sábado, 18 de julho de 2009

Às escuras vê-se melhor

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Por Nuno Crato

ESTE SÁBADO À NOITE tem lugar uma das mais espectaculares acções do Ano Internacional da Astronomia. Um pouco por todo o país, em locais como a zona de Belém, a Escola Politécnica, a Baía de Cascais, o Bom Jesus de Braga e o Palácio de Cristal no Porto, as luzes vão-se apagar a partir das 22h (veja a programação completa em www.astronomia2009.org). Nos locais em que isso acontece, estarão presentes astrónomos profissionais e amadores para mostrar ao público as maravilhas do céu.

O apagão não será total, pelo que não será possível reproduzir o céu negro de que ainda há algumas décadas se podia disfrutar. Mas os citadinos terão oportunidade para ver muitos astros que habitualmente lhes escapam.

Quem nos roubou o céu foi o exagero de iluminação artificial que hoje existe nas cidades. As luzes, além de ofuscarem as estrelas e se reflectirem nos prédios em redor, iluminam as poeiras atmosféricas e as nuvens, dificultando a visão dos astros. Em vez de negro, marcando um contraste com as estrelas, o céu torna-se acinzentado, escondendo da nossa vista a maior parte dos astros que, de outra forma, seriam visíveis. A diferença é esmagadora. Em vez de observar vários milhares de estrelas, uma via láctea marcada e um ou outro sinal de nebulosa, vê-se apenas uma dúzia de astros no céu. As constelações deixam de ser nítidas, a coloração de estrelas e planetas deixa de se distinguir, e apenas se vêem alguns pontos de luz pálida.

Para muitos jovens, e para muitos outros menos jovens, não é só o céu que é mais pobre. Há muitas referências culturais que não fazem sentido. Assim, quando se lê «Os Lusíadas», não se pode perceber como se vê «de Cassiopeia a fermosura/ E do Orionte o gesto turbulento» ou a surpresa que é ver «as Ursas [...] banharem-se nas águas de Neptuno». Quando se lê Aquilino, não se pode imaginar o que sejam as «Três Marias». Quando se ouve falar de «perder o norte», não se pode compreender que isso tenha algo a ver com as estrelas. Quando se vêem referências à via láctea em Virgílio Ferreira, não se percebe a importância de uma e de outra, nem se consegue imaginar a origem do qualificativo «láctea». Quando se ouve dizer que «subaru» é a designação japonesa das «Plêiades», essa curiosidade também nada diz a quem não conhece esse grupo de estrelas.

Perder o contacto com o firmamento é também perder o contacto com uma das ciências mais antigas e mais belas que a humanidade criou: a astronomia. Enquanto os nossos antepassados viam as estações do ano a desfilar no céu, viam Sírio levantar-se no princípio do Inverno e Escorpião anunciar o Estio, temos hoje dificuldade em reconhecer as constelações mais evidentes, confundimos estrelas com planetas e só raramente observamos meteoros.

Perder o céu não é, contudo, totalmenteinevitável. Os exageros de iluminação pública são desnecessários, tal como é desnecessário ter candeeiros de rua que apontem para o céu, em vez de concentrar a luz no solo. Esta noite vai-nos relembrar o que perdemos e vai-nos mostrar o que podemos recuperar. Será uma grande noite.

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«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 18 de Julho de 2009 (adaptado).

NOTA (CMR): normalmente, as crónicas de Nuno Crato são aqui afixadas à terça-feira. A de hoje, excepcionalmente (e por motivos evidentes) aparece no mesmo dia da edição em papel.