sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A Quadratura do Circo - Carta Aberta a Carlos Queiroz

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Carlos,
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Meu querido e bom amigo
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Eu avisei-te a tempo. Não ouviste.
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Isto do Futebol depende de toda a tua ciência e de todo o teu estudo, mas também da inspiração do momento e da cabeça fria. A dos dirigentes, do público e dos jogadores. Coisa que, como sabes, há muito pouco em tal mundo à parte. E ainda doutra coisa terrivelmente pragmática - as bolas que entram ou não nas balizas do adversário.
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Que, por sua vez, também é feito de gente, e, por isso, também está a viver o mesmo drama.
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Devo ter sido o único português, segundo lembro, que te disse - em tempos de colegas na Escola de S. João do Estoril, lembras-te? - que te dedicasses a alguma matéria mais pura e inocente, mais cientifica e menos humoral, mais pedagógica e menos brutal.
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- Futebol, Carlos!? – disse eu – tu vais-te especializar em futebol?!
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De facto. Bom aluno e estudioso, podias ter sido um investigador da Fisiologia do esforço, da Metodologia do Treino físico, das virtualidades psicossomáticas por influência do anel gama no tecido muscular estriado, dos mecanismos do gesto ao pensamento e vice-versa. Coisas assim, que este povo não entende. Quer golos. Obviamente.
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Sendo José Augusto seleccionador nacional, precisava de um teórico; um talento com capacidade, conhecimentos e verve para dar a cara. E escolheu-te, pouco depois, para as camadas jovens, onde tiveste o privilégio de deparar com uma geração de ouro de Paulos Sousas, Figos, Joões Pintos, etc. Num pulo, foste campeão do Mundo duas vezes de seguida e maior curriculum não era possível, nem de encomenda.
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Já no futebol profissional, rodearam-te e fizeram-te a cama, quando timidamente comandaste o Sporting, onde percebeste como eram as coisas no mundo dos clubes, saindo depois para uma viagem sem fim, que fui acompanhando de longe - eu músico, tu treinador de futebol - desde a África do Sul, a Américas, Japões, coisas assim.
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Um dia encontrámo-nos no aeroporto e falámos, como se o tempo não nos tivesse afastado e ainda compartilhássemos a mesma secretária. E avisei-te, mais uma vez, como colega mais velho e amigo. Tem cuidado com o Futebol.
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Quando tentaste o Real Madrid, senti que ias meter-te num ninho de víboras e chacais, e que a coisa ia dar para o torto com tanta prima-dona. Mais uma vez, estava certo. Voltaste ao ninho chuvoso de Manchester de asa caída.
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A apetência de ser o Treinador deste país era forte e, se bem que da primeira vez a coisa não fosse brilhante, agora havia Decos e Ronaldos, Nanis e Ricardos Carvalho. Uma tentação.
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Mas os miúdos ricos são quase sempre temperamentais e parvos no momento das grandes escolhas e prioridades. Na vida, e em campo. Torna-se difícil motivar uma manta de retalhos de gente tão vãmente e tão pré-matura-mente idolatrada. E tu lá vais arcando com resultados infelizes, numa espiral sem fim, de infelicidade e descalabro. E o Portugalzito está a jogar cada vez pior, sem alma nem entrega, nem velocidade, nem engenho, nem teia estratégica, nem fogo, mesmo contra dez heróicos albaneses. Desculpa, Carlos, mas tens de ser mais duro. Chicoteia o templo, como fez o outro.
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E mais uma coisa: As vedetas, sejam quais forem, assim, a fazer teatro para a galeria e a terem birras de meninos mimados, não podem ser capitães, de braçadeira ao peito. Capitão? Aquele miúdo? Por muito extraordinário que fosse – e, ao serviço da selecção, não é, ou não tem sabido ser… - dar-lhe aquela braçadeira histórica é, além do mais, ofender todos os outros.
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Que tem ele a mais que os colegas mais internacionais e, logo, mais logicamente indicáveis? É capitão, afinal, porquê?! Eu, se fosse Simão ou Maniche ou Nuno Gomes ou Deco, ou fosse lá quem fosse, pensava isso. Justamente. “Se tenho mais internacionalizações e não sou capitão, é porque o acham melhor que eu”. Isso desestabiliza e irrita. E ele, com todo o vasto repertório de cabriolas inúteis e rodriguinhos para a bancada ainda não o é. Ponto.
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Capitão, aquilo?! Coluna era um Capitão!!! Respeito e saber. Trapio, como se diz dos touros de lide. Ordem na casa. Disciplina. Tarimba. Autoridade. Cabeça fria, mesmo quando todos os outros a perdem. Capacidade de comando natural. Visão global. Aura. Controle dos colegas. Maturidade. Eis tudo o que o jovem Ronaldo ainda não tem.
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Aquele miúdo está precisar de terapeuta. Conheço um tipo que é formado nisso, homem sério e, curiosamente, também licenciado em Educação Física como tu. Pratica preços módicos, só pelo prazer de pôr esses miúdos na ordem, com disciplina e humildade prática. Dou-te o telefone, se ainda não o tiveres.
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Assim, estás a contribuir para o endeusamento de um carburador poderoso, mas que só funciona a pleno gás quando lhe dá na bolha. E demasiado ocupado com o verniz das unhas e o corte do cabelo, para rasgar a roupa e comer a relva, como faz, em sofrimento, qualquer albanês anónimo faminto de fama.
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Põe ordem nas prima-donas e fecha-me a porta daquela capoeira. Pobre Quim. Ele não tem culpa, mas os trincos andam muito desconexos, ferrugentos. E o rapazito da Madeira, o tal habilidoso e maldisposto, se não anda a saber outra vez marcar livres, e se estiverem lá o Deco, o Maniche, o Bruno, o Moutinho, ou o Sabrosa, entre outros, olha que eles ainda pode ser que se lembrem. Monopólios, já o Marquês de Pombal acabou com eles. E dá-me alegria, entrega e criatividade do meio campo para a frente. Ralha. Explica. Expõe. Eu sei. Infelizmente, são tudo coisas que não se compram na farmácia.
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Mas compra tu uma agulha e começa a coser devagar esta manta de retalhos. Se for preciso, vai à segunda divisão arranjar gente peituda e ambiciosa. Pede ao Rui que empreste uns juniores, uns sub-21, qualquer coisa.
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E atalha a direito, pragmático, sem diplomacias. A coisa está preta e eu gostava muito de ter amigos em sítios importantes. E assim…
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Deste que te abraça teu velho amigo
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Professor Pedro Chora Barroso
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NOTA: Este texto é uma extensão do que está publicado no Sorumbático [v. aqui], onde eventuais comentários deverão ser afixados.