz. Recusou dinheiro. Regressou para a sua terra e morreu pouco depois com cento e cinquenta e sete anos de idade. Os cretenses dizem que foi com duzentos e noventa e nove. Xenófanes de Colofón afirma que foi com cento e cinquenta e quatro.”

Todos errados. Que maravilha. Viva Diógenes Laércio.
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domingo, 15 de agosto de 2010

Traduzam-se para a guerra

,Por Rui Tavares

LEMBRA-SE QUANDO as traduções automáticas do Google produziam resultados ridículos? Já experimentou recentemente traduções automáticas do Google e reparou como a qualidade delas melhorou enormemente?

É interessante conhecer a história desta evolução. Ela começa por ser uma lição de linguística e acaba sendo uma lição de política.

Primeiro, a linguística. Uma definição simples de “língua” consiste em dizer que ela é um conjunto de significados mais um conjunto de regras.

Quando a Google tentou ensinar línguas aos seus computadores, quis fazê-lo dessa forma, dando-lhes os significados, as regras, e tentando que eles fizessem o trabalho da mente humana. Só que os computadores não pensam (ainda?) linguisticamente como as mentes humanas. Numa tradução, a máquina poderia apanhar todas as palavras bem e, todavia, o sentido geral ser absurdo.

Até que a Google mudou de estratégia. Em vez de ensinar gramática aos computadores, usou aquilo em que eles já eram bons: estatística. Hoje, a máquina não “entende” a frase: limita-se a procurar entre milhares de exemplos de traduções semelhantes e sair-se com a mais provável. As traduções melhoraram muito. O segundo parágrafo deste texto fica assim em inglês, sem nenhum retoque meu: “It is interesting to know the history of this development. It starts as a lesson in linguistics and ends up being a lesson in politics.

Ah, e então a tal lição de política?

Ei-la: para encher as suas bases de dados com milhões de traduções, onde foi a Google buscá-las? Entre outras, às traduções para 22 línguas do Parlamento Europeu, pagas pelo contribuinte. O material disponível é gratuito, e se mesmo assim a tradução não for boa, você pode ajudar a Google a melhorá-la, oferecendo-lhe o seu trabalho, também gratuito.

Agosto é o melhor mês para lançar uma guerra: um lobo em pele de cordeiro. Nesta época em que as redações estão meio-vazias, os jornalistas que restam ficam de atalaia. Algo de terrível está para acontecer: uma guerra entre Israel e o Líbano, como em 2006; um golpe de estado no Kremlin, como em 1991.

Este ano, já houve um fogacho no Líbano e Moscovo está rodeada de fogo. Mas a guerra mais importante — e discreta — foi lançada na internet. A Google e a gigante de telecomunicações Verizon negociaram um acordo que pretende mudar as regras de trânsito na rede.

Nas regras de trânsito reais, um semáforo vale o mesmo para um condutor rico ou pobre. E assim é na internet. Mas nas regras de trânsito que a Google e a Verizon cogitam implementar, o condutor poderoso (como a Google) passa a dispor dos sinais verdes que a Verizon lhe der; nós outros encontraremos mais luzes vermelhas ou amarelas. Isto significa, como diz Paulo Querido no Correio da Manhã, “o fim da igualdade de oportunidades, para quem cria e produz, e o fim da liberdade de acesso para quem consome”.

Esta é uma guerra declarada ao melhor repositório de conhecimento, ação e desenvolvimento de que a humanidade dispõe. A sociedade contemporânea precisa de uma internet livre, justa e igual para a ONG, a banda de garagem, a empresa da esquina ou a companhia multinacional.

Essa internet somos nós todos. E as grandes empresas têm tendência a esquecer de quanto nos devem, principalmente quando têm a sua crise da meia-idade, e começam à procura de expedientes para empurrar a concorrência para trás. Quando a Google vier reivindicar privilégios, perguntem-lhes onde foram eles buscar as traduções.
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In RuiTavares.Net
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NOTA (CMR): o texto é apenas uma parte do que consta do papel que acompanha uma escova de aço.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

E se a verdade não for novidade?

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Por Rui Tavares

QUANDO 90 MIL DOCUMENTOS
secretos sobre a guerra do Afeganistão são revelados, que ficamos a saber? Que os militares ocidentais matam mais civis inocentes do que revelam; que as chefias militares comandam esquadrões da morte; que as alianças no terreno são ambivalentes e hipócritas. Sim, é verdade: ficamos a saber aquilo que já sabíamos.

Mas não é por isso que estas revelações deixam de ser históricas. Aqueles que agora as desprezam como sendo triviais são os mesmo que antes se recusavam a admiti-las. Dizer que a verdade é trivial é apenas a nova forma que encontram de continuar a recusá-la.

Estranhamente, esta resposta tornou-se também opinião convencional entre os jornalistas. “Isto é verdade”, dizem, “mas não é novidade”. E então? Ao escolher a novidade contra a verdade, os jornalistas prestam um favor ao comando de guerra e um mau serviço à sociedade. A guerra do Afeganistão é agora pior do que uma guerra perdida: é uma guerra que não quer acabar.

Um exemplo: os ataques aéreos feitos por drones (ou seja: pequenos aviões telecomandados e não tripulados). Para a opinião pública dos EUA, os drones eram ovos de Colombo. Os “nossos” pilotos não estão lá nem pode ser abatidos; só os “maus” é que morrem. Genial!

Mas os documentos secretos revelados pela Wikileaks demonstram que estes drones matam muitos inocentes e que, quando caem, dão origem a custosas e violentas operações de resgate para que a tecnologia não caia em mãos inimigas. Os militares sempre souberam disso, e ocultaram-no.

E nós sempre pudemos saber — sem acesso a documentos secretos — que todas as novas armas de guerra têm um retorno. Tal como nas minas anti-pessoais, o problema não é o inimigo deter a tecnologia: é o conceito ter sido legitimado aos olhos da sua população-alvo. Quando um grupo terrorista telecomandar um drone sobre uma cidade ocidental, descobriremos que esta é uma arma cobarde. Toda a gente o dirá, — e se esquecerá de quem foram os primeiros a utilizá-la.

Desvalorizar a verdade como trivial só nos fará pagá-la mais cara.

Outra linha de ataque às revelações é comparativa. Diz-se nas redações: “o caso Wikileaks não é como os papéis do pentágono, revelados em 1971, nem como o escândalo Watergate, que o Washington Post noticiou em 1972″. E aqui os jornalistas estão simplesmente equivocados. Deixaram que a memória os traísse e não fizeram trabalho de arquivo.

Como lembra corretamente Frank Rich, colunista do New York Times, é verdade que os documentos da wikileaks tiveram de partilhar as primeiras páginas com o casamento de Chelsea Clinton. Mas a revelação dos “pentagon papers” também partilhou a primeira página do mesmo jornal com o casamento da filha de Nixon. O trivial e o fundamental sempre partilharam as primeiras páginas.

E quem viu Os Homens do Presidente — filme de 1976 sobre Watergate — sabe como ele acaba, já depois do escândalo revelado (quem não viu o filme talvez queira saltar este parágrafo): os dois jornalistas trabalham noite adentro enquanto as televisões dão a notícia da vitória esmagadora de Richard Nixon na sua segunda eleição.

No filme, os ruídos do telex e o fato de veludo castanho de Robert Redford estão para os anos 70 como os documentos secretos gravados em CDs da Lady Gaga e a figura de Julian Assange, fundador da Wikileaks, estarão para a nossa época. Seremos coloridos pelo trivial e definidos pelo fundamental. É que a verdade pode não ser novidade, e pode até não ser notícia. Mas não deixa de ser história.
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domingo, 1 de agosto de 2010

A petrofonia

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Por Rui Tavares

PARECE QUE DEPOIS de amanhã [24 Jul 10] a Comunidade de Países de Língua Portuguesa se prepara para acolher como membro a Guiné Equatorial.

Num país e numa comunidade linguística em que o acordo ortográfico gerou e gera debate infindo, oposição estrénua e arrancar de vestes, a entrada da Guiné Equatorial na CPLP é uma coisa mais ou menos indiferente. O que é estranho, porque a língua portuguesa com mais ou menos trema ou consoante muda não continua sempre sendo a língua portuguesa. E mais estranho ainda, porque essa língua portuguesa pode ser muita coisa, mas não é a língua que se fala na Guiné Equatorial. À língua que se fala na Guiné Equatorial pode chamar-se castelhano, ou espanhol, mas dificilmente se chamará português.

Poderão dizer-me que houve uma decisão do governo da Guiné Equatorial em consagrar o português como língua oficial (sem que se note que essa decisão tenha mais influência do que estar escrita em lei — nada na Guiné Equatorial se fala ou escreve em português, se exceptuarmos uns quantos milhares de falantes de crioulo na ilha de Ano Bom). Mas acontece que essa decisão foi tomada por um ditador dos mais insanos e caprichosos, Teodoro Obiango, recorrentemente eleito por 95% dos votos no país de que é dono e senhor. E agora dizem-nos que a entrada da Guiné Equatorial é favorecida pelo Brasil, por Angola e por São Tomé por aquele país ter muito petróleo.

E aqui chegamos a outro ponto. Pretende-se que a CPLP seja uma comunidade de democracias (Angola esquece-se de fazer eleições como certas pessoas se esquecem de arrumar os papéis: para o ano é que é!). Pretende-se que essa comunidade seja assente na língua. Não tanto uma comunidade para onde entram ditaduras assentes no petróleo.

Se a CPLP está numa atitude expansionista, tem bem para onde se virar. Existe no extremo da Ásia um país que decidiu democraticamente reintroduzir a língua portuguesa: Timor-Leste.

Timor-Leste vem muito a propósito neste caso.

Em primeiro lugar por uma razão moral: quando a Indonésia introduziu ditatorialmente a sua língua naquele país nós protestámos, pelo que não podemos agora aplaudir a decisão de Obiango de introduzir ditatorialmente o português na Guiné Equatorial.

Em segundo lugar por uma razão tática. A geração pró-lusófona de Timor-Leste não dura para sempre, e a reintrodução da língua portuguesa não terá futuro a não ser que os países lusófonos façam o seu trabalho e dêem a ajuda que os timorenses pediram.

Em terceiro lugar por uma razão estratégica. Timor-Leste está numa região do mundo onde ainda há muitas comunidades influenciadas pela língua ou pela cultura portuguesa: na Indonésia, na Malásia, no Sri Lanka, para não falar da Índia. Essas comunidades não estão organizadas em estados, mas dispersas em rede. Muitos dos seus membros são governantes, ou pertencem às elites locais — o candidato da oposição à presidência do Sri Lanka dava pelo apelido de Fonseka. Não deve ser impossível estudar essas comunidades, saber onde estão, manter contactos regulares com elas. Talvez até compensasse fazê-lo numa das regiões mais dinâmicas do mundo.

Mas dá trabalho, lá isso dá. Trabalho que a diplomacia portuguesa deveria gostar de ter. Daria certamente mais gozo do que acolher caprichos de ditadores.
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«RuiTavares.Net/Blog»

terça-feira, 27 de julho de 2010

Primeiro vá a votos

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Por Rui Tavares

PEDRO PASSOS COELHO propôs uma revisão da Constituição e de repente toda a gente se pôs a falar do conteúdo dessa revisão. Foi uma semana delirante.

Pedro Passos Coelho é o líder do PSD, evidentemente. Para além disso não é sequer deputado. O partido dele foi a votos e obteve menos de um terço deles; Passos Coelho nem isso. No entanto, a revisão proposta é “a revisão de Pedro Passos Coelho”. Como?

Claro, qualquer um pode propor uma revisão constitucional. Santana Lopes queria um Senado à italiana, Passos Coelho quer um Presidente à francesa, Paulo Teixeira Pinto — responsável pelas propostas constitucionais de Passos Coelho — preferiria uma rainha à inglesa.

Perante a salganhada, pergunto: esta revisão é para se fazer ou para se falar? Na atual Assembleia da República, a composição partidária reflete os votos das últimas eleições, em que bem mais de metade dos votos foram à esquerda. Se uma revisão precisa de dois terços dos votos, parece difícil que esta se faça (e muito menos que seja tão à direita como Passos Coelho pretende, mas já lá vamos).

De forma que Passos Coelho, se quer uma revisão constitucional que seja de fazer e não apenas de falar, tem bom remédio. Primeiro trate de ir a votos. Trate de fazer campanha com as suas propostas constitucionais, para saber se as pessoas as apoiam. Depois trate de ser eleito. E depois, com a maioria que tiver, faça a revisão constitucional que discutiu com o eleitorado e que a maioria parlamentar permitir.

Esta proposta de revisão, porém, foi apenas para se falar. E, nesse campo, até resultou. Ela serve propósitos essencialmente táticos. O seu objetivo é marcar agenda e atrair os rivais para um debate sobre o conteúdo ideológico de algumas propostas — e fazer com que elas ganhem a legitimidade que até agora nunca tiveram. Se falarmos agora na abolição do Sistema Nacional de Saúde, conseguiremos pelo menos a sua amputação, e por aí adiante.

Pedro Passos Coelho tem talento político. Sendo o único líder dos partidos parlamentares que nunca foi a votos, é o que melhor tem dominado o debate nos últimos tempos. A sua tática é falar, falar sempre, e ocupar espaço. Alguma coisa há-de ficar.

Se de hoje para amanhã, Passos Coelho propuser o relançamento do programa espacial português, incluindo uma missão tripulada a Marte, é possível que todos os outros líderes lhe respondam histericamente, que o primeiro-Ministro convoque o Secretariado Nacional do PS, e que os editoriais levem a ideia a sério, concluindo que se deveria pelo menos fazer uma viagem à Lua. No fim ninguém se lembrará de dizer “relançar? mas nós tínhamos algum programa espacial?”. Na semana seguinte, um tema novo.

O que me espanta é que os outros líderes vão na cantiga, o que me sugere que estão a precisar de férias.

E espanta-me também isto. Neste país onde nenhuma reforma verdadeiramente importante se consegue fazer, os políticos e editorialistas especializam-se em qualquer reforma que venha à rede. Não se resolve o desemprego, a dívida, a estagnação europeia? Reveja-se a Constituição. Ninguém consegue lembrar-se de nenhum problema grave causado pela Constituição? Precisamente por isso, vamos rever a Constituição. Deve ser mais fácil.

É como se eu, por não conseguir consertar o meu esquentador avariado, decidir antes desmontar e arrumar de forma completamente diferente o meu aspirador — que funcionava.
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In RuiTavares.Net