Por Maria Filomena Mónica
A 22 DE OUTUBRO ÚLTIMO [2008], vi o rei de Espanha a entrar na Igreja do Salvador, em Sevilha. De regresso ao hotel, fiquei a pensar neste homem que, em 1956, comigo se cruzara em Cascais. Digo cruzara porque, tanto quanto me lembro, ninguém nos apresentou. O rapazito, de cabelo encaracolado, pareceu-me tímido. O que ignorava era que, nesse preciso ano, vivera uma tragédia: ao brincar com uma espingarda, matara o irmão mais novo, Alfonso. Todas as minhas amigas queriam conhecer o «D. Juanito», uma pretensão que considerei ridícula. A minha família nunca discutira a questão do regime, de forma que nem sequer sabia se, lá em casa, éramos monárquicos ou republicanos.
Em geral, o príncipe não aparecia na praia, mas havia um grupo muito restrito, entre os quais os Arnosos, que, por praticarem vela, se davam com ele. No final de um Verão, comecei namoro com o João, mas, como era com os irmãos mais velhos que o príncipe se passeava de iate, não creio que o tenha voltado a ver. Antes de me casar, passei uma temporada na Andaluzia, em casa de uma grande família aristocrática, tendo depois encontrado, em Madrid, o filho do almirante Carrero Blanco, um gigante que não me impressionou pelas capacidades intelectuais. Passaram-se anos sem pensar em Espanha, muito menos na questão dinástica.
A 20 de Dezembro de 1973, vinha eu de regresso a Portugal num barco espanhol, quando, entre Southampton e Bilbau, tive conhecimento do assassinato, pela ETA, do almirante Carrero Branco, chefe do governo de Espanha, o qual, segundo algumas fontes, estaria empenhado no problema da sucessão pacífica de Franco. Desde 1955 que D. Juan Carlos frequentava academias militares espanholas, o que não deixara de criar tensões entre o pai, um liberal, e o filho, educado dentro das rígidas convicções do conservadorismo espanhol.
Em 1969, D. Juan Carlos foi designado herdeiro da Coroa, tendo-lhe sido conferido o título de Príncipe de Espanha. Durante o período da doença de Franco em 1974/75, quando actuou como chefe de Estado, nada deixou transparecer sobre as suas ideias políticas. Depois da morte do Generalíssimo, as Cortes Gerais – faz trinta e três anos – proclamaram-no rei. Foi então, no discurso inicial, que apontou as linhas mestras do reinado: restabelecer a democracia e ser rei de todos os espanhóis (ao contrário de Portugal, a Espanha tinha, e tem, um problema separatista).
Em 1977, o conde de Barcelona, com quem, mesmo durante a vida de Franco, o filho se tinha aconselhado em segredo, transmitiu-lhe a chefia da Casa Real e, pouco depois, tiveram lugar as primeiras eleições democráticas desde 1936, tendo o Parlamento elaborado a actual Constituição. Do processo apenas tinha rumores, através de uma irmã há muito vivendo em Madrid, rodeada dos portugueses que, após o golpe de 1974, haviam optado pelo exílio, o que fazia com que, a meus olhos, os seus relatos fossem suspeitos.
Em 1981, olhei, estupefacta, o que vi na televisão: em Madrid, um tenente-coronel, tendo na cabeça um daqueles ridículos chapéus dos carabineros, encontrava-se, de pistola em punho, no centro da sala das sessões da Câmara dos Deputados, onde o primeiro-ministro, Calvo Sotelo, ia ser confirmado; em Valência, o general Milans del Bosch, comandante da III região militar, declarava publicamente apoiar Tejero. Os parlamentares e os governantes estavam reféns dos golpistas.
De madrugada, envergando o uniforme de Capitão General dos Exércitos, o rei apareceu na televisão, apelando a que os insurrectos se rendessem, o que viria a acontecer. Muito se debateu, durante e depois, a razão que levou a Espanha a conseguir, por via pacífica, aquilo que Portugal só obteve de forma revolucionária. Para além da validade da tese da «vacina» – os espanhóis não queriam passar por aquilo que tinham visto deste lado da fronteira – existia outro factor: o país há muito que não tinha colónias. O trauma da descolonização sentira-o, em 1898, com a perda de Cuba.
A forma como a Espanha passou de uma ditadura, nascida de uma guerra civil, para a democracia é um milagre. Em grande medida, isto deve-se à actuação de um rei corajoso. Ninguém seria capaz de prever que a criança nascida em Roma, em plena batalha de Teruel, seria um dos agentes da metamorfose. Muito menos eu que, em 1956, o achei feio, estúpido e antipático.
