quarta-feira, 1 de julho de 2009

Há 90 anos, sabíamos menos sobre o passado

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Por Nuno Crato

«EU DIGO-TE, apesar de a história já ser velha quando a ouvi. E o homem que ma contou já não era novo. Tinha na altura 90 anos» — é assim que Crítias começa a explicar a famosa história da Atlântida, relatada por Platão no seu diálogo Timeu. Afirma que o caso tinha sido primeiramente contado a Sólon por um «sacerdote muito velho». E que tudo se tinha passado nove mil anos antes.

Quem tenha lido o célebre diálogo de Platão não terá esquecido estas páginas sugestivas e fantásticas. Um homem velho fala de uma história que em jovem lhe tinha contado um velho, que por sua vez em jovem a tinha ouvido de um outro ainda mais velho. A idade aparece como abonatória da sabedoria e aproxima o evento histórico. Assim é habitualmente na ficção: os idosos estão mais perto do passado.

Mas é absurdo pensar que umas décadas de memória, mesmo que muitas para uma vida humana, possam trazer para mais perto de nós acontecimentos que se teriam passado há centenas ou milhares de anos. Se assim fosse, a história ir-se-ia destruindo. Cada vez saberíamos menos sobre o passado. E, em muito do que verdadeiramente importa, cada vez sabemos mais.
Há pouco tempo tivemos oportunidade de ficar a saber mais sobre um período e um homem sobre que decorrem agora mais de 400 anos. Foi finalmente reeditada com tradução para português moderno um conjunto de trabalhos de Pedro Nunes que até agora apenas se podiam encontrar em fac-símile, sem tradução e sem comentários explicativos.

Os trabalhos em causa são conhecidos como os tratados latinos de navegação, e foram publicados pela primeira vez em Basileia em 1566, num volume intitulado Petri Nonii Salaciensis Opera (Obra de Pedro Nunes de Alcácer do Sal). Estavam em latim, como se depreende do título, e constituíam um esforço do nosso matemático para divulgar pela Europa as suas descobertas matemáticas.

Fala-se hoje muito em internacionalização da ciência. E fala-se bem, pois a ciência é um esforço internacional que não se pode fazer em isolamento. O nosso maior cientista de sempre, como muitos historiadores de ciência se lhe referem, escrevia em português quando fazia obras para ensinar os seus alunos, os pilotos ou os professores de pilotos, mas escrevia em castelhano quando queria ser entendido pelos algebristas espanhóis e em latim quando queria ser lido na Europa. Se fosse hoje vivo, certamente escreveria em inglês, que substituiu o latim como língua científica internacional, com a vantagem de ser um idioma vivo, que além de servir para a comunicação entre cientistas, serve também para o mundo de negócios e para o turismo.

Os tratados de navegação agora publicados são uma obra maior. Como escreveu a comissão científica que procedeu à sua edição, constituem «o mais importante legado científico de Pedro Nunes e, como tal, são dos mais importantes e significativos documentos da história da ciência portuguesa». A inexistência de uma edição moderna, «era uma das maiores lacunas da cultura portuguesa, repetidamente denunciada por muitos. Esse problema fica agora resolvido.»

O volume, que constitui o tomo IV das Obras de Pedro Nunes em edição pela Academia das Ciências e pela Fundação Gulbenkian, tem um total de 805 páginas, das quais quase 300 são notas explicativas feitas pelo professor Henrique Leitão. Os historiadores estão agora prontos a saber muito mais sobre Pedro Nunes do que antes sabiam. A memória viva que é este volume não é uma história velha, contada por velhos a outros velhos. É o resultado do sangue fresco instilado à nossa história da ciência por uma nova geração de investigadores. Uma geração onde há cada vez mais jovens.

«Passeio Aleatório» - «Expresso» de 27 de Junho de 2009 (adapt.)

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