sábado, 27 de fevereiro de 2010

Escutar o Primeiro-Ministro

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Por J.L. Saldanha Sanches

A TRANQUILIDADE com que o legislador previu um regime especial para as escutas ao primeiro-ministro era de muito mau agouro. Parecia prever que seria normal ter primeiros-ministros que iriam estar, mais tarde ou mais cedo, embrulhados nas malhas de uma qualquer escuta.

O pior é que acertou. Mas se perguntarmos quem é que deve escutar o primeiro-ministro a resposta só pode ser uma: ninguém.

Se chegamos ao ponto em que os amigos mais próximos do primeiro se envolvem em crapulosos casos de polícia levando a que sejam escutados e arrastando para a rede do controlo judicial altas figuras do Estado, então, tudo está perdido.

Dir-se-á que em Portugal vigora a separação de poderes e o princípio da igualdade perante a lei. Que nada impede que o primeiro-ministro seja investigado como qualquer cidadão.

Mas tudo isso são tretas. O sistema não suporta, sem danos sérios, esse tipo de investigação.

Quando um magistrado tem de começar a pensar se uma decisão sua não irá provocar uma crise política, se essa crise política vai ou não pôr em risco o crédito da República, se haverá alguém que o possa substituir, então vamos ter uma má decisão.

“Hard cases made bad law”. E casos como estes são de uma dificuldade infinita, quando colocam na esfera judicial decisões inteiramente políticas.

Solução?

Os partidos têm de ter de vergonha e ter cuidado com quem colocam nos postos cimeiros.

Não temos ainda em Portugal o sistema de vetting ou de investigação para quem vai assumir altos cargos. Mas nos partidos políticos sabe-se tudo de toda agente. De onde se veio e o que é que se fez. Que esqueletos é que podem sair dos armários.

Ao que parece estamos tão mal que coisas que em tempos normais seriam impeditivas já não o são. Mas se assim é não venham depois queixar-se das consequências.

Nem esperem que a justiça vá resolver bem esses casos. Por excesso ou por defeito ela vai exibir todas as suas fraquezas.

A justiça pode servir perfeitamente para meter na cadeia um ou outro presidente da câmara particularmente relapso (geralmente, nem isso consegue), mas não para decidir quem vai ficar em S. Bento. Está para além das suas forças (mesmo, se por qualquer milagre, ela conseguisse ser muito melhor que o sistema político que a criou) esse tipo de decisões que, na verdade, não lhe podem caber. Por mais que se diga que a Constituição prevê, garante ou determina.

Se não, olhemos para a Itália: escorraçados os Craxis, entram os Berlusconis. A impotência da justiça cria o descrédito da política e da justiça.

A solução está por isso antes da justiça e dentro dos partidos: quem nos vão propor, quem é que vamos escolher. Quando os aparelhos partidários estão tão apodrecidos que já não conseguem distinguir entre quem podem e quem não podem colocar em certos lugares, não há regime legal de escutas que nos valha.
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NB: O silêncio conivente e envergonhado de Manuel Alegre a respeito da Face Oculta é de uma grande eloquência. Ficamos a saber qual é o PS cujo apoio ele pretende.

«Expresso» de 27 Fev 10 – www.saldanhasanches.pt