A 22 DE OUTUBRO ÚLTIMO [2008], vi o rei de Espanha a entrar na Igreja do Salvador, em Sevilha. De regresso ao hotel, fiquei a pensar neste homem que, em 1956, comigo se cruzara em Cascais. Digo cruzara porque, tanto quanto me lembro, ninguém nos apresentou. O rapazito, de cabelo encaracolado, pareceu-me tímido. O que ignorava era que, nesse preciso ano, vivera uma tragédia: ao brincar com uma espingarda, matara o irmão mais novo, Alfonso. Todas as minhas amigas queriam conhecer o «D. Juanito», uma pretensão que considerei ridícula. A minha família nunca discutira a questão do regime, de forma que nem sequer sabia se, lá em casa, éramos monárquicos ou republicanos.
Em geral, o príncipe não aparecia na praia, mas havia um grupo muito restrito, entre os quais os Arnosos, que, por praticarem vela, se davam com ele. No final de um Verão, comecei namoro com o João, mas, como era com os irmãos mais velhos que o príncipe se passeava de iate, não creio que o tenha voltado a ver. Antes de me casar, passei uma temporada na Andaluzia, em casa de uma grande família aristocrática, tendo depois encontrado, em Madrid, o filho do almirante Carrero Blanco, um gigante que não me impressionou pelas capacidades intelectuais. Passaram-se anos sem pensar em Espanha, muito menos na questão dinástica.
A 20 de Dezembro de 1973, vinha eu de regresso a Portugal num barco espanhol, quando, entre Southampton e Bilbau, tive conhecimento do assassinato, pela ETA, do almirante Carrero Branco, chefe do governo de Espanha, o qual, segundo algumas fontes, estaria empenhado no problema da sucessão pacífica de Franco. Desde 1955 que D. Juan Carlos frequentava academias militares espanholas, o que não deixara de criar tensões entre o pai, um liberal, e o filho, educado dentro das rígidas convicções do conservadorismo espanhol.
Em 1969, D. Juan Carlos foi designado herdeiro da Coroa, tendo-lhe sido conferido o título de Príncipe de Espanha. Durante o período da doença de Franco em 1974/75, quando actuou como chefe de Estado, nada deixou transparecer sobre as suas ideias políticas. Depois da morte do Generalíssimo, as Cortes Gerais – faz trinta e três anos – proclamaram-no rei. Foi então, no discurso inicial, que apontou as linhas mestras do reinado: restabelecer a democracia e ser rei de todos os espanhóis (ao contrário de Portugal, a Espanha tinha, e tem, um problema separatista).
Em 1977, o conde de Barcelona, com quem, mesmo durante a vida de Franco, o filho se tinha aconselhado em segredo, transmitiu-lhe a chefia da Casa Real e, pouco depois, tiveram lugar as primeiras eleições democráticas desde 1936, tendo o Parlamento elaborado a actual Constituição. Do processo apenas tinha rumores, através de uma irmã há muito vivendo em Madrid, rodeada dos portugueses que, após o golpe de 1974, haviam optado pelo exílio, o que fazia com que, a meus olhos, os seus relatos fossem suspeitos.
Em 1981, olhei, estupefacta, o que vi na televisão: em Madrid, um tenente-coronel, tendo na cabeça um daqueles ridículos chapéus dos carabineros, encontrava-se, de pistola em punho, no centro da sala das sessões da Câmara dos Deputados, onde o primeiro-ministro, Calvo Sotelo, ia ser confirmado; em Valência, o general Milans del Bosch, comandante da III região militar, declarava publicamente apoiar Tejero. Os parlamentares e os governantes estavam reféns dos golpistas.
De madrugada, envergando o uniforme de Capitão General dos Exércitos, o rei apareceu na televisão, apelando a que os insurrectos se rendessem, o que viria a acontecer. Muito se debateu, durante e depois, a razão que levou a Espanha a conseguir, por via pacífica, aquilo que Portugal só obteve de forma revolucionária. Para além da validade da tese da «vacina» – os espanhóis não queriam passar por aquilo que tinham visto deste lado da fronteira – existia outro factor: o país há muito que não tinha colónias. O trauma da descolonização sentira-o, em 1898, com a perda de Cuba.
A forma como a Espanha passou de uma ditadura, nascida de uma guerra civil, para a democracia é um milagre. Em grande medida, isto deve-se à actuação de um rei corajoso. Ninguém seria capaz de prever que a criança nascida em Roma, em plena batalha de Teruel, seria um dos agentes da metamorfose. Muito menos eu que, em 1956, o achei feio, estúpido e antipático.
«GQ» de Dezembro de 2